Uma das chaves para compreendermos a produção paulista dos anos 70 e início dos 80 pode ser encontrada em "Noite Vazia" (1964), de Walter Hugo Khouri. Não à toa, críticos apressados consideram este o melhor filme do diretor – talvez o único a que assistiram – sem atentarem para a riqueza da obra coerente e íntegra.
É fácil e verdadeiro dizermos que "Noite Vazia" libertou definitivamente São Paulo do trauma dos grandes estúdios falidos, da inadequação com certos temas folclóricos e de todo aquele penoso receio de pertencer ao país em genuflexão mais crítica e independente do que o patriotismo incondicional consegue suportar. Exatamente por isso, foi construção distante de regionalismos e provincianismos. Atento ao meio, o acordo de Khouri, seu compromisso, se traía universal. E só em São Paulo Khouri ousaria filmá-lo daquela forma. Mesmo porque estava protegido do centralismo cultural carioca, tão forte no período, que através de grupos de influência buscava patrulhar e pautar a produção fílmica. Livre em São Paulo, Khouri libertou a si e em grande parte ao cinema paulista.
Já em 1973, "A Noite do Desejo", um dos melhores trabalhos de Fauzi Mansur, escrito em parceria com Luiz Castellini, recebeu o estigma – ainda presente – de mais uma cópia inspirada no clássico khouriano. Engano apressado, pois deve-se louvar sua abordagem inventiva, muito além da reles paráfrase, transbordando "a noite" e a influência do maior cineasta brasileiro.
O leitor que está aos poucos descobrindo a riqueza do cinema paulista, suas infinitas leituras e possibilidades, não custará a se surpreender com a fúria criativa de Fauzi, principalmente no período entre 1971 e 1977. Na fase, digamos, ginecológica do sexo explícito, assinou como Victor Triunfo – ruas emblemáticas, Vitória e Triunfo –, De Bako – dionísio recauchutado – e Izuaf Rusnam – letras embaralhadas ao contrário, nos moldes que José Mojica Marins batizou Oaxiac Odéz, em “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1968). Tocou um breve hiato no gore, “Ritual Macabro” (1990) e “Atração Satânica” (1991), aposta que se ouviu de longe em “Belas e Corrompidas” (1977).
O núcleo formado por “Cio, Uma Verdadeira História de Amor” (1971), “Sinal Vermelho, As Fêmeas” (1972) e “A Noite do Desejo” (1973) estampa um carimbo de autoridade. O primeiro dissimula o amor homossexual do galã (Francisco di Franco), retorce a angústia do personagem, deixa o incômodo. Vera Fischer, Miss Brasil 1969, experimenta o fenômeno de mídia em “As Fêmeas”, escudada por David Cardoso, Marlene França, Roberto Bolant, Jean Garrett, Ozualdo Candeias. Os quatro últimos migram para “A Noite do Desejo” – Marlene e Roberto, atores; Candeias divide fotografia e câmera com Antonio Meliande; Garrett, a montagem com Inácio Araújo e o próprio Fauzi.
Naquela desolação de dar dó, Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant) encoxam meninas em ônibus, fazem hora extra numa fábrica qualquer do arrabalde. Decidem praticar a caça noturna, gastar os salários nos bordéis, barbarizar nas casas de strip-tease. Juntam os cheques do serviço, viajam para as ruas Major Sertório, Bento Freitas, Nestor Pestana, a onda “boca do luxo” das clássicas boates La Vie en Rose, La Licorne, Versailles, La Ronde, Scarabocchio, florestas onde os lókis tinham vez.
"Noite Vazia" pode soar um parente natural do rabicho, sem dar conta de tudo. Solidão existe, os garotos se ajeitam com uma dupla de prostitutas, Marcela (Marlene França) e Ivete (Betina Vianny, filha de Alex). Enrolam-se, fracassados, medrosos.
Em WHK, o controle de Luisinho (Mário Benvenutti), a dúvida de Nelson (Gabrielle Tinti) contavam com o espelho de Regina (Odete Lara) e Mara (Norma Bengell), jogo intermediado pelo abismo imenso das partes, linha-mestra fechada nos quatro até o limite da crise. “A Noite do Desejo” possui um ambiente setentista, montagem e fotografia partindo para o clima feérico de cores, cortes secos, jive, pop. Jairo Ferreira, o corsário, dá um ar híbrido na seleção musical. Satiriza os momentos de tensão, escolhe Roberto Carlos para a pasmaceira do subúrbio. O cinema marginal é referência, expurga a individualidade do expressionismo de Khouri – que, em 1973, emplacava “O Último Êxtase” (1973), entreato sobre o Marcelo adolescente.
Retalhado o original de "A Noite do Desejo" pela censura, Fauzi armou um novo foco no enredo, paralelo ao de Toninho e Giba. Por conta do acaso, as sequências de Ewerton de Castro – participa de “O Último Êxtase” – (Pedrinho) e Selma Egrei (Selma, vulgo Tereza, nome de batalha) agregam dramaticidade.
Prostituta grávida (Selma) é perseguida pelo namorado coió (Pedrinho), que chega na cidade grande para levá-la de volta. Toninho e Giba vêem a garota, consideram o abate, mas a barriga os constrange. Neste ponto, outra vertente no imbróglio: o dono gay da boate se encanta por Giba. Doentio, meia-idade, leva um soco do rapaz, cai no chão humilhado, sórdido, à beira do urinol.
Esses três fatores – rapazes com prostitutas; interiorano e sua ex; o dândi masô – levam a três clímaces, bem azeitados no roteiro de Castelini e Fauzi. O forte de todos está no tabu do ciúme homossexual, encalacrado, violento. Explica a “falha” de Giba com Marcela, a entrega da moça a Toninho, Giba observando os dois na prática do belo esporte. Explica o espancamento do idoso por Toninho, possesso, os olhos esbugalhados enquanto asfixia o concorrente que se engraçava, final da madrugada, para cima do amigo.
O hotel “extritamente [sic] familiar”, freqüentado por casais – o crítico José Júlio Spiewak, numa ponta –, vê ainda o assassinato do bandido (Caçador Guerreiro, que atuou com Spiewak em “Lilliam M., Relatório Confidencial”, de Carlos Reinchenbach). Os tiros são intercalados pelo punhal do cafifa de Selma (Pedro Stepanenko) e apesar da falta de uma luva negra – ou de um cacoete obsessivo –, a alternância encarna um quase-giallo, tão brasileiro quanto o suor que escorre nas papadas do porta-chaves (Carlos Bucka). Camisa regata, olhar fujão, parece engolir os mistérios do povo casto que sobe as escadas.
Perdoamos alguns elementos inverossímeis. Ivete e Giba conversam cucas-frescas e razoáveis demais sobre os foras que levaram na noite. Um pouco mais de tato na histeria das meninas (Marcela/Ivete), na insegurança dos rapazes (Toninho/Giba), levantaria a tese – pretendida – de que os quatro se doam como se doam. O ladrão surge rápido no início da fita, sem por quê. A demora em atacar o hotel fica frouxa. Mas o ciúme oculto e as conseqüências, o achado da gravidez na escorte, o mundo cachorro, a atmosfera instalada pelo filme, redimem e se sobressaem na equipe conduzida pelo destino. A necessidade de escapar da interdição e dos prejuízos deu o salto que faltava. E aumentou as apostas em “A Noite do Desejo”, fruto da indústria auto-sustentável que trilhava, inquieta, a proposta de sobrevivência.
É fácil e verdadeiro dizermos que "Noite Vazia" libertou definitivamente São Paulo do trauma dos grandes estúdios falidos, da inadequação com certos temas folclóricos e de todo aquele penoso receio de pertencer ao país em genuflexão mais crítica e independente do que o patriotismo incondicional consegue suportar. Exatamente por isso, foi construção distante de regionalismos e provincianismos. Atento ao meio, o acordo de Khouri, seu compromisso, se traía universal. E só em São Paulo Khouri ousaria filmá-lo daquela forma. Mesmo porque estava protegido do centralismo cultural carioca, tão forte no período, que através de grupos de influência buscava patrulhar e pautar a produção fílmica. Livre em São Paulo, Khouri libertou a si e em grande parte ao cinema paulista.
Já em 1973, "A Noite do Desejo", um dos melhores trabalhos de Fauzi Mansur, escrito em parceria com Luiz Castellini, recebeu o estigma – ainda presente – de mais uma cópia inspirada no clássico khouriano. Engano apressado, pois deve-se louvar sua abordagem inventiva, muito além da reles paráfrase, transbordando "a noite" e a influência do maior cineasta brasileiro.
O leitor que está aos poucos descobrindo a riqueza do cinema paulista, suas infinitas leituras e possibilidades, não custará a se surpreender com a fúria criativa de Fauzi, principalmente no período entre 1971 e 1977. Na fase, digamos, ginecológica do sexo explícito, assinou como Victor Triunfo – ruas emblemáticas, Vitória e Triunfo –, De Bako – dionísio recauchutado – e Izuaf Rusnam – letras embaralhadas ao contrário, nos moldes que José Mojica Marins batizou Oaxiac Odéz, em “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1968). Tocou um breve hiato no gore, “Ritual Macabro” (1990) e “Atração Satânica” (1991), aposta que se ouviu de longe em “Belas e Corrompidas” (1977).
O núcleo formado por “Cio, Uma Verdadeira História de Amor” (1971), “Sinal Vermelho, As Fêmeas” (1972) e “A Noite do Desejo” (1973) estampa um carimbo de autoridade. O primeiro dissimula o amor homossexual do galã (Francisco di Franco), retorce a angústia do personagem, deixa o incômodo. Vera Fischer, Miss Brasil 1969, experimenta o fenômeno de mídia em “As Fêmeas”, escudada por David Cardoso, Marlene França, Roberto Bolant, Jean Garrett, Ozualdo Candeias. Os quatro últimos migram para “A Noite do Desejo” – Marlene e Roberto, atores; Candeias divide fotografia e câmera com Antonio Meliande; Garrett, a montagem com Inácio Araújo e o próprio Fauzi.
Naquela desolação de dar dó, Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant) encoxam meninas em ônibus, fazem hora extra numa fábrica qualquer do arrabalde. Decidem praticar a caça noturna, gastar os salários nos bordéis, barbarizar nas casas de strip-tease. Juntam os cheques do serviço, viajam para as ruas Major Sertório, Bento Freitas, Nestor Pestana, a onda “boca do luxo” das clássicas boates La Vie en Rose, La Licorne, Versailles, La Ronde, Scarabocchio, florestas onde os lókis tinham vez.
"Noite Vazia" pode soar um parente natural do rabicho, sem dar conta de tudo. Solidão existe, os garotos se ajeitam com uma dupla de prostitutas, Marcela (Marlene França) e Ivete (Betina Vianny, filha de Alex). Enrolam-se, fracassados, medrosos.
Em WHK, o controle de Luisinho (Mário Benvenutti), a dúvida de Nelson (Gabrielle Tinti) contavam com o espelho de Regina (Odete Lara) e Mara (Norma Bengell), jogo intermediado pelo abismo imenso das partes, linha-mestra fechada nos quatro até o limite da crise. “A Noite do Desejo” possui um ambiente setentista, montagem e fotografia partindo para o clima feérico de cores, cortes secos, jive, pop. Jairo Ferreira, o corsário, dá um ar híbrido na seleção musical. Satiriza os momentos de tensão, escolhe Roberto Carlos para a pasmaceira do subúrbio. O cinema marginal é referência, expurga a individualidade do expressionismo de Khouri – que, em 1973, emplacava “O Último Êxtase” (1973), entreato sobre o Marcelo adolescente.
Retalhado o original de "A Noite do Desejo" pela censura, Fauzi armou um novo foco no enredo, paralelo ao de Toninho e Giba. Por conta do acaso, as sequências de Ewerton de Castro – participa de “O Último Êxtase” – (Pedrinho) e Selma Egrei (Selma, vulgo Tereza, nome de batalha) agregam dramaticidade.
Prostituta grávida (Selma) é perseguida pelo namorado coió (Pedrinho), que chega na cidade grande para levá-la de volta. Toninho e Giba vêem a garota, consideram o abate, mas a barriga os constrange. Neste ponto, outra vertente no imbróglio: o dono gay da boate se encanta por Giba. Doentio, meia-idade, leva um soco do rapaz, cai no chão humilhado, sórdido, à beira do urinol.
Esses três fatores – rapazes com prostitutas; interiorano e sua ex; o dândi masô – levam a três clímaces, bem azeitados no roteiro de Castelini e Fauzi. O forte de todos está no tabu do ciúme homossexual, encalacrado, violento. Explica a “falha” de Giba com Marcela, a entrega da moça a Toninho, Giba observando os dois na prática do belo esporte. Explica o espancamento do idoso por Toninho, possesso, os olhos esbugalhados enquanto asfixia o concorrente que se engraçava, final da madrugada, para cima do amigo.
O hotel “extritamente [sic] familiar”, freqüentado por casais – o crítico José Júlio Spiewak, numa ponta –, vê ainda o assassinato do bandido (Caçador Guerreiro, que atuou com Spiewak em “Lilliam M., Relatório Confidencial”, de Carlos Reinchenbach). Os tiros são intercalados pelo punhal do cafifa de Selma (Pedro Stepanenko) e apesar da falta de uma luva negra – ou de um cacoete obsessivo –, a alternância encarna um quase-giallo, tão brasileiro quanto o suor que escorre nas papadas do porta-chaves (Carlos Bucka). Camisa regata, olhar fujão, parece engolir os mistérios do povo casto que sobe as escadas.
Perdoamos alguns elementos inverossímeis. Ivete e Giba conversam cucas-frescas e razoáveis demais sobre os foras que levaram na noite. Um pouco mais de tato na histeria das meninas (Marcela/Ivete), na insegurança dos rapazes (Toninho/Giba), levantaria a tese – pretendida – de que os quatro se doam como se doam. O ladrão surge rápido no início da fita, sem por quê. A demora em atacar o hotel fica frouxa. Mas o ciúme oculto e as conseqüências, o achado da gravidez na escorte, o mundo cachorro, a atmosfera instalada pelo filme, redimem e se sobressaem na equipe conduzida pelo destino. A necessidade de escapar da interdição e dos prejuízos deu o salto que faltava. E aumentou as apostas em “A Noite do Desejo”, fruto da indústria auto-sustentável que trilhava, inquieta, a proposta de sobrevivência.
6 comentários:
Querida, adoro esse filme.
Acho o elenco arrasador, e a Marlene França, quando deu entrevista para mim no Mulheres, comentou sobre esse trabalho, que Nelson Pereira dos Santos teria elogiado a atuação dela.
Bjs
Andréa, boa noite.
Que delícia de comentário. Não tinha feito até agora nenhum paralelo entre a Noite do Desejo e WHK's Noite Vazia, mas eles existem em muitas tomadas, neste de maneira sofisticada, no primeiro com extrema crueza. Eu que frequentei muito a noite de SP entre 1970 e 1975 - até ser domado e casar-me - conhecí muitos Gibas e Toninhos, Marcelas, Ivetes e Terezas (como a Selma Egrei é linda, ainda hoje!); tanto quanto eles, peguei infinitos negreiros (o último ônibus da madrugada) entre o Jabaquara e o Anhangabaú e fiz render por muito tempo o copo de cuba-libre enquanto o gelo derretia. No Rio, conhecí puteiros do Beco da Fome, aí na Princesa Isabel, e levei pescoções em boates de lésbicas, voltando para São Paulo no Trem de Prata com as lentes do meus óculos quebradas... O filme me agradou justamente por representar uma fase e uma época que viví intensamente, não saindo com as meninas da noite por muito medo de DST's, mas pelo ambiente e pelo linguajar muito diferentes da criação quase carola que tinha tido até então. Justamente por isso, ao assistir ao filme, pedí seu comentário, o qual bateu em muito com tudo o que o filme havia me tocado. Um grande abraço.
Fernando/58 Santo André
Adilson, a Marlene está acima da média no filme. Gosto muito da cena do dia seguinte. Ela no bar, tomando café com leite, comendo pão amanhecido. Linda, desoladora. Bjs, querido.
Fernando, comentário antropológico, adorei. E uma coisa precisa ser ressaltada: a Selma Egrei continua realmente belíssima. Está no "Nosso Lar", lançado este ano. Grande abraço
A pergunta que não quer calar é a seguinte: o que seria do cinema brasileiro sem a existência desse blog de escol?
Obrigada, Setaro. Fazemos nossa parte, seu trabalho também é referência, como eu sempre reitero.
estou vendo agora e adorando esse tour por são paulo...adoraria ver uma boate de lésbicas da Augusta, tipo livro da Cassandra Rios... adorando a biba que gamou no soco do operário kkkkk
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