Desavisadamente, a ponto de imitar as crônicas do século XX – “a alma encantadora das ruas”, ronronaria João do Rio –, um bilhete da loteca se instala na residência dos Hirszman, muito pelo aborrecido vendedor, que importunava o pai de Leon. Batata, batatíssima, o pedaço de papel é premiado e traz fortuna ao lar que se transfere para a Tijuca, santuário da classe média suburbana na Guanabara. Ao aterrissar na praça Saenz Peña, o garoto já formara o gosto pelo cinema, a voragem das sessões duplas na infância, privilegiando Chaplin bem antes da chegada de Eisenstein – que irrompe com mão de ferro e molda o cordão umbilical do mais rubro freqüentador do bar da Líder.
Leon Hirszman ainda experimentaria o fascínio pelas mostras do Museu de Arte Moderna – Moniz Vianna, antípoda do Cinema Novo, organizou-as entre 1958 e 1962 –, flanaria pela casa de Joaquim Pedro de Andrade em Ipanema, pelo Centro Popular de Cultura (CPC) – que ajudou a fundar – da UNE, pela Escola Nacional de Engenharia. Auxiliou o set de “Rio Zona Norte” (1957), direção de Nelson Pereira dos Santos, como quem não quer nada, para absorver o dia-a-dia da entourage. Trabalhou como assistente de direção em “Juventude Sem Amanhã” (1959), chorumela no vácuo das fitas sobre moços cruéis e desregrados – produção de Aécio Andrade, primo de Glauber Rocha. Rodou o primeiro curta, “Pedreira de São Diogo”, capítulo de “Cinco Vezes Favela” (1962), assumidamente sob a aura eisensteiniana, fosse no aspecto visual, fosse no argumento – operários e denuncismo em torno de situação verídica que não conseguiu ser evitada: a demolição do local acabou ocorrendo de fato. “Maioria Absoluta”(1964), outro pipete incendiário, experimentou o banimento de exibições no território nacional até o distante 1980, ao cutucar o analfabetismo – com direito, inclusive, a viagens ao Nordeste.
Através de “A Falecida”(1965), estréia por acaso nos longas-metragens. Assume a função recusada por Glauber Rocha, que optara dirigir “Senhora dos Afogados”, baseado em outra peça também de Nelson Rodrigues, produzida pelo filho Joffre Rodrigues. O projeto terminou inconcluído e esses burros n'água minaram as estripulias de todos que sonhavam colocar na mesma frase Glauber Rocha e Nelson Rodrigues, acompanhados, quiçá, pela cabra vadia.
O convite chegou de maneira inusitada, horas após Leon sofrer um acidente quase fatal de carro – o veículo a poucos metros de se estatelar na Lagoa Rodrigues de Freitas. Enquanto o consertava, encharcado pela chuva, Hirszman escuta a voz do ator Billy Davis, que corria a cidade em frêmito, procurando-o. Billy informa que Glauber havia pessoalmente indicado Leon para Joffre Rodrigues. O rapaz aceita, escolhe a obra que lhe pareceu mais próxima e ancora na tragédia rodrigueana com o passaporte visado por outra república, outro território que não o do bruxo da Aldeia Campista. Apesar de conhecer a entidade “suburbana”, apesar do processo de formação naquela atmosfera, a abordagem de Leon estabeleceu uma dissociação profunda em termos de universos autorais, aspecto que caracterizou irremediavelmente o filme.
Para garimpar o roteiro, convocou Eduardo Coutinho – colega do CPC, diretor do censurado “Cabra Marcado Para Morrer” (1964-1984). No elenco, a protagonista estreante em cinema, Fernanda Montenegro (Zulmira), e atores que apareceriam na rotina do Cinema Novo – Ivan Cândido (Tuninho), Nelson Xavier (Timbira), Joel Barcellos, Hugo Carvana, aparição esporádica de Zé Keti e ponta de José Wilker, outro em atuação inaugural. Música de Radamés Gnatalli, samba de Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardozo, trazem os momentos mais doces de “A Falecida” – acompanhados pelo esforço de Montenegro –, que se tornam desconectos no cômputo geral.
Estabelecer a premissa de que a adaptação seguiu o perfil do diretor em detrimento da peça original não redime de todo “A Falecida”. O filme não alcança a coesão necessária para tanto e alinhava as cenas do teatro sem manter, contudo, alguma pulsão, alguma vida que justifique as neuroses de Zulmira – tísica, apaixonada pela própria morte, frígida que se descobre post-mortem adúltera.
Espreme os cravos das costas do marido (Tuninho), no “tempo em que Pelé era Ademir”. Rivaliza com a prima Glorinha – essa luta de sabres entre mulheres, a que Nelson serviu belamente de cavalo –, gaba-se por sabê-la sem o seio esquerdo. Visita a cartomante, se oferece para o papa-defunto picareta (Timbira). Canta hinos – histérica, em um tal “teofilismo” – e comete frases como a deliciosa “macumba que essa cara me fez”. Mas até aí estamos diante da forma de Nelson Rodrigues. A substância, não se percebe.
Falta cinismo aonde sobra solidão. Falta comichão aonde sobra aceitação, fado, destino. Leon sacou do audiovisual os resquícios do que substancialmente se pode atribuir ao dramaturgo, sem colocar algo no lugar. Daí a revolta do marido, no meio do Maracanã, não empolgar, não criar o vínculo com o público que o entendesse tão apaixonado ou humilhado por falar com Pimentel (Paulo Gracindo) – o bambambam das contravenções, com quem Zulmira lhe traiu. De igual maneira, a moça gozar um temporal – caminho para a morte, piorando-lhe os pulmões – é elemento didático demais para a catarse cinematográfica; não acrescenta no descarrilhar mental da personagem. Até os filhos da cartomante olham para a câmera com a tentativa de seriedade de um Othon Bastos em “São Bernardo” (1972) – de Hirszman, retirado do romance homônimo de Graciliano Ramos. Esporadicamente o talento individual se sobrepõe, a exemplo da fanfarronice do Timbira de Nelson Xavier.
Percebam que a pompa de um “cinema verdade” é contraproducente, pecaminosa. Ainda mais pelo fato de que o objetivo não é atingido nem na linha da morbidez sardônica de Nelson, nem na diatribe de Leon – que tateava uma proposta de realismo “engajado”, quadro excepcional que era do PCB.
Equilibrando-se na ressaca do 1° de abril de 1964, Hirszman emigraria para o Chile em companhia da esposa exilada. Na cordilheira convive com a fina flor dos refugiados – Fernando Henrique Cardoso, um deles –, estuda economia, vive o ocaso da democracia popular janguista. Trabalha febrilmente, no idealismo que serviu como usina de vida. Afirmava ter feito apenas uma concessão ao que supunha “cinema comercial” – “Garota de Ipanema” (1967), que ainda assim funcionou bem mais de deboche condoído, demonstração de desprazer para a felicidade do balneário. Assobiando esse brevíssimo hiato, retoma o plano de ação e nele fixa o vôo de cruzeiro até 1987. A morte precoce, antes de sequer completar 50 anos, deixa-lhe de epitáfio a coerência fundamental de atitudes, articuladas em detalhe, instrumentos que eram à causa.
3 comentários:
Vixe! querida
Eu adoro A Falecida.
E acho a cena do banho de chuva uma das mais memoráveis de uma atriz no cinema brasileiro.
Entendo seu ponto de vista, que, como muitos, vê nele um distanciamente quase imperdoável do universo Rodrigueano.
Mas acho que mesmo que assim fosse, pois não concordo plenamente com isso, ainda acho que Leon fez um GRANDE filme.
Bjs
É, eu concordo com vc, Andrea. A Falecida é um filme que nunca me encantou.
(aliás, obrigado pela gentil menção no seu texto sobre O Padre e a Moça, que eu achei muito bom)
Ih, Adilson, aí discordamos rs Como eu disse no texto, não é pelo fato isolado do Leon se afastar do Nelson. O problema é tirar isso e não colocar algo no lugar. Deixar a forma do Nelson (as piadas, as frases) e criar estratégias que, enquanto filme, não convencem. Bjs, querido.
A Falecida tem uns problemas estruturais mesmo, Daniel. Gostei bastante do documentário sobre o Padre e a Moça. As cena em que derrubam a casa do Joaquim Pedro é de moer o coração...
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