quinta-feira, maio 06, 2010

Ninfas Diabólicas


Entre 2007, 2008, o famigerado episódio "O Pasteleiro", de "Aqui, Tarados!" (1981), andou sendo exibido em sessões no Rio e em São Paulo. Embaraçosa, chocante, pode-se dizer que a direção de David Cardoso, estrelada por John Doo, calou o público, domesticado pelas sociochanchadas e pelo ansiolítico cinema de hoje. A Boca, com sua estética selvagem, sua dialética amoral, era naquele instante um monolito de civilização rodeado por quem não tinha mais a mínima tradição em compreendê-lo.

Na recente mostra "Clássicos & Raros do Nosso Cinema", o longa de estréia de Doo, "Ninfas Diabólicas" (1978), foi recuperado, louvando que nem só da incrível performance em "O Pasteleiro" viverá para sempre este chinês de Chungking, nascido Chien Lien Tu -- desembarcado em São Paulo por volta de 1950 e, como tantos, um faz-tudo no cinema, de continuísta a ator e diretor.

Tal como a obsessão salvadora de Oskar em "A Lista de Schindler", fascina e oprime pensarmos que, de onde saiu "Ninfas Diabólicas", há muito mais no holocausto das cinematecas esperando resgate.

Aldine Muller e Patrícia Scalvi, quase púberes, vivem Ursula e Circe, duas louquinhas de uniforme escolar que seduzem um velho, Rodrigo (Sergio Hingst), fascinado pela perspectiva de sexo fácil com a dupla. Nem Aldine nem Scalvi, apesar da juventude, estavam propriamente bonitas na trama. É terror brasileiro na veia: sorrisos careados, pele imperfeita, falta de maquiagem.

Acontece que tio Rodrigo guardava um atraso de dar dó. Amacia as pernocas de Aldine enquanto, no banco de trás, Circe pratica aquela espécie de voyeurismo que lembra antiquíssimos relatos da Revista Ele & Ela. Desviando Rodrigo de uma viagem para São José dos Campos, vão parar no litoral, em um clima meio trash-khouriano no qual a Anima insiste em ludibriar o macho idoso, de cuecão ridículo e barriga pantagruélica. Se o objetivo era assustar, vemos o interlúdio entre peitinhos e bumbum apetitosos de Aldine e a imensidão de pelancas do extasiado Hingst, cinqüenta e quatro anos de praia.

O tête-à-tête monta um desfecho que o vocativo ao mito grego -- Circe -- já entrega. Sinistros pratos de comida, turbinados por algum pó de pirlimpimpim, não surgem na mesa de Ursula e Rodrigo à toa. Circe, na mitologia, era uma deusa com poderes de feitiçaria, que envenenava os homens que visitavam sua ilha. Na versão Ody Fraga ela some, reaparece e tem um jeitinho sonso, de caipira deslumbrada.

John Doo, bem amparado pelo roteiro de Ody, a montagem de Máximo Barro e a fotografia de Ozualdo Candeias, filma com tosco capricho, absorvendo a estrada, o vagar da areia e mesmo a paisagem urbana de uma São Paulo setentista e adorável. No rádio, ouvimos sobre a perseguição aos algozes de Cláudia Lessin Rodrigues, tema quentíssimo do período.

Certos filmes da Boca, pela necessidade óbvia de agradarem ao público, equalizavam roteiro, fotografia e diálogos em uma espécie de didatismo que lembra Hollywood dos anos 40 e 50. Isso pode ser visto em produções tão díspares quanto "As Intimidades de Analu e Fernanda", de José Miziara, e "Os Desclassificados", de Clery Cunha. Um cinema às vezes de autor, mas não tanto quanto gostariam críticos franceses ou Andrew Sarris. "Ninfas Diabólicas" guarda este suspense linear, de anedota, oferecendo recheio permissivo nas longas cenas das moças nuas -- alisadas pelo sugar daddy aparvalhado -- emulando interpretações fantasmagóricas que não se sustentam e falando um dialeto provinciano de beira de rodovia.

O resultado final, menos pela forma e mais pelo conteúdo pitoresco, é sempre manancial de riqueza e surpresa inesgotáveis. Feita por chineses, italianos, lusos e até mesmo baianos e paulistanos, a maior indústria de cinema da América Latina está, aos poucos, reeguendo-se do pó e nos observando, cheia de ironia e volúpia, pronta para dar o bote. Qualquer semelhança com "Ninfas Diabólicas" não terá sido mera coincidência.


3 comentários:

José Rodolfo Chufan disse...

Foi tão legal ver esse filme que tenho algumas cenas em mente, com a sensação de tê-lo visto várias vezes!
Também adorei o seu texto!

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Rodolfo! O dia da exibição no CCBB contribuiu bastante para essa mística do filme.

Floreal Andrade disse...

esses dias este filme filme foi projetado no cemitério da consolação em sessão tripla,assisti em um cinema da boca do lixo gazetinha na rua aurora,trabalhava em um banco saimos em 3 amigos,mas como as famigeradas bolinhas pretas de laranja mêcanica,o sexo das atrizes havia sido raspada na camada da película,abraço Patricia,o melhor blog de cinema que já li.