quarta-feira, março 24, 2010

Revendo Tropa de Elite


Na época do lançamento de "Tropa de Elite" (2007) -- e de sua avant première, no Emule e nas banquinhas de dvds piratas -- algumas pessoas pediram que eu escrevesse sobre o filme e opinasse na polêmica sobre o suposto "fascismo" da história. Respondi a cada uma individualmente e deixei o tempo passar, com o objetivo de um dia revê-lo sem tanta paixão e desprovido do calor daquela espécie de tara coletiva.

Em parte, terminei falando sobre "Tropa de Elite" no ensaio "Introdução ao Cinema Policial Brasileiro". Mas como o próprio nome diz, aquilo foi somente uma introdução, um norte onde os filmes eram citados a toque de caixa. A verdade é que "Tropa de Elite" virou marco dentro do cinema brasileiro e exige olhar mais vago e meticuloso.

Sem delongas: não passa de ridícula a idéia, ainda persistente, de que possa haver "fascismo" ou mesmo "reacionarismo" na história. Um roteiro que acusa a burguesia -- consumidora de droga -- de ser a verdadeira responsável por trás do horror carioca, me parece, antes de qualquer coisa, revolucionário. E dono de um incisivo discurso que grande parte da intelectualidade brasileira -- de direita, esquerda, ou doggy style -- já abandonou por preguiça e inoperância.

“Ricos”, alunos da Puc, são os únicos vilões que José Padilha consegue articular. Os outros -- pobres policiais e pobres traficantes – representam somente títeres, manipulados de acordo com a necessidade de consumo e repressão.

Mais interessante de tudo é que Padilha está certo, certíssimo. Poucas vezes alguém conseguiu retratar um microcosmo de forma tão realista quanto ele retratou o meio universitário carioca. Sei porque estive lá e aquela era minha realidade no dia a dia.

Assim sendo, baseada em experiência -- e não em torcida contra ou a favor -- reconheci de antemão, desde o primeiro contato com as imagens da sala de aula -- o professor citando Foucault e a histeria mal disfarçada dos alunos -- um diagnóstico honesto da enrascada em que o Rio se meteu. Lá estão o velho hábito do pensamento cindido, que não une ação e conseqüência, e a demonização de quem expõe um raciocínio linear, como é o caso do aspirante Matias (André Ramiro) em sua defesa do trabalho policial.

Trabalho que em momento algum aparece glorificado, sequer visto como unidade sólida. São cacos de gente, de valores, principalmente de idéias. E onde não há uma pretensão de absoluto, uma ordem insidiosa, simplesmente não pode existir fascismo.

Sei que algum leitor, fã do Tihuana, já deve ter lambido os beiços e pensado: "A ordem é o BOPE!". De jeito nenhum, crianças. O BOPE, na verdade, é um arremedo frouxo, uma corda esticada que vai estourar.

Padilha nunca sugere que o BOPE é solução. Pelo contrário, o BOPE é só parte do problema. Ele existe para assegurar o fator "repressão" quando o circo sai de controle, e assim interessa aos verdadeiros donos do espetáculo: os burgueses, representados por seus nenéns clowns, matriculados na universidade da Gávea.

Esta insistência na “culpa da elite” me parece tão didática e repetitiva, que surpreende não ter gerado mote de auto-expiação libertária: "Ok, 'Tropa de Elite' tem razão e eu sou um fdp, por isso a liberação das drogas cortaria o mal pela raiz". Preferiu-se uma abordagem rasteira, no limite do rancoroso, como se ir contra os caprichos de uma minoria hipócrita fosse o supra-sumo do reacionarismo e da falta de caráter.

Então, sem perceber que a tela lhes oferecia um espelho, alguns trouxas começaram a aglutinar na figura do Capitão Nascimento (Wagner Moura) um ideal de poder e força, que em momento algum corresponde à realidade. Nascimento não é um herói, tampouco um super-homem. É fácil apontarmos na subserviência – conflituosa – ao Estado sua maior fraqueza. E também sobrevive nele uma contaminação perigosa pela própria barbárie que necessita combater.

Nascimento só parece herói para quem ou queira relevar sua função de bucha social, ou pretenda ver nesta melancolia de farda algum heroísmo. Estandarte de um sistema falido, o suposto líder também é manipulado. Diferente da construção de um Mariel Mariscott em “Eu Matei Lúcio Flávio” (1979), ou de um Mateus Romeiro em "República dos Assassinos" (1979), personalidades sociopatas que não apenas cumpriam a ordem estabelecida, mas a parasitavam em nome de um terror particular, de um projeto de alpinismo erótico-existencial, fazendo apologia da força em um regime de força.

Quem já assistiu a pérolas como “Death Wish” – com o inesquecível Charles Bronson – conseguirá captar a diferença entre um protagonista frio e “civilizador” – este sim, eterno artífice de liderança totalitária – e o coitado que, sendo recompensado em migalhas, narra um labirinto que o oprime e assusta. O fato de ser honesto, focado na hierarquia e empenhado no treinamento em nada alivia seu retrato como alguém incerto, permanentemente em crise.

Para ressaltar este conflito, ainda surgem os aspirantes Neto (Caio Junqueira) e Matias. São como uma divisão interna, uma cisão de ego do Capitão Nascimento. Guardam no voluntarismo e na perspicácia o mesmo destino de obediência. Matias, estudante de Direito, ao menos consegue questionar seu papel. Quando se vê rechaçado e ridicularizado pelos colegas da faculdade, nada mais encontra além do aviso: “Coloque-se no seu lugar, e nos sirva de acordo com nossos interesses”.

Tudo isso prepara um grand finale, cujo mal-estar não é a vingança trágica, mas o conformismo. Revoltado, Matias desiste de pensar e se brutaliza. Diz “sim” ao sistema e completa a transição de intelectual orgânico para massa de manobra fortemente armada. Embora reconheça na perversidade polimorfa dos riquinhos o verdadeiro inimigo, não encontra saída senão passar a obedecer e agir, como sempre fez Nascimento. Afinal, quem detém o poder de punição e vigilância é a classe dominante, que utiliza a polícia somente como aríete de sua vontade.

Neste triângulo, o vértice menos importante cabe aos traficantes. No teorema carioca são usados e descartados. Zumbis, não têm direção, nem objetivos. Nunca ensaiam qualquer ideologia, e mesmo quando almejam um discurso, ficam reféns da mediação “bem-pensante”, pedindo bençãos contra o feudalismo ao senhor do castelo. Suas ações são sempre reativas, nunca planejadas ou preventivas. O capital transferido do asfalto alimenta seu círculo vicioso de desgraças e mortes precoces.

Quem buscar uma arapuca para desmoralizar a tese brilhante do filme, encontra no próprio conceito de “tese em obra de ficção” um começo. Excessivamente focado em construir uma afirmação, dizer a que veio, “Tropa de Elite” encerra pouca margem de dúvida, não conseguindo ser aquilo que meus ex-professores, versados em Umberto Eco, chamariam de “obra aberta”.

Do mesmo mal sofrem, por exemplo, os filmes do diretor Sérgio Bianchi, cuja insistência em conduzir o olhar do espectador até conclusão pré-determinada gera efeito colateral de didatismo infantil e pretenso moralismo. José Padilha disfarça este demérito em seqüências exuberantes, logrando uma espécie de subgênero que mistura a tradição do cinema policial brasileiro com semi-guerra civil.

Acredito que “Tropa de Elite” serviu para debater – com riqueza estética – uma relação social de causa e efeito. Mas talvez coloque tanto o dedo na ferida que a única solução seja gritar. E, sob todas as evidências – como é praxe no Brasil – negar, jogar tudo para debaixo do tapete. Ou, quem sabe, misturar-se no rebanho e fazer as célebres “passeatas pela paz”. Porque fascistas são os outros. E os inocentes (nem sempre) voltam, intactos, aos edifícios gradeados do Leblon.

22 comentários:

Luis Santos disse...

Andrea, perfeição é pouco para elogiar seus textos. Neste você avançou mais um passo, quase rumo ao sublime.

Sei que corro um risco de parecer um elogio simplório, mas é com o coração feliz por pessoas como você existirem que, às vezes, acredito que este mundo tem futuro.

Adilson Marcelino disse...

Querida Andrea,
Texto de muitas luzes sobre esse filme controvertido e que gosto tanto.
Preciso rever também.
Abs
Adilson

Luiz Alberto disse...

Concordo plenamente com o texto, até hoje pouquíssimas pessoas sacaram isso.

Fascismo eu vi nas opiniões do público, já que as visões de "esquerda" e "direita" se mostraram igualmente extremistas e equivocadas.

Andrea Ormond disse...

Poxa, Luis, obrigada. Fico emocionada com o que você falou. Faço o que eu posso, tentando ser honesta e coerente com a minha própria consciência e com os meus valores. Pretendo fazer mais, se a vida me permitir. Um beijo pra você.

Adilson, querido, eu também não revia o filme desde 2007. Mas sempre quis escrever sobre ele. Comprei o dvd e mandei bala.

Luiz Alberto, acho incrível que as pessoas não tenham entendido a tese por trás do filme. A sociedade é um todo, e colocar a culpa das coisas na polícia (ou nos traficantes) fica igual àquela piada do marido traído que, pegando a mulher com o amante, vendeu a cama.

Fofão disse...

Andrea, quando o filme foi lançado na TV, tentei esboçar o que penso sobre ele no meu blog: http://canalfofao.blogspot.com/2009/02/fanfarroes-e-mauricinhos.html.

É uma visão muito próxima da sua. Mas falta-me o estilo. É impressionante como você doma as palavras e as faz dançar de acordo com sua vontade.

Tente não sumir muito. Um abraço.

Andrea Ormond disse...

Mauro, seu texto é bastante lúcido e apontamos na mesma direção. Curioso que o filme seja tão claro e a maioria das pessoas não o enxergue assim. É um fenômeno não só carioca, mas brasileiro, que vivi por dentro. Estudei inclusive na mesma sala de aula em que rodaram a famosa cena do Foucault. Logo, fico estupefata com tanta incompreensão de um espelho tão nítido. Um abraço.

Anônimo disse...

Eu não gostei muito do filme, achei que Padilha foi meio preguiçoso na construção de seus argumentos.
Não sei, depois de ver Ônibus 174, e a perfeita argumentação e roteirização em cime do personagem de Sandro, esperava por algo parecido.
Sim, talvez toda a expectativa criada não em cima do filme, mas em cima do diretor, tenho comprometido minha análise.
Michel

Rachel Vianna disse...

Finalmente vi uma visão inteligente e eloquente de Tropa de Elite. Parabens!!!!

daniel disse...

Oi Andrea,
deixei um comentário sobre o texto no blog do Leandro, motivado por um outro comentário da Laura.
Notei que ia parecer mal-educado comentar por lá e não trazer por aqui, então segue o que escrevi:


Se me perdoa a propaganda de um texto antigo:
“Não é à toa que Tropa de Elite foi logo acusado de fascista – esta ambigüidade é claramente um interesse da própria concepção do filme, ao dar voz ao personagem de um policial que deriva em criminoso pelos métodos que usa e, ao final, não dar qualquer indício de que ele estava errado para além dos seus próprios gestos. O espectador pode enxergar no Capitão Nascimento um sujeito desequilibrado que se enche de remédios, agride prisioneiros, tortura-os, agride a própria esposa e termina só; por outro lado pode considerá-lo um herói na luta contra o crime, que trata criminosos com rigor e paga com seu próprio bem-estar o preço de ajudar na segurança da população. A escolha é moral, mas o filme, até o final, não faz a sua opção”.

Em resumo, vi essa atitude do filme como intenção provocativa, não como tese defendida. Não é necessariamente fascista, mas de fato a Andrea força bastante a barra ao considerar “revolucionária”. É tão “revolucionário” quanto um manifestante chinfrim atirando pedra na polícia ou destruindo carros na rua para atacar “a burguesia”. Além disso, essa defesa de cinema anti-burguês é cinemanovista demais pro meu gosto.

De resto, a argumentação dela cai no equívoco que o filme propõe ao acusar “a burguesia”. Na realidade, grande parte do lucro com venda de drogas vem de gente da classe chamada de “baixa renda”. Fica bem mais fácil dividir o mundo entre culpados e inocentes se a gente faz o esforço de esquecer esse dado da realidade.

Andrea Ormond disse...

Entre os dois, creio que "Tropa de elite" saiu-se melhor, Michel. Pelo fato de ser um documentário, o "Ônibus 174" não ousou tanto na construção dos personagens. Esta liberdade narrativa está à solta no "Tropa". De qualquer maneira, entendo o que você diz, às vezes a expectativa criada por um filme impede gostar de outro do zero.

Obrigada, Rachel. Um filme não pode ser carimbado tolamente.

Andrea Ormond disse...

Daniel, vi o comentário da Laura no blog do Leandro. Se ela quiser debater por aqui com a gente é bem-vinda. Mas dizer que "o filme é estruturalmente fascista" soa como dizer "eu sou legal". É preciso algum argumento por trás da afirmação ou, no caso, da refutação. Em momento algum eu disse que "o filme é revolucionário porque é contra a burguesia". Não sou imbecil. Ou ela não leu o texto completo, ou quer entender somente aquilo que lhe convém.

O que eu chamei de revolucionário foi, obviamente, o filme ter dado nome aos bois, acusando de frequentar o "movimento" a mesma burguesia que pede "paz" em Ipanema e assim ajuda a sustentar a guerra. O filme inova, de certa forma, por ter trabalhado incisivamente este elemento hipócrita na equação do problema social.

Pegando isso como gancho para o que você propos, é claro que o filme defende uma "tese": a de que a mesma mão que afaga também pede punição na hora que lhe interessa. Se discorda, acha que nós, as moças e rapazes da Puc somos inocentes, e considera o argumento chinfrim, ok. É uma questão de juízo individual.

O tema é muito mais complexo do que "quem compra mais ou menos pó". É toda uma cadeia de proteção que essa minoria dita bem-pensante, da zona sul do Rio, cria em volta do tráfico de drogas (como criava, em certa época, em volta do jogo do bicho). E que no final das contas gera boa parte do contraditório e da insegurança em que a cidade vive. Digo isso sem qualquer intenção moralista, pelo contrário: o que defendo pessoalmente é que se descriminalize, para acabar de vez com o problema.

A sua frase "essa defesa de cinema anti-burguês é cinemanovista demais pro meu gosto" também apresenta uma leitura completamente cindida do texto, querendo colocar palavras na minha boca. Em momento algum defendi ou defendo um cinema anti-burguês. Se fosse assim, como poderia ser estudiosa do Walter Hugo Khouri? Repito que "Tropa de Elite" inova ao não ser um filme policial onde somente polícia e ladrão se enfrentem, com uma superfície ligeira de crítica social. Ele cria todo um anteparo para explicar a guerra, apontando a participação esquizofrênica da elite carioca neste processo. Concordar ou não é outro assunto.

E, por favor, se alguém quiser refutar um texto meu, fica o convite de vir até aqui para conversamos. Entrar em blogs terceiros pra dizer "É fascista sim!" me faz parodiar vc, Daniel. É tão deselegante quanto um manifestante atirando pedra na polícia ou destruindo carros na rua para atacar “a burguesia”. Debates são olho no olho. Nunca fugi deles, muito pelo contrário.

Por fim, citando novamente o comentário enviesado da Laura: a discussão sobre o Capitão Nascimento ser ou não o real protagonista do filme permanece tanto quanto a do suposto "fascismo". Aquela história de "não pode ser avaliado" me deu até arrepios de vergonha alheia. Quem determina o que "pode ou não pode ser avaliado"? Temos alguma "comissão do pensamento" instalada para isso?

Fofão disse...

Discussão interessante, galera. Tentei achar esse blog do Leandro para ler o citado comentário da Laura, mas não consegui. Alguém pode passar o endereço? Obrigado.

L disse...

Olá, Andrea! Olá, Daniel!

Primeiro, quero explicar que a minha discussão era com o Leandro, por isso entrei lá. Então, começo pedindo desculpas se isso soou covarde.

Respondendo rapidamente, pois não sei se é o caso de estender essa discussão.

Meu problema com o Tropa de Elite (que é um filme do qual gostei muito, inclusive) é exatamente a forma como ele foi discutido.

Afinal, olhando-o estruturalmente, do ponto de vista da narratologia, o protagonista da história (aquele que vive a mudança) é o Mathias, não o Nascimento. Tanto assim que, originalmente, o narrador era ele. Depois é que o roteiro foi modificado para um narrador mais cínico (e acho que a estratégia foi muito acertada).

Nesse sentido "narratológico", o Mathias é protagonista de uma tragédia causada, como todas as tragédias, por um erro trágico do herói. Que, no caso dele (como nota o próprio Capitão Nascimento) é o de querer ser policial e estudar ao mesmo tempo.

Lógico que o filme não elogia o fato disso ser incompatível, mas propõe uma visão de mundo em que a intelectualização e a atividade policial seriam necessariamente excludentes.

Por isso, acho-o, sim, obscurantista e próximo de uma visão fascista, pois a única solução que ele oferece é a do uso da força e da perseguição implacável aos usuários e traficantes, e não uma solução que possa problematizar a proibição do uso de drogas como causador básico do conflito.

Bom, é isso ai. Abraços e feliz páscoa para todos!

RENATO DOHO disse...

adoro o filme e gostei do texto, mas queria pontuar a questão do tráfico de drogas que entrou em debate nos comentários e acho o de menos no filme; por que? proibição como causador básico? descriminalização para acabar com o problema? acho que não pois as drogas entram muito mais como um meio do que um fim e no caso o meio é enriquecimento rápido, aí é mais uma questão social e cultural, da procura por esse enriquecimento "fácil" ou "possível", tirem as drogas do esquema e muitas outras coisas entrarão no lugar, pois o que vale é o comércio de algo ilegal, é a oferta de algo socialmente banido e raro e aí podemos listar mil coisas substitutas e outras mais que a criatividade criminosa sempre consegue criar novidades para oferecer para o público consumidor - há coisas inimagináveis atualmente que no futuro serão bem comuns como o tráfico de drogas é hoje (e acho que bem piores)

o tal mundo drogas liberadas equivalendo a um mundo mais pacífico é um equivoco - a procura por meios escusos para obter lucro é o principal motivador do que gera violência (é tráfico humano, prostituição infantil, pirataria, corrupção, etcs), a tal raiz do problema é muito mais profunda

enfim, nisso tudo o filme aborda esse ângulo, provocando mais confusões do que respostas

Andrea Ormond disse...

Fofão, http://buchinsky.wordpress.com/2010/04/02/revendo-tropa-de-elite/

Oi, Laura, sem problemas. Vamos lá. Acho que a trajetória do Matias, como é mostrada, pode ser analisada como pessimista, mas fascista nunca, a partir do momento em que ele também é uma vítima da construção perversa. Ou seja, o Matias é vítima do sistema, não seu articulador. Fascismo haveria se ele criasse posição de força no intuito de instalar uma nova ordem. O próprio abandono dos estudos é um sinal de fraqueza, de derrota, para aquilo que o filme deixa claro ser um mundo errado e incerto. E onde há um diagnóstico de erro e incerteza não pode haver apologia ao fascismo. Sobre o Nascimento ser ou não protagonista, apesar disso ser discutível, fica a lembrança de que foi em volta da sua figura que se catalisou a imagem do filme. Pergunte a qualquer espectador quem é o protagonista e ele dirá, sem pensar, o Capitão Nascimento. Feliz Páscoa pra você também, apareça sempre.

Renato, ótima observação, concordo quando você diz que as drogas são um meio que o crime utiliza para atingir um fim. No caso, o enriquecimento rápido. E que sua legalização vai somente desviar esse crime para outras atividades. Mas acho que especificamente na questão das drogas há um debate maior sobre sua função na sociedade. Inclusive, atualmente, a loucura anda tanta que em certos meios se você acender um baseado é visto com simpatia, mas se acender um cigarro é olhado como um vilão e logo alguém lembra que existe a lei-anti fumo rs Liberadas as drogas, haverá uma reorganização econômica em volta desse processo, que bem articulada pode ser benéfica para a sociedade. O assunto é polêmico e devemos nos ater a tudo, inclusive à reflexão que você trouxe, mas a princípio sou a favor da descriminalização gradual. E também do fim dessa histeria anti-tabagista, que é uma psicose, um total despropósito.

Marcelo V. disse...

Padilha já está contando para a imprensa, com a sequência praticamente filmada, que agora o embate será entre o coronel Nascimento ("direita") e um presidente de ONG ("esquerda" - hã?), interpretado pelo Irhandir Santos. Vamos ver o pano pra manga que vai dar.

Sempre estranhei essa visão do Nascimento como herói, acho que o primeiro filme sublinha de maneira clara e bem pouco sutil as muitas fraquezas dele.

Andrea Ormond disse...

Marcelo, o perigo é nessa volta o Padilha ceder à mitificação grotesca do Capitão Nascimento e tentar transformá-lo em herói de fato.

Eduardo Aguilar disse...

Gosto do filme, mas o acho fascista, sim! Nada a ver com a postura frente a questão das drogas, mas no comentário q. a Laura fez, eu assino embaixo a parte q. fala:

"...pois a única solução que ele oferece é a do uso da força e da perseguição implacável aos usuários e traficantes..."

Se de um lado, Andrea, vc. diz q. basta perguntar ao povo qm é o protagonista para ouvir q. é o Capitão Nascimento, se fizermos a mesma pergunta sobre se ele é um herói ou um herói problematizado, vão responder q. ele é um herói e ponto! Ou vc. tem dúvida? Qq. pessoa na época do filme e ainda hj, recorre ao bordão: "Chamem o Capitão Nascimento" qdo os bandidos estão em destaque.

Enfim, o Carlão certa feita disse, se ao menos o tal garoto q. se vê ameaçado pelo cabo de vassoura tivesse segurado a onda e não delatado o 'baiano', teríamos uma situação de crise colocada junto ao espectador, ou seja, nem sp. o uso da violência pela força policial leva a resolução do problema.

Andrea Ormond disse...

Oi, Edu. Creio que essa história do Capitão Nascimento ser ou não ser o real protagonista merece debate, e fiz alusão ao consenso popular somente como lembrança ilustrativa.

Sobre a questão do heroísmo, repito: aponto no texto que o filme não o glorifica, e sim o retrata como incerto, em crise e vulnerável. Quem transforma tal coitado em herói comete uma tolice, forçação de barra.

E sobre o fascismo, não sou Zé Ketti, mas podem me prender, me bater, que durmo tranquila e não mudo de opinião em relação ao tema. Fascismo é vertente do totalitarismo, é apologia do poder sobre o livre-arbítrio do homem. E um roteiro que critica o Bope, sua existência, sua vocação, não é fascista. Ele só diz que parte da classe média e elite, que consomem drogas, alimentam com isso a carnificina entre traficantes e policiais. Onde está o fascismo nisso?

O filme não oferece como única solução a perseguição implacável. Isso é vitimismo blasé. O que ele diz é que se a classe bem-pensante não mudar sua postura, a guerra prossegue e é perdida. O uso da força é justamente inócuo. O filme clama por uma retomada de consciência, se você perceber.

É isso. Um beijo, outro pra Nina :)

Eduardo Aguilar disse...

Andrea querida, uma vez ouvi de um crítico amigo meu que um filme não é o que ele pretende ou propõe no roteiro, mas sim o q. resulta disso, ou melhor, aquilo q. se vê na tela. Enfim, vc. disse:

"Sobre a questão do heroísmo, repito: aponto no texto que o filme não o glorifica, e sim o retrata como incerto, em crise e vulnerável. Quem transforma tal coitado em herói comete uma tolice, forçação de barra."

Os q. cometem tal tolice são muitos, pouco adianta o Zé Padilha rezar missa para convertidos, ou seja, o filme acrescentaria de fato, se conseguisse alterar a percepção da classe média de q. se deve responder a violência com violência. E com todo o respeito, acho q. vivemos no mesmo Brasil, portanto, se vc. circulou entre essas pessoas, certamente observou q. elas entenderam o filme como a constatação de q. precisamos de um Charles Bronson (Desejo de Matar) e q. a nossa versão é o Capitão Nascimento, torná-lo vulnerável passou longe de colocá-lo em crise. Os caminhos do filme propuseram q. com um 'pouquinho' de violência se chega onde se quer, e eu não me recordo de uma única menção a um processo realmente investigativo. Mas de qq. forma, seu texto é mto bom no sentido de levantar a confusão q. alguns fizeram por conta da associação q. o filme faz das drogas e a classe média e como isso resulta junto a perpetuação do tráfico.
Por fim, reiterando minha tese de q. o filme perpetua o uso da violência, me valho do q. vc. disse:
"E sobre o fascismo, não sou Zé Ketti, mas podem me prender, me bater, que durmo tranquila e não mudo de opinião em relação ao tema."
Pois é, faltou justamente isso, q. o filme tivesse o culhão de mostrar q. nem sp. a tortura resulta em alguma coisa... Pergunto à vc., se o Capitão Nascimento não tivesse chegado a lugar nenhum com seus métodos, isso não criaria um incomodo real?

Por fim, a Nina está ótima e se vc. estiver por sampa - como eu acredito q. esteja -, vamos combinar uma hora dessas um café pra vc. conhecê-la e tb. a Ana, minha mulher, será um encontro com 3 virginianas!!!

Andrea Ormond disse...

Mas justamente, Edu, a minha crítica é sobre essa percepção errada das pessoas de vê-lo como um herói! Porque a intenção do filme não foi essa. Se produziu esse resultado, devemos lamentar. É isso o que eu digo no texto.

E quanto à violência, entendo que ele não a mostra como tendo solucionado o problema, mas sim o perpetuando, em uma eterna carnificina. O Matias fica surtado, sobe o morro junto com o Nascimento pra vingar o amigo e assim se perpetua a violência, que gerará mais violência do lado dos traficantes, e assim vai.

"Muitos" também acharam o máximo e ficaram repetindo os bordões do Zé Pequeno no "Cidade de Deus". Alguém acusa o filme de fazer apologia ao tráfico de drogas? O Mark Chapman disse que matou o John Lennon porque leu "O Apanhador Nos Campos de Centeio". Devemos criminalizar o livro pela "impressão" que causou? A idéia do seu amigo crítico me parece uma perigosa janela aberta para o infinito. Cabe qualquer coisa aí.

Veja esse trecho, que acho que resume o que quis passar no todo:

"Então, sem perceber que a tela lhes oferecia um espelho, alguns trouxas começaram a aglutinar na figura do Capitão Nascimento (Wagner Moura) um ideal de poder e força, que em momento algum corresponde à realidade. Nascimento não é um herói, tampouco um super-homem. É fácil apontarmos na subserviência – conflituosa – ao Estado sua maior fraqueza. E também sobrevive nele uma contaminação perigosa pela própria barbárie que necessita combater."

Vamos marcar sim, estou morando aqui em Sp já faz um ano. Seu email ainda é o mesmo?

Eduardo Aguilar disse...

Sim, o e-mail é o mesmo, faça contato e vamos agendar esse encontro!

Sobre o tema, é bastante polêmico, mas em relação a janela q. o meu amigo crítico 'abre', eu concordo com vc. em parte, mas ao mesmo tempo entendo q. se na relação direta com seu público o q. o filme provoca é o inverso do q. pretendia, o autor precisa refletir, pois não devemos partir da visão arrogante de q. o público foi incapaz de nos compreender, muitas vezes os artistas tb. são 'incapazes' de alcançarem sua proposta.

Mas com certeza a arte não deve se pautar pela preocupação com o público, mas tb. não deve ignorar o qto conseguirá dialogar com o público q. espera atingir. De mais a mais "Taxi Driver" tb foi considerado fascista e eu o acho mto mais uma reflexão sobre a neurose q. leva a violência e a perpetua, mas p. ex., "Sob o Domínio do Medo" tem um olhar fascista, mas ele é coerente com a proposta de Peckinpah q. de fato, quer mostrar q. em estados limites de confrontação, o mais civilizado dos homens se torna bárbaro.