O diretor e roteirista Xavier de Oliveira concluiu apenas cinco longas-metragens em 40 anos de carreira, mas este número pouco significa quando analisamos a qualidade, originalidade e permanência de sua obra.
Poucos diretores no país alcançaram a combinação das principais características do cinema de Xavier: autoral, intimista e acessível ao mesmo tempo. Iniciando com "Marcelo Zona Sul" (1970), prosseguiu em “André, a Cara e a Coragem (1971), “O Vampiro de Copacabana” (1976) e “Gargalhada Final” (1978) alimentando o cerne de uma inquietação artística que perdura até hoje.
Revendo os filmes, é fácil notarmos como a mensagem de Xavier de Oliveira permanece imediata: a luta do ser humano pela alteridade, pelo direito a uma essência diante do meio que o corrompe e assusta.
Neste bate-papo que realizamos em sua casa na Barra da Tijuca, no dia do seu aniversário, Xavier me pareceu o mais coerente dos gênios: vida e obra se misturam em impressões comuns e quase tudo o que está em película, parece estar também no discurso e na emoção deste carioca de 71 anos. Entender Xavier foi percorrer um labirinto de recordações e surpresas, cuja travessia compartilho agora com os leitores do Estranho Encontro.
ESTRANHO ENCONTRO – Xavier, começo pelas primeiras recordações do entrevistado. Infância, adolescência...
XAVIER DE OLIVEIRA – Eu nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, em Benfica, um bairro até hoje de passagem. Quem nascia lá, dizia ter nascido em São Cristóvão [risos]. Eram 24 de novembro de 1937, faço 71 anos, portanto. Por coincidência, hoje.
EE – Sério? Nossa, que cármico! [risos]
XO – Depois que combinamos, eu me lembrei [risos]
EE – [risos] Que coisa...
XO – Podia até beber uma cerveja, em vez de água. [risos]
EE – [risos] E você é primeiro filho, segundo?
XO – Nós somos 3 irmãos. Denoy de Oliveira, que faleceu, morava em São Paulo. Além dele, o Rui de Oliveira, que é designer. Venho de uma família de classe média, mais pra baixa do que pra média. Meu pai era contador, minha mãe trabalhava em serviços do lar, prendas domésticas. Uma família muito unida, meu pai era uma espécie de guia-luz para nós todos. De fato era um homem bastante culto, autodidata. E é curioso, porque ele tinha certas intuições. Por exemplo, gostava de Hermann Hesse, um autor que 40 anos depois...
EE – ... Ah, então por isso que surgiu a sua produtora Lestepe, não é?
XO – Exatamente. Coloquei em homenagem, porque ele às vezes assinava “Lestepe”: Lobo da Estepe. Você é bem perspicaz. Meu pai era vegetariano, corria na praia, isso há 50 anos, e eu morria de vergonha porque ele me levava à praia para correr. Um espírito de uma pessoa que parecia estar vivendo em uma época errada. De modo que eu não venho de nenhum berço adverso à arte. Ao contrário, meu pai desde cedo nos levava para ver filmes no subúrbio do Rio de Janeiro. É triste dizer isso até, pois hoje em dia não se tem mais esses cinemas de rua. Religiosamente às quartas-feiras sempre íamos assistir às fitas em série. Quando surgia uma construção em Benfica, pensávamos logo que fosse um cinema. Mas não, era uma recauchutadora. O bairro é muito fabril. Eu me recordo, de mim e do Denoy todo domingo, infalivelmente, no cinema. De modo que essa foi a nossa ligação, sintetizando bastante.
EE – E isso foi correndo pela adolescência...
XO – Foi correndo pela adolescência. Denoy foi estudar arquitetura, mas não se formou, abandonou no final do ano. Eu fui fazer jornalismo, mas também não terminei. O Rui, este sim, se formou e é artista gráfico. Em meados dos anos 50 saímos de Benfica e nos mudamos para Ipanema. Evidente que aos olhos de um menino com sonhos na cabeça, como também era o Denoy, ir para Ipanema era algo maravilhoso. Caminhar a pé ao cinema. Morar num apartamento, ao invés das casas de subúrbio, casas às vezes com quintal gigantesco. Foi um choque muito grande. Choque cultural, pode-se até dizer. Naquela época o Rio era muito compartimentado, zona norte, zona sul. Mas acontece que neste ínterim, por uma ironia da vida, meu pai morre em 1957. E de repente nós acordamos pro mundo, tínhamos que ganhar dinheiro. Comecei, então, a trabalhar numa livraria. O Denoy, como ajudava meu pai a fazer contabilidade, manteve alguns clientes, mas não podia assinar porque não era contador. Eu prestei um concurso público...
EE – ... Do Banco do Brasil.
XO – Banco do Brasil, exatamente. E fui mandado pra Bahia, mas sempre com o sonho do cinema. Eu lia, tinha o tempo mais disponível. Por sorte, na biblioteca fiz amizade com a moça, bibliotecária. Escrevi crítica de cinema no jornal.
EE – Qual era a cidade?
XO – Itapetinga, sudoeste baiano, na época a 4 horas de Itabuna. O roteiro que eu escrevi do “Gargalhada Final” foi muito em função dos circos que eu via chegando lá, os circos itinerantes. Como, aliás, acontecia no subúrbio em que moramos no Rio. Na nossa primeira casa havia um terreno baldio à frente, em que periodicamente os circos se instalavam. Aquilo teve uma influência muito grande em nossa vida. Inclusive o último filme do Denoy, o “A Grande Noitada”, tem essa presença do circo. Éramos bem meninos mesmo, eu devia ter 5 anos de idade, Denoy tinha 9. Menos, talvez. Ficávamos fascinados por aquele mundo colorido, aquelas cores, aqueles personagens pintados, aquela música maravilhosa, os números de ginástica. Ficávamos bastante impregnados daquilo, chegávamos em casa e começávamos a repetir. Pra dizer a verdade, até hoje eu sei a música [cantarola enquanto faz gestos].
EE – Sempre permanece, de alguma forma...
XO – E anos depois, em Itapetinga, foi estranho porque eu e o Denoy, que estava no Rio, por carta começamos a nos revelar mais do que pessoalmente. Ele contava os sonhos dele, sentia impulso maior de falar da vida. Eu idem. Começamos a entabular uma ampla afinidade espiritual. Meu irmão foi uma pessoa muito importante na minha vida e na vida do Rui. Ele dizia: “Vamos fazer a nossa companhia de cinema. Um dia nós vamos ter a nossa companhia de cinema.” E 3 anos depois de ir para Itapetinga, eu voltei ao Rio.
EE – Não queria mais ficar lá?
XO – Fui transferido. Tempos depois é que eu entregaria a demissão. E nessa volta, o Denoy teve a idéia de produzirmos fotonovela. Olha que coisa idiota [risos]. Seria uma espécie de transição, conseguir juntar dinheiro até chegarmos ao cinema. Fotonovela despertava grande interesse, grandes publicações, especialmente dominadas pela indústria italiana. Mulheres lindas, histórias fantásticas. Tem um filme do Fellini sobre isso, o “Abismo de um Sonho”. A história da mulher que se apaixona pelo personagem da fotonovela, vivido por Alberto Sordi, um comediante muito interessante. Quando ela vai conhecê-lo, tem uma decepção enorme. Pois bem, então o que aconteceu? Produzimos uma fotonovela. Pegamos o Edison Batista, que era fotógrafo, inclusive viria a ser do “Marcelo” [“Marcelo Zona Sul”], do “André, a Cara e a Coragem” e do “Amante Muito Louca”, dirigido pelo Denoy. O Denoy escreveu a tal fotonovela, chamada “Vitrine dos Sonhos”. Tentamos vender e nada. Perdemos tudo, todo dinheiro nosso [risos], e não fizemos coisa nenhuma. Não avançamos, não resultou em nada. Foi uma bola fora.
EE – Deu um baque...
XO – Mas aí você vê como a vida é curiosa. Em 1965, estava eu voltando do Banco do Brasil, e no ônibus alguém havia colocado um jornal entre um banco e outro. Peguei e vi lá: “Curso de direção de cinema, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, dado pelo professor Ruy Guerra.” Primeiramente começou com o Ruy, depois o Gustavo Dahl e depois o Bartolomeu Andrade. Foram 3 professores, um após o outro. Importantíssimo na minha vida, pois de repente eu conheci 12 pessoas, 12 jovens alunos como eu, também apaixonados por cinema.
EE – Você se lembra de quem estava no curso?
XO – Alguns não prosseguiram, mas tinha, por exemplo, o Carlos Frederico, que fez a produção do “Marcelo Zona Sul” e diversos filmes naquela linha do udigrudi, underground. O Renato Neumann, fotógrafo, dirigiu longa-metragem também. Naquele momento era muito importante o convívio, ter contato com pessoas que falavam a mesma linguagem que eu, os mesmos sonhos. Vivíamos juntos, íamos para o cinema, o Frederico gravava os diálogos para depois ouvirmos em casa.
EE – Um encontro de almas, não é?
XO – Foi um encontro de almas. Pessoas afins, sabe? É tão importante. Você viver sozinho, isolado, pensar “será que eu vou conseguir fazer cinema? Será que cinema não é apenas para as pessoas bem nascidas? Será que eu vou ter chance; eu, um bancário?” De repente você encontra um veículo. E num dia estávamos na cafeteria do Museu de Arte Moderna, como existe ainda hoje, e lá chega perto de nós o Sílvio Autuori, jornalista do “Jornal do Brasil”. Naquela época, o “Jornal do Brasil” era de proa, de vanguarda.
EE – Nos tempos da Condessa ainda...
XO – Sim, da Condessa Pereira Carneiro. O Sílvio então nos disse: “Vai sair um concurso de cinema amador, promovido pelo Jornal do Brasil e pela Mesbla. Participem, 16 milímetros.” Foi aquela euforia danada, cada um fez o seu filme.
EE – O Denoy ajudando também ou não?
XO – Não, o Denoy já era um dos donos do Grupo Opinião. Ele e mais 6 companheiros, egressos do CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE [União Nacional dos Estudantes]. Eles estavam com um bom dinheiro, haviam montado o espetáculo “Opinião”, de grande sucesso, com a Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Era um show que juntava a ficção, o documental e a reportagem. Fazia uma simbiose dessas 3 linguagens. Eu estava sempre lá, assistindo, não pagava ingresso [risos]. Era uma válvula de escape para o pensamento de esquerda, você sabe que nós estávamos em uma ditadura muito atroz. Bom, muitas pessoas fora do curso também entraram no festival, e eu me inscrevi com um curta chamado “Escravos de Jó”, que filmei todo na favela da Rocinha.
EE – ... Sozinho?
XO – Eu e o Edison Batista. A primeira vez que ele colocava uma câmera de cinema na mão. 16 mm, que eu comprei. Como ainda era funcionário do banco, tinha um certo recurso de dinheiro, não foi só o Denoy que bancou o filme. No final, ganhei o primeiro prêmio. A influência do “Opinião” nesse curta foi grande.
EE – Então você teve a sua fotonovela particular. Encontrou o jornal no ônibus, se inscreveu num concurso, ganhou.
XO – Essas coincidências. Acho que existe um momento, uma fase da vida do ser humano, especialmente quando se é mais jovem, em que essas coincidências acontecem muito. Devido ao prêmio, eu ganhei um projetor 16 e o Instituto Nacional de Cinema financiou um documentário para mim, sobre o arquiteto Sérgio Bernardes. E assim comecei a sentir o gosto do profissionalismo. Lembro que no júri estavam o Cacá [Diegues], o Flávio Migliaccio, o Alex Viany, o Roberto Farias, Alberto Shatovsky. Eram 11. Alguns gostaram do meu filme, alguns gostaram do rapaz que ficou em segundo lugar.
EE – Você se lembra quem?
XO – Me lembro: o Antonio Calmon.
EE – O Calmon! Ele fez um monte de filmes bastante interessantes no final dos 70...
XO – O Calmon é brilhante, nunca mais eu o vi. Chama a atenção que ambos os filmes eram voltados pro social. Tanto o meu, o “Escravos de Jó”, história de crianças que ao invés de estarem estudando, brincando, são obrigadas a catar alimentos na feira ou trabalhando. O curta do Calmon, “Infância”, era sobre meninos que perambulavam pelas ruas. Curioso que para gravar na favela da Rocinha, uma pessoa me recomendou a um movimento de esquerda, a AP, Ação Popular, que tinha uma base no local: seu José, um birosqueiro. Ele me abriu todos os espaços, me apresentou às famílias do Largo do Boiadeiro, à parte baixa da favela, à parte de cima. Não filmava todo dia, mas fiquei durante 6 meses lá. Já em 1988, vê como mudam as coisas, para rodar um documentário pro governo do Saturnino Braga, eu tive que pedir autorização ao traficante. Levei o texto, um assessor do Zaca, que dominava o tráfico do Santa Marta, me recebeu com um revólver na cintura. Colocou uma pessoa ao meu lado, o tempo todo. Mas, voltando a 1966: decidi procurar os Farias, fui lá na produtora que eles têm até hoje...
EE – ... a Refefê...
XO – Exatamente, a Refefê, e me apresentei ao Roberto Farias. Ele havia gostado muito do “Escravos de Jó” e me disse que iria escrever um roteiro, o “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Pensou em trabalharmos juntos, mas pouco depois houve uma mudança de planos. “Xavier, faz o seguinte: em vez de escrever comigo, escreve uma comédia com o Reginaldo Faria. ‘Os Paqueras’.” Eu ia pro banco, largava ao meio-dia, à tarde a gente se encontrava e ficávamos trabalhando até de noite. Tudo pronto, fui ser assistente de direção dele. E aí voltam novamente aquelas coincidências, sobre as quais eu estava falando. Um dia, em Copacabana, eu dou de cara com o Flavio Tambellini. O pai, não o filho. Grande amigo meu, falecido, ele dirigia o Instituto Nacional de Cinema, que havia bancado o prêmio do “Escravos de Jó”. O Flávio: “Xavier, vou fazer o ‘Um Uísque Antes, Um Cigarro Depois’. Quer trabalhar no roteiro e ser meu assistente?” “Claro que quero.” Trabalhei então com o Flávio, já ganhando dinheiro, o que era a minha preocupação. Você não pode ser amador, tem que ser profissional, para poder se dedicar. E outra: eu vivia em contradição com o banco. O banco era um entrave na minha vida. Comecei até a... [pausa]
EE – A entrar em depressão?
XO – A entrar em depressão. Na época eu namorava uma jornalista, ela conhecia os Pereira Nunes, uma família muito conceituada, de médicos. Me levaram a um psiquiatra, e ele: “Bom, você tem que sair do banco.” Disse tudo o que eu queria ouvir. Aliás, mesmo que ele não dissesse, eu sairia do banco. E assim entreguei a demissão no Banco do Brasil. Os colegas não entenderam nada. “O que você vai fazer?” Cinema. “Cinema? Vai ser galã?” Vou ser diretor. “Diretor? O que é isso?” Ninguém sabia o que era “diretor de cinema”. Nesse espaço de tempo, ainda no “Os Paqueras”, fico noivo da Armênia [Nercessian], com quem sou casado até hoje. Aliás, a equipe morreu de rir, porque eu não tinha como provar a aliança, e ela levou para mim o mostruário. Eu ficava experimentando durante as filmagens... [risos]
EE – [risos] E justo no “Os Paqueras” que não era bem o ambiente do moço casador...
XO – [risos] Pois é! Nos casamos, eu não tinha um centavo no bolso. Quem me emprestou dinheiro pra lua-de-mel foi um primo. “Meu Deus, e agora? O que vai ser de mim? Casado, sem nada no bolso. Sem emprego...” Ela trabalhava nas Nações Unidas, na época, na representação do Rio. Mas aí eu tive a idéia. Comecei a escrever o “Marcelo Zona Sul”, terminei em 9 dias. Fico espantado, como pude ser tão rápido. Hoje levo um mês, dois para escrever um roteiro. E aquilo fluiu assim. Consegui um pequeno capital, pra iniciar a filmagem. Tudo seria feito na base do semi-profissionalismo: uma equipe de 12 pessoas, estreantes, praticamente. O Edison nunca havia fotografado um longa-metragem. Eu nunca tinha dirigido, a não ser o “Escravos de Jó”, que era um curta.
EE – O Stepan, por exemplo, é da sua família, não é?
XO – Sim, ele é irmão da Armênia, tinha 15 anos. Você vê que a vida, volto a dizer, a vida tem uns encaixes... Fico espantado. Ele morava em Goiás, veio passar as férias no Rio. Aquele menino, perturbador pra caramba... [risos]
EE – [risos]
XO – Não gostava que eu beijasse a irmã dele... E eu agoniado para conseguir um ator. O dinheiro era muito pouco, e dinheiro vai embora, se você não controla. Como eu tinha boas relações com o “Jornal do Brasil”, por conta do prêmio, programamos um concurso público. Atores e atrizes, de 15 anos. Hoje em dia tem aos montes, naquela época não havia, nessa faixa de idade. Falei com o meu irmão Denoy para me emprestar o teatro na segunda-feira, dia que não tinha espetáculo. Ele chamou uns atores, amigos, para compor a banca examinadora. Apareceram centenas de crianças, os tipos mais variados, e o Stepan estava em casa. Nisso aparece lá por casa o Neneco, meu primo e pergunta: “Stepan, cadê o Chico [o primeiro nome de Xavier é Francisco]?” “Ah, ele foi fazer um teste, um negócio do filme dele.” “Fazer um teste com os meninos e você aqui em casa? Vamos lá agora!” Só para brincar comigo, levou o Stepan. O Carlos Frederico, que organizava a fila, virou pra mim: “Ô, Xavier, tem um garoto lá embaixo dando bombada na fila.” Bombada é quando você esbarra num, e outro vai esbarrando em seguida. “Tem um garoto dando bombada na fila, fui dar uma bronca e ele disse que é seu cunhado.”
EE – [risos] Situação constrangedora...
XO – “O que o Stepan veio fazer aqui?!” Ele não tinha nada a ver com o “Marcelo Zona Sul”, não era ator, sotaque goiano, branco, magro. Era a antítese do personagem que eu tinha imaginado, de um garoto zona sul, queimado de sol. Aí chega a hora do teste do Stepan. Ele fez um teste espetacular, espetacular. Uma parte de leitura, uma parte de improviso. Quando chegou na parte do improviso, ele deitou e rolou. O Stepan é uma pessoa muito brilhante. Não era eu quem julgava, eram os atores. Mas falei: “Ok, você fez um bom teste, mas não combina com o meu filme. Tchau.” Continuei o concurso em São Paulo, o Stepan foi embora para Goiânia. Um dia eu encontro na rua com uma saudosa atriz, a Glauce Rocha. Por coincidência, em frente ao teatro que hoje tem o nome dela. Eu não a conhecia, só de palco, mas a pessoa que estava comigo, sim. Contou da minha busca e ela me indicou uma garota muita boa, que havia trabalhado com ela em Brasília. Françoise Forton. O Lula foi fácil achar, porque ele trabalhou num curta do Carlos Frederico. A Simone Malaguti era filha de um amigo meu, o Manoel Malaguti.
EE – O problema estava em encontrar o protagonista...
XO – E a essa altura meu dinheiro já estava acabando. O Denoy, que era mais pragmático, me disse “Chico, pior do que filmar com o Stepan é o seu dinheiro acabar e você não fazer mais nada. O teste dele foi ótimo, você está com preconceito pelo fato de ele ser seu cunhado.” Não era só isso, ele não tinha o tipo, mas chamamos de volta o Stepan. “Você faz o filme, só que eu vou ter que dublar com outro, por causa do sotaque.” Terminamos a filmagem, ele foi pra Goiânia, eu comecei a procurar um dublador. Mas eram adultos tentando fazer voz de garoto. “Estou perdido”. Mandei um telegrama: “Stepan, volta de novo...” Ele dublou, e coloquei uma pessoa do lado, que eu chamava de “departamento de sotaque”. Quando uma frase saía à goiana, nós corrigíamos.
EE – Xavier, o roteiro inicialmente não se chamava “Marcelo Zona Sul”, era “Jipe Sem Capota”. Houve outros títulos intermediários?
XO – Não, só este. Quem deu o título foi a Geny Marcondes, ainda viva, pessoa poderosa intelectualmente, das mais fascinantes que já conheci. Era musicista, funcionária da Rádio MEC, ela havia se casado com o famoso músico, Koellreutter, separou-se dele e conheceu o Denoy. Ficaram juntos por nove anos, e ela teve grande influência na minha vida e na vida do meu irmão. Foi ela quem fez a música do “Escravos de Jó”.
EE – E em relação ao processo de filmagem, como foi? Pela primeira vez, você diretor de longa-metragem...
XO – Impressionante como às vezes as coisas saem de maneira espontânea. No caso do roteiro já havia sido assim. Recentemente, participando do Sundance, eu comecei a ver que todos os paradigmas de roteiro foram incluídos no “Marcelo” instintivamente. Os tais pontos de virada, o clímax, a definição dos personagens, o antagonismo entre eles. Na base da espontaneidade, da intuição. Outras coisas, não. Alguns elementos específicos não foram colocados inconscientemente, não.
EE – Por exemplo?
XO – O interrogatório na escola. Eram comuns os IPMs [Inquérito Policial Militar]. Eu mesmo respondi a um, no Banco do Brasil, por ter participado de uma greve. Se você observar o filme, a inspetora, vivida pela atriz Pichin Plá, usava um apito, como se fosse um sargento. Havia intencionalmente ali a idéia de consignar o ar de IPM. Mas, no geral, o roteiro foi escrito até com uma certa irresponsabilidade, vamos dizer. Porque escrevi um personagem profundamente transgressor, irreverente. O filme acabou sendo interditado pela Censura, quase proibido no território nacional. Quando o levei pra Brasília, eu sabia que não estava levando um filme inocente.
EE – Apesar de ter crianças, um filme adulto.
XO – Tanto assim que eu procurei me precaver. A Censura federal era então dirigida por um civil, senhor com uma postura intelectual, o Professor Wilson Aguiar. Soube que ele gostava muito do Pimentinha, uma revista de história em quadrinhos. “Xavier, se ele perguntar como é o filme, você diz que é parecido com o Pimentinha.” [risos] Aí eu falei isso pra ele. “Qual é a história?” “É tipo o Pimentinha, professor.” Seguiu para a primeira comissão de censores, e voltei dali a 2 dias. “Olha, o seu filme não tem nada de inocente. Foi proibido em todo território brasileiro. Quer ver o que escreveram? Pernicioso à juventude, Marcelo é um personagem que alicia jovens pra fugir, rouba prova, fuma em aula. Personagem que...” Meu Deus, que encrenca eu fiz! “Professor, se este filme for interditado, eu estou arruinado. É o meu primeiro longa-metragem, coloquei toda a minha vida aqui.” Eu tinha um dinheirinho inicial, mas o filme foi bancado pela Comissão de Auxílio à Indústria do Cinema, CAIC, uma entidade do Rio de Janeiro, nos tempos do governo do Carlos Lacerda, do Negrão de Lima. “Bom, façamos isto: você redige um recurso, eu entrego para uma outra comissão, mais branda.” Mas, novamente, os relatórios foram terríveis. E se não fosse aprovado pela terceira comissão, acabava. Era irrecorrível.
EE – Em alguns casos, eles até destruíam as cópias. Teve caso de filme que sumiu, desapareceu.
XO – E acontecia uma coisa, é bom de ser divulgado: os censores civis eram piores do que os militares. Eram mais realistas do que o rei. Havia um pânico de perderem os seus empregos, de serem denunciados como comunistas.
EE – Eram burocratas...
XO – Algo esquizofrênico, mesmo, de Kafka. Era uma tortura para os produtores. Já começava com o aviso: “Você volta daqui a 4 dias”. E o que você faz 4 dias em Brasília? Você enlouquecia, realmente. Bom, voltando: o censor me disse que o “Marcelo” seria enviado para uma terceira comissão, de militares. No dia, fiquei bambo, numa ante-sala. Os militares assistindo ao filme e eu do lado de fora, com o Stepan. Dias antes eu havia telefonado pra ele, que casualmente estava passando lá por Goiânia: “Stepan, está dando um problema danado. Nosso filme pegou 2 interdições, vem pra cá, me dá uma força.” Eu morrendo de medo. De repente, termina a sessão. Não ouvia nada. Abre-se a porta, os militares saem rindo. Quando viram o Stepan, então... “Você, rapaz! É fogo mesmo, hein?!” “Ganhei os militares”, pensei comigo na hora. “Como é que você faz aquilo, rapaz?” E eles brincando com o Stepan, que é muito vivo. Confundiram o personagem com o ator, o que é natural. Enfim, liberaram o filme, mas com a última frase cortada. Quando o Marcelo diz no final “Só volto pra casa porque estou com fome”, queriam dar a impressão de que ele voltaria por causa dos pais. Evidente que eu só cortei nas cópias, naquela época não se cortava o negativo. A obra era mantida intacta, na esperança de que algum dia fosse vista na íntegra.
EE – Uma via-crúcis que deu certo.
XO – Mas ainda não havia acabado. Entrou em cartaz, fez um sucesso danado, eu quis que o Stepan fosse no programa de televisão do Flávio Cavalcanti. Tive que pedir autorização, porque ele era menor de idade. Fui no Juizado de Menores, me atendeu o responsável, Dr. Alírio Cavalieri. “Vem cá, se eu trocar o seu filme pra 18 anos tem algum problema?” Eu fui pedir autorização pro Stepan, não fui falar de censura. “18 anos, Dr.? Mas a Censura já liberou, o filme é livre. Se for pra 18 anos vai me prejudicar muito, perco um público, Dr.” “Está bom. Porque esteve aqui comigo uma comissão de professores e psicólogos, denunciando o seu filme.” O Dr. Alírio enfim não mexeu na censura e ainda deu a autorização pro Stepan, citando textualmente o filme como um “poema cinematográfico”. Um radialista e crítico de cinema, Adolfo Cruz, também denunciou o filme, dizendo que era pernicioso para a juventude etc. Em São Paulo também tive problemas com uma tal “Comarca” que queria subir a censura, e eu não agüentava mais, estava exausto, pedi ao Denoy para ir lá brigar por mim. Felizmente ele conseguiu resolver tudo.
EE – E qual foi a postura do Flávio em relação ao filme? Ele era meio histriônico...
XO – Olha, o Flávio Cavalcanti teve uma postura bacana com o filme, sabe? Apesar de ser uma pessoa controvertida politicamente. Mas não viu nada que desagradasse. Não era político, no sentido partidário.
EE – Seu filme seguinte, o “André, a Cara e a Coragem” apesar de brilhante e de ter uma estrutura de produção melhor, não teve a mesma bilheteria. A que você reputa isso?
XO – Existe alguma coisa imponderável no sucesso, alguma coisa que foge, nebulosa demais. Do contrário, seria fácil colocar os dados no computador e ele dar uma resposta. O “Marcelo Zona Sul” entrou em cartaz numa quarta-feira de cinzas, estrelado por quatro meninos desconhecidos, preto-e-branco quando já se fazia colorido na época. “Os Paqueras”, anterior ao nosso, é colorido. Por que um filme desses explode? E por que o “André, a Cara e a Coragem”, profissional, com equipamentos, com uma estrutura muito melhor de produção, em cores, não obteve sucesso? Algum componente que eu não sei dizer. Eu não tinha noção nem do sucesso. Vi as filas em Copacabana, eu via aquelas pessoas, mas não chegava a absorver aquilo, não sabia a proporção. De fato, o filme estourou. É uma coisa até meio estranha o que eu vou falar, parece mentira, mas é verdade. O “Marcelo” se pagou em Copacabana. Você pagar um filme em um bairro do Rio, do Brasil. E estreou em dois cinemas: no Metro e no Bruni. O filme se pagou em dois cinemas de Copacabana. Impressionante isso. No caso do “André”, havia nele uma implicação social, além disso não foi tão bem lançado quanto o “Marcelo”, que teve uma distribuidora muito forte, a Ipanema Filmes, que pertencia, dentre outros, ao Jarbas Barbosa, irmão do Chacrinha. E uma distribuidora se torna poderosa no momento em que possui títulos de peso. Ou seja: não tinha miúras, como chamavam naquela época os filmes de fracasso. Ela chegava com muita autoridade.
EE – O “Marcelo” me parece aglutinador de uma nostalgia, de um espírito.
XO – O filme continua de pé, o que não é uma coisa comum. Certos filmes envelhecem. Pode ser até uma heresia o que eu vou falar, mas, por exemplo, dois filmes que explodiram juntos, importantíssimos: “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo”. Volta e meia revejo um e outro. O filme do Nelson continua de pé. O mesmo não aconteceu, no meu modesto ponto de vista, com “Deus e o Diabo”. Envelheceu em certos aspectos, não manteve a mesma força. “Terra em Transe” manteve. O “Marcelo”, que não tem nada a ver com esses que citei, permaneceu. As pessoas dizem que é cult, que o filme já é um clássico do nosso cinema. Eu vou morrer e ele vai sobreviver, vai permanecer.
EE – Aliás, aproveitando essa linha do cult, um componente importante é a trilha sonora do Liverpool. Como você conheceu a banda?
XO – Através da Geny Marcondes. Eu a convidei para fazer a música do “Marcelo”, junto com o Denoy, e ela então sugeriu o nome do Liverpool Sound. Encontrou os garotos por ocasião de um concurso de música em que ela era membro do júri. Ficou muito encantada por eles. Eram gaúchos, viajaram pro Rio de Janeiro, ficaram ensaiando, tocando. O nome do cantor era Foguete. [Cantando um trecho:] “Vento de estrada no teu rosto...” Bem cabeludos, tipos fantasiosos, vestidos daquela maneira extravagante. Um motorista de táxi perguntou pra eles, segundo me contaram: “Vem cá, esse cabelo de vocês não incomoda, não?” “Não, não. Incomoda os outros.” [risos]
EE – [risos] Tirada perfeita.
XO – Conheci outro rapaz cabeludo assim, também gaúcho. Caio Fernando Abreu. Assistiu ao “Marcelo”, o filme ficou um ano em cartaz no Rio Grande do Sul. O Caio conseguiu entrar em contato comigo, foi lá em casa uma tarde. Perguntava tantas coisas. Passam-se os anos, ele se torna um grande escritor.
EE – Imagino o encontro pra ele. Conversar com alguém que participou da formação dele.
XO – O “Marcelo” teve disso, além daquelas loucuras e irresponsabilidades que eu comentei. Fiz verdadeiras barbaridades. Por exemplo: quando a menina pergunta pro Marcelo o número do telefone, eu coloquei um número verdadeiro, o do meu amigo Carlos Frederico! E ele riu pra caramba quando contei! Ou seja, infernizei a vida da família dele, com tantos telefonemas da garotada. Outro absurdo: ou o país era mais louco, inocente ou não sei o quê, mas para as cenas da escola, fui em uma, a André Maurois, e pedi: “Diretora, eu queria filmar um longa-metragem aqui.” E ela prontamente me atendeu: “Está aqui a chave da escola. Filma.” Assim, desse jeito. Gravei as cenas sábado e domingo.
EE – Essa espécie de caos não houve no “André”, pelo que você está contando. O que você lembra do set?
XO – Olha, a filmagem do “André” foi em tom nostálgico, em Benfica. Aquele era exatamente o filme que eu queria fazer. Eu não queria fazer o “Marcelo Zona Sul 2”, queria mostrar os problemas da juventude, a falta de emprego, as primeiras experiências no sexo, no amor, no trabalho, na amizade. O personagem vinha do interior de Minas, Carangola, e partia para o Rio de Janeiro pra ganhar a vida. Mostra-se esse confronto cultural entre cidade pequena e cidade grande, com todos os seus percalços. As falsas amizades, influências ruins, dentre outras coisas. O André não se deixa endossar pelo nocivo da vida, ele quer trabalhar, ele almeja. No final ele está perdido, o que algumas pessoas encararam como aspecto positivo. Os papéis picados, em dezembro, ele no meio daquela euforia, diante de alguns problemas que aconteceram. Como disse, é um filme que eu gostei de ter feito.
EE – Aliás, Xavier, persiste um elemento na sua obra que acho importante comentarmos. A questão dos seus filmes terem um aspecto filosófico, até existencialista, de mal-estar diante do mundo. Do ser humano envolvido por um aspecto social pelo qual ele não quer ser envolvido, pois ele quer preservar a integridade existencial dele.
XO – Isso é bem observado e pertinente mesmo. Você faz os filmes, os anos passam, você se afasta tanto deles, às vezes um espaço de 30 anos. É muito. Acho perfeitamente, muito bem observado, isso que você diz. Uma perplexidade dos personagens diante do mundo ao redor, que é mais forte do que eles. Perplexidade que existe no Marcelo, voltando pra casa; existe no André, perdido naquela cidade em festa e ele numa profunda tristeza; no “Vampiro”, quando o Carlos dança com a Sueli. Eles se abraçam, ele diz “eu te amo”, não ama nada. Vai continuar a ser o mesmo, está perdido no próprio mundo particular. Ele não venceu o mundo, ele foi vencido. No “Gargalhada Final”, quando pai e filho andam pela estrada de motocicleta, dizendo “vamos comer gilete”, na verdade eles vão se dar mal. Porque o circo não é mais aquilo que está na cabeça do velho. O que eles vão ser na grande metrópole? Eu não intelectualizava sobre isto, essas coisas saem muito ditadas pela minha própria natureza. E percebo que, na verdade, se acaba sendo um pouco até pessimista, com relação ao futuro de cada personagem.
EE – É retornar sempre.
XO – É retornar sempre. O Marcelo vai acabar sendo um burocrata, batendo ponto, igual ao pai. É uma certa desolação.
EE – Agora, o “Gargalhada Final” e o “Vampiro de Copacabana” foram rodados mais ou menos juntos, não? Por que o “Gargalhada” demorou mais tempo a ser terminado?
XO – Escrevi os dois simultaneamente. Tinha levado ao Severiano Ribeiro ambos os roteiros, para ele se associar comigo. “Gargalhada Final” já era um filme que eu curtia mais do que o “Vampiro”. Ocorre que o responsável me disse que só estava interessado no segundo, aí fizemos juntos. O “Vampiro” é, portanto, um filme que não tem dinheiro do governo, nada. Éramos eu, o Amilton Freitas, produtor de cinema, e o Severiano Ribeiro. Também pequenas participações do equipamento, mas basicamente 3 sócios. O Amilton sempre foi especial, ele sabia que eu estava em dificuldades durante a filmagem, e pelo contrato só teria que me dar dinheiro 15 dias depois. “Vem cá, eu vou te adiantar aquela parcela...” “Não, não, Amilton, pelo contrato você só tem que me dar depois.” “Não, eu te adianto já.” Um camarada fantástico, pessoa boníssima. E eu estava numa situação muito difícil. Foram os piores anos da minha vida. 74-75...
EE – Emocionalmente?
XO – Não, dinheiro. Nós tínhamos um apartamento em Ipanema, que era da minha mãe e passou pra mim. Foi lá que eu filmei o “Marcelo”, por sinal. A Embrafilme me negou um reajuste no financiamento, então eu tive que vendê-lo pra pagar as dívidas do “Gargalhada Final”. Dívidas com os bancos, agiotas. Eu vivia muito mal, muito mal mesmo. Assim de 7 horas da manhã bater em casa o oficial de justiça. Acordava de noite com pressão alta, ia pro hospital, ficava em repouso, voltava pra casa, às vezes a Armênia não tinha nem acordado ainda e ficava sem saber. Enfim, eu estava muito mal de vida e achava que com o “Vampiro” eu ia pagar as minhas dívidas todas, ia recuperar o meu apartamento, comprar outro. Fazia uma porção de projeções. Eu só vivia de cinema. E ainda contratei um ator [André Valli] que o Severiano detestou. “Xavier, se eu soubesse que você iria chamar esse cara, eu não teria entrado de sócio.” Mas era um ator excelente, fez um ótimo trabalho.
EE – Então o filme tem umas pinceladas autobiográficas. Ele diz “eu devo ao agiota”...
XO – Tem sim, alguma coisa. O Severiano lançou o filme, mas não obteve a resposta comercial que eu esperava. Não foi fracasso, não perdi dinheiro, mas lucrei pouco. E estranhamente, essas coisas do imponderável, é o filme pelo qual eu fui mais premiado. Ganhei a Coruja de Ouro, por exemplo. Interessante que no “Vampiro” eu tive que inventar um esquema: precisava filmar o carnaval, mas só poderia começar dali a 3 meses. Digamos que estivesse em fevereiro, só poderia filmar em maio. Filmei por antecipação com o André Valli, na semana de carnaval. No mais, tudo correu de uma forma muito linear, sem problemas. O que eu sempre esbarrei, em todos os meus trabalhos, é a própria falta de grana. Às vezes não transparece, no “Vampiro” creio que não transparece. Procuramos várias locações diferentes, a casa do protagonista centramos em um apartamento em Santa Teresa, cenografamos tudo. Mas parando pra pensar, acho que o erro do “Vampiro” foi eu ter perdido um pouco aquele negócio da ingenuidade, escrevi o roteiro com um certo calculismo. “Isso aqui vai agradar pela comédia, pode ir também pelo lado do erotismo.”
EE – Até porque, contextualizando, você estava no período da pornochanchada.
XO – Eu tive essa tentação, é uma estupidez. Você não pode deixar de ser quem você é, nunca. Carreguei muito nas tintas, no afã de ganhar dinheiro. Acabei fazendo um filme híbrido, nem autoral, caso do “Gargalhada”, nem fiz a chanchada do [Carlo] Mossy. Fiquei num meio-termo maldito. O “Gargalhada” saiu espontaneamente, numa boa. Meu lado mais solto, mais poético, sem compromisso de querer ganhar dinheiro. Nada disso. Mas no caso do “Vampiro”, realmente eu pensei muito nos dias que eu estava passando. Tinha um agiota com a voz metálica, e 10 dias antes do meu cheque vencer, porque eu passava cheque pré-datado: [imita a voz] “Olá, Xavier, como vai? É o Fulano, estou só avisando que daqui a 10 dias...” Um dia antes: “Olá, Xavier, como vai?...” Paguei esse cara, me livrei. Eis que depois de 10 anos, mais ou menos, ele telefona de novo. “Oi, Xavier, é o Fulano.” Quando ele falou, me deu um arrepio. Mas não era dívida. O filho dele queria ser ator...
EE – [risos] Coitado do filho, poderia ser um Lawrence Olivier dos trópicos...
XO – [risos] Eu disse “não sei, não posso ajudar.” Enfim, era uma época terrível. Com o tempo você começa a fazer um juízo crítico, cheguei à conclusão de que se justificou pelo momento, pelas circunstâncias. O “Gargalhada Final”, por sua vez, eu escrevi pensando no Fregolente. Cada seqüência, cada plano. A primeira vez que escrevi pensando em um ator. Impressionante, aquele é monstro sagrado. Uma das personalidades mais curiosas que eu conheci em toda a minha vida. Eu o tinha visto no teatro, um ator rodriguiano, e também numa peça de grande sucesso no teatro do meu irmão. “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”, de autoria final do Oduvaldo Vianna Filho e do Ferreira Gullar. Assisti muito ao Fregolente, vi filmes dele, mas, modéstia à parte, acho que o filme em que ele está mais o Fregolente é o “Gargalhada Final”. Ele mesmo dizia isso. “Com esse filme, vou pendurar a minha máscara”, assim como os jogadores penduram a chuteira. Ambrósio Fregolente. É nome de rua.
EE – E se formou em Medicina aos 52 anos...
XO – Pois é, o Rodolfo Arena, sobre quem o Stepan fez um curta, era outro camarada muito sarcástico. Dois doidos. [Com voz de trovão:] “Arena, me formei em Medicina, Arena!” “ Ô, Frego, receitado por você eu não tomo nem chope!” [risos]
EE – [risos]
XO – Eram dois personagens, duas figuras fantásticas, dois grandes atores. Convidei o Fregolente, ele topou. Aí foi a mulher dele, a Dona Cremilda, no meu escritório da rua Senador Dantas 19. E era um senhor ator, uma das coisas mais vulcânicas, talentoso, impulsivo, ao mesmo tempo muito impaciente. Eu ia dirigi-lo e ele: “Não, não... Xavier... Xavier... Deixa que eu faço, deixa que eu faço! Eu vou fazer, se você não gostar, você diz, está bem?” Mas no final ele ficou muito aborrecido comigo, muito chateado, porque custei a dublar o filme. Ficou ofendido, com toda razão. Para convencê-lo a dublar, fui com a Dona Cremilda lá em Mendes, no hospital em que ele trabalhava. Era psiquiatra. Cheguei lá, ele não queria nem me ver. “O que esse cara quer comigo?” “É o Xavier, Frego, vamos conversar, Frego.” E me esculhambou, pelo fato de eu não ter terminado o filme. Só que eu não podia, devido ao contrato com o Severiano Ribeiro, eu não podia passar do prazo. Apesar dos pesares, consegui fazer com que ele dublasse o filme.
EE – Esse processo criativo do “Gargalhada”, como foi?
XO – No “Gargalhada Final” eu escrevi num fluxo muito parecido com o do “Marcelo Zona Sul”. E eu também tinha em mente que deveria fazer uma história com poucos personagens, porque eu tinha poucos recursos. Consegui uma parceria com a Embrafilme, mas não no sistema de co-produção, em que ela entrava e se o filme rendesse, tudo bem; se não rendesse, paciência. Não, eu entrei no sistema de financiamento. Um industrial paulista, cunhado do Denoy, avalizou os títulos. A Embrafilme financiou e ia descontando as minhas dívidas na própria renda. O filme se pagou tranquilamente.
EE – Ele tem um clima de road movie. Vocês pegam a estrada, vão recortando o país.
XO – Saímos aqui do Rio, fomos seguindo a estrada. Minha mulher trabalhou na produção. Fomos até o interior de São Paulo, ali perto de Areias, depois naquela região toda de Porto Ferreira. Foi muito difícil de ser feito, porque de repente eu tinha que ter um riacho junto de tal coisa.
EE – Andando e procurando.
XO – Andando e procurando. Iam pessoas na frente, buscando locações. E se você perguntar pra mim qual o filme que mais me toca, é este. Pela proposta, pelo sonho do artista, pela reminiscência do circo. Toda essa parte afetiva do filme. Pela relação pai e filho, por aquele amor que os dois sentem um pelo outro. Eles não se abandonam, ficam numa situação final que parece o globo da morte. Recebi críticas muito interessantes, que me envaideceram. Uma delas dizia que o filme era para ser visto não agora, mas no futuro. Mas é ainda pouco conhecido. Quando fui rodar o telefilme “O Homem Que Sabia Javanês”, um muito bom ator, que mora nos Estados Unidos, Carlos Alberto Riccelli, veio falar comigo. A gente não se conhecia, só de nome. “Xavier, se você soubesse como eu gosto do ‘Gargalhada Final’. Gostaria até de revê-lo”. É bom filmar com um ator que se interessa pelo seu trabalho, que gosta. Emprestei pra ele uma cópia vhs que eu tinha.
EE – Depois do “Gargalhada Final”, de 1977, você volta em 1997, com o “Adágio ao Sol”.
XO – Nesse período minha vida teve um breque danado. Porque, como eu falei, vendi o apartamento, o “Vampiro” não me deu o retorno financeiro, o “Gargalhada” também não foi esse estouro todo de renda. Quer dizer, se pagou, mas não rendeu. Um dia conversei com uma pessoa pela qual eu tenho muito carinho, pela memória dele, o Cyl Farney. Belíssimo ator, um príncipe de criatura. Guardo uma carta bonita dele, ele nem se lembrava, me enviou quando assistiu ao “Marcelo”. “Por que você não faz documentário pra pagar as suas dívidas, Xavier? Eu também já estive assim como você. Devia tanto dinheiro que eu tinha um problema de dormência na perna. No dia em que eu paguei as minhas dívidas, sumiu a dormência. Vou ver se consigo para você.” Recebi o convite do Jorge Jonas, diretor de “O Auto da Compadecida”. O Cyl fez a cabeça do Jonas, que me chamou para dirigir um documentário sobre o lançamento de um carro, uma caminhonete chamada F-1000.
EE – E assim a publicidade salvou muitos nomes do cinema brasileiro, como você.
XO – Já na retomada do cinema brasileiro, entrei com o projeto do “Adágio ao Sol”. Escrevi o roteiro, levei pro [Luiz Carlos] Barreto, que não se interessou. Eu sem produtora, entreguei pra Rossana Ghessa, da Verona Filmes. Ela captou recursos, mas nessa parte toda econômica eu fiquei de lado, porque não era o caso. “Adágio ao Sol” é um roteiro premiado, o Marzo ficou muito interessado em fazer, viu que a história era bonita. Mas não foi um filme em que tive prazer, pois trabalhei sob inúmeros problemas. Não gosto de botar culpa nos outros, mas também não quero me atribuir toda a culpa. É um filme, para mim, rejeitado. Não fiz bem, não ficou bom, não gosto do resultado artístico. Cada dia era um drama qualquer que surgia. Tem coisas que eu acho mal realizadas, tem coisas que eu acho melhores. Na verdade, eu não deveria ter dado o start sem saber exatamente se todas as condições de filmagem estavam lá. Em 2003, ganhei a concorrência de um média-metragem, quando o governo fazia telefilmes. 52 minutos. Passei pro cinema, sem adaptar época, um filme baseado no “O Homem Que Sabia Javanês”, do conto homônimo do Lima Barreto. Um filme de que eu gosto muito, só teve um porém na distribuição. No elenco, além do Riccelli, Sérgio Mamberti, Sérgio Viotti, Zózimo Bulbul. Coloquei o Bulbul como participação especial, no papel do africano. Está no conto, inclusive. Inseriu idéias dele, como a da reza dos africanos. Fiquei contente com o resultado desse filme, me deu um certo alento como realizador. Tive uma experiência muito interessante de filmar pela primeira vez com duas câmeras, movimentando as câmeras, os atores, no corte. Produção muito bacana mesmo, com todos os recursos, tudo correndo perfeito. A equipe de 60 pessoas, eu nunca tive isso na minha vida. 60 pessoas, parece mentira.
EE – Passando às influências na sua obra, Xavier. Até vejo o seu cabelo meio Jean-Pierre Léaud, pro lado... [risos]
XO – [risos] É...
EE – ... E lembro de “Os Incompreendidos”. Quais as outras referências, importantes pra você?
XO – Antes do “Marcelo” eu não tinha visto “Os Incompreendidos”, mas gosto muito do Truffaut, grande cineasta. Havia assistido ao “Jules et Jim”, depois vi todos os filmes. Existem outros autores que também me influenciaram. Por exemplo: poucos conhecem o “Studs Lonigan”, do Irving Lerner, que pegou o título imbecil aqui no Brasil de “Uma vida em pecado”. Gosto muito desse filme, pode ter me influenciado mais até do que o próprio Truffaut. E também assisti a um filme que me impressionou muito, antes de começar como diretor, o “Mensageiro do Diabo”, de Charles Laughton. Eu não sei dizer qual a ponte, mas me impressionou muito, muito, muito. Vi num cinema antigo em Ipanema, o Pirajá. Essas coisas todas vão permeando o seu imaginário. Fellini, “As Noites de Cabíria”, “Estrada da Vida”. As pessoas comentam que o “Gargalhada” tem influências do Fellini, mas eu não sei exatamente se é influência dele ou se a matriz é a mesma: o circo.
EE – E como você se sentia no panorama da época? O seu cinema não era necessariamente cinemanovista.
XO – Não era, por isso que eu disse que eu e o Calmon, apesar da mesma origem, acabamos nos afastando do ponto de vista artístico. Fui trabalhar com o Roberto, com o Flávio, com o Reginaldo; o Calmon foi ser assistente do Glauber, depois do Cacá. Curioso, porque nós éramos uma novidade também. Não havia cinema amador no Rio de Janeiro. Me lembro que o Barreto convidou a nós todos para ir à casa dele. As pessoas começaram a querer saber quem era aquela garotada que surgiu, saber a nossa opinião também. O Alex Viany, certa vez, fez uma entrevista longa conosco, para publicar no “Jornal do Brasil”. O Glauber escreveu matérias sobre os filmes, inclusive sobre o “Escravos de Jó”. Havia uma espécie de carinho, de aceitação, um “venha até nós”, dos cineastas que já eram conceituados.
EE – Mas que depois não se confirmou, ao longo do tempo. Porque bifurcou.
XO – Conheci todas essas pessoas do Cinema Novo, eram meus amigos, até. Gostava muito do Leon Hirszman, que era uma pessoa muito brilhante. O Joaquim Pedro, o David Neves, o Marcos Farias, o Arnaldo Jabor. Pessoas muito preparadas, cultas, eles tinham as teorias deles. O Leon era uma cabeça pensante. Alguns se reuniam em frente ao bar da Líder, um laboratório de revelação e cópia dos filmes, em Botafogo, na rua Álvaro Ramos. Mas eles seguiam uma concepção estética que às vezes colocava de fora outras pessoas que não pertencessem à mesma visão. Por outro lado, quando nós estávamos escrevendo “Os Paqueras”, eu e o Reginaldo, surgiu uma comédia brasileira que não tinha nada a ver de chanchada, que explodiu e trouxe um novo conceito, o “Todas As Mulheres do Mundo”, do Domingos Oliveira. Esse filme foi muito importante. Tanto assim que nós começamos até a mudar algumas coisas. Implicitamente você começa a mudar alguns pensamentos que você estava querendo desenvolver. Era um filme de costumes, uma história de amor, muito espontânea. Dois anos depois surge o “Macunaíma”, dirigido por um dos próceres do Cinema Novo, o Joaquim Pedro, e que se apropria de elementos da chanchada para criar uma obra soberba. Ou seja, os movimentos se sucedem, cada qual com o seu estilo. No geral, o Cinema Novo foi importante, como foi importante também a Bossa Nova. Mas era um cinema elitista, voltado para um público selecionado, em flagrante oposição à chanchada. Não eram filme populares, eles não tinham essa pretensão de um filme popular.
EE – A Lestepe estava na ativa bem nesse meio-tempo. Como ela surgiu, efetivamente?
XO – Começa em 66, pouco depois de “Escravos de Jó”. Montei a Lestepe porque precisava ter uma empresa. Além de mim, eram mais 4 pessoas: Denoy; Luiza Prado, uma amiga nossa, ceramista; o filho dela, Laury Ferrari, economista, importante para fazer os projetos; e o Rui, meu irmão. Tentamos levantar junto à CAIC um financiamento para outro filme, anterior ao “Marcelo Zona Sul”. Uns 3 ou 4 anos antes. Mas, um amigo nosso, de dentro da CAIC, me deu um conselho: “Você tem 4 sócios. Com exceção de você, todos têm problemas políticos.” O Denoy no Opinião; a Luiza no Partido Comunista; o filho dela, menos; o Ruy estudando desenho, animação, na Hungria, país comunista na época. “Qualquer projeto que você apresentar na CAIC será investigado, a vida dos sócios será investigada. Se der algum contratempo, Xavier, você está perdido.”
EE – O que você fez?
XO – Falei pras pessoas saírem. Ficamos somente eu e minha mãe. A partir daí, já em 69, consigo financiamento pro “Marcelo Zona Sul”. A CAIC era então dirigida por um coronel do Exército, o Coronel Américo. Homem muito íntegro, sujeito direito, técnico, professor de português. A Armênia o convidou a assistir ao que nós já tínhamos: o filme estava em banda dupla, a imagem e o som correndo fora do filme, em magnético. Ele foi ao estúdio da Herbert Richers, eu coloquei 3 rolos para ele ver, 10 minutos cada um. Parte 2 com a parte 4, enfim, pra ele ter uma visão geral. Ele assistiu, percebeu que o filme estava pronto, que eu não estava vendendo fumaça, e nos financiou. Graças à CAIC o filme foi concluído.
EE – No “André”, o esquema foi parecido?
XO – No “André” eu apliquei todo o dinheiro ganho com o “Marcelo”, que foi muito, era muito dinheiro mesmo. Eu me achava o homem do braço de ouro. Apliquei tudo, e meu sogro vendeu uma casa lá em Goiânia, então ele tinha 10%. O pai da Armênia, do Stepan. Obtive um pequeno lucro. Nesse espaço de tempo, foi criada a Embrafilme, eu estava muito bem credenciado como cara de sucesso. Com o “Marcelo” e o “André”, ganhei prêmios. Melhor diretor do ano, essas coisas. Além disso, nessa mesma época o teatro do meu irmão fracassava. O Opinião foi perseguido pela direita, fecharam muito o cerco, os espetáculos não iam pra frente, não obtinham verbas oficiais, o CCC, “Comando de Caça aos Comunistas”, colocou uma bomba na porta, destruiu toda a fachada do prédio. Começaram também os desentendimentos internos, entre certos sócios. Resumindo, o Denoy sai do Teatro, vai trabalhar comigo na Lestepe, participa da produção do “André, a Cara e a Coragem”. Consegui um financiamento na Embrafilme para um projeto que eu tinha, o “Banana Kid, Super-Herói Tropical”. História de um super-herói brasileiro em confronto com o Super-Homem, a inferioridade. Mais político. Abri mão desse financiamento pro Denoy fazer o primeiro longa-metragem dele, o “Amante Muito Louca”. Um filme importante, premiado, uma boa bilheteria, e conseguiu novamente levantar a nossa empresa. Que tinha, de certa maneira, se abalado muito com o “André, a Cara e a Coragem”. A produtora terminaria, anos depois, com a morte da minha mãe. Atualmente eu tenho uma nova empresa, a Ártemis, que herdou o acervo da Lestepe. É por ela que entro em concorrências e vendo meus filmes, pra Globo, pro Canal Brasil, pra TV Brasil etc.
EE – O que me dá o gancho para perguntar sobre o esquema de produção atual. O que você comentaria a respeito?
XO – Houve um salto tecnológico muito grande, em diversos sentidos, da minha geração de cineastas pra cá. Às vezes até converso com a Armênia sobre isso. “Imagina Fulano, se eu fosse falar em Excel pra ele...” Eu fico pensando em alguns colegas caóticos que eu conheci, muitos já falecidos, como é que eles estariam se comportando hoje em dia diante dessa parafernália. Esse é um aspecto. Outro aspecto, mais polêmico, tem a ver com a temática. Em julho de 2007, fui convidado para o Summer Film School, na República Tcheca, na cidade de Uhreske Hradiste, para workshops, debates e exibição de 2 filmes meus. Havia uma homenagem ao cinema brasileiro. Eu senti então que a expectativa dos europeus em relação a nossos filmes é sobre as nossas misérias, sobre as nossas crianças famintas, essas meninas de 14, 15, 12 anos se vendendo por 5 reais. Se o filme não tocar nesses assuntos, não desperta interesse para o europeu.
EE – Não é brasileiro.
XO – Não é brasileiro, não interessa ao europeu. Uma história de amor, por exemplo, não interessa a eles.
EE – Aquele estereótipo da sociochanchada. Você já sabe de antemão o princípio, o meio e o fim. Têm uma suposta denúncia social. Fabricam estes filmes em série, ganha-se muito dinheiro, em vez de se fazer os filmes que você está falando.
XO – Isso aí eu senti claramente nos filmes de impacto lá. E fico vendo essa enxurrada de filmes que as pessoas fazem aqui sob esse prisma. E me bate uma dúvida, eu não sei se maliciosa ou não, se a criatividade dos nossos realizadores está muito subordinada ao sabor europeu. Ao que eles querem ver da nossa realidade. Eu gosto muito do meu Brasil, e acho que nossa realidade não é só bala perdida e miséria. É essa, mas não é só essa. São coisas depreciativas, muito depreciativas do nosso povo. Enfim, uma colcha de retalhos, mostrando o nosso lado mais miserável. Criou-se um ciclo no nosso cinema assim, ao gosto do primeiro mundo. E eu não estou nessa. Pode ser que eu esteja falando aqui um ponto de vista muito pessoal, questionável, mas essa tendência atual me irrita. Palavra de honra. Me irrita.
EE – Xavier, chegamos à pergunta final. Assim como você, eu também me emocionei em diversos momentos ao longo desta conversa. São muitos pontos, muitos aspectos riquíssimos. Gostaria de saber, então, o que você acha que fica da sua obra.
XO – É difícil dizer, avaliar exatamente o que fica da obra. Eu me coloco diante dela, dos meu filmes. Poucos filmes, na verdade eu fiz poucos filmes. Uma certa frustração de não ter filmado mais. Há essa situação muito melancólica no cinema brasileiro, o Leon disse uns anos atrás e é verdade. O sujeito passa 5 anos, 8 anos, 10 anos, sem filmar. É difícil você estabelecer um contato orgânico entre os seus filmes havendo um hiato tão grande. Meu irmão Rui, que é desenhista, diz sempre que quando passa uma semana sem desenhar ele sente uma falta de destreza na mão. Uma certa dificuldade em desenhar, pois ele tem que ficar permanentemente desenhando, pintando. E o cineasta brasileiro é essa entidade estranhíssima, é a nossa realidade. Você vai ver, no fim da vida, que dirigiu 10 filmes, no máximo. É uma coisa angustiante. Agora, tentando responder mais objetivamente à sua pergunta. O que eu gostaria que ficasse... Bom, um artista que tentou fazer seus trabalhos com sinceridade, e sobretudo preocupado com o ser humano comum. Pessoa comum, com a qual a gente esbarra no meio da rua. Seus pequenos sonhos, pequenos deslizes, seus pequenos pecados, pequenas virtudes. Essa pessoa me interessa.
EE – É a sua lírica, realmente.
XO – Me interessa porque é o grosso da humanidade, é o grosso de uma sociedade. A questão de os filmes nossos estarem com as salas vazias eu atribuo a essa falta de identidade entre o nosso cinema e o ser humano comum. A pessoa que trabalha, que está atrás de um emprego, que está querendo conquistar uma namorada. O camarada que quer conversar com o filho mas não consegue, porque não tem diálogo. Esses flagrantes, esses conflitos do cotidiano. A meu ver, isso está faltando no cinema brasileiro. Esse elo de ligação, esse poder da pessoa olhar para a tela e ver seu próprio rosto. Porque as situações são sempre excepcionais, os personagens são sempre excepcionais, dá a impressão de que se repete tanto esse tipo de temática a fim mesmo de chocar. Creio que isso não forma cinematografia. O cinema americano é uma escola, sim. Às vezes eu pego na locadora uns clássicos e fico revendo. O grande trunfo do cinema americano foi essa medida que ele fez do ser humano comum. Nunca me esqueço dos filmes do Elia Kazan. São pessoas, tipos, com seus conflitos. E tantos, tantos diretores americanos. Gostaria que ficasse pros pósteros, para as pessoas que vão analisar meus filmes daqui a 50 anos, quando não estarei mais existindo, que fui um cineasta preocupado com esse tipo de gente. Não há heróis, nem bandidos. Somos nós mesmos, com as nossas deficiências, com os nossos esplendores, com os nossos sonhos, com as nossas frustrações, com as nossas angústias, com as nossas expectativas de vida. E com os nossos fracassos também, não é? Ainda há pouco nós estávamos analisando o fato de os meus filmes terem sempre o personagem diante de suas impossibilidades. Esse cotidiano é às vezes aterrador. Gostaria, portanto, que as pessoas vissem meus filmes como resenhas sobre os minúsculos sonhos do ser humano.
Poucos diretores no país alcançaram a combinação das principais características do cinema de Xavier: autoral, intimista e acessível ao mesmo tempo. Iniciando com "Marcelo Zona Sul" (1970), prosseguiu em “André, a Cara e a Coragem (1971), “O Vampiro de Copacabana” (1976) e “Gargalhada Final” (1978) alimentando o cerne de uma inquietação artística que perdura até hoje.
Revendo os filmes, é fácil notarmos como a mensagem de Xavier de Oliveira permanece imediata: a luta do ser humano pela alteridade, pelo direito a uma essência diante do meio que o corrompe e assusta.
Neste bate-papo que realizamos em sua casa na Barra da Tijuca, no dia do seu aniversário, Xavier me pareceu o mais coerente dos gênios: vida e obra se misturam em impressões comuns e quase tudo o que está em película, parece estar também no discurso e na emoção deste carioca de 71 anos. Entender Xavier foi percorrer um labirinto de recordações e surpresas, cuja travessia compartilho agora com os leitores do Estranho Encontro.
ESTRANHO ENCONTRO – Xavier, começo pelas primeiras recordações do entrevistado. Infância, adolescência...
XAVIER DE OLIVEIRA – Eu nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, em Benfica, um bairro até hoje de passagem. Quem nascia lá, dizia ter nascido em São Cristóvão [risos]. Eram 24 de novembro de 1937, faço 71 anos, portanto. Por coincidência, hoje.
EE – Sério? Nossa, que cármico! [risos]
XO – Depois que combinamos, eu me lembrei [risos]
EE – [risos] Que coisa...
XO – Podia até beber uma cerveja, em vez de água. [risos]
EE – [risos] E você é primeiro filho, segundo?
XO – Nós somos 3 irmãos. Denoy de Oliveira, que faleceu, morava em São Paulo. Além dele, o Rui de Oliveira, que é designer. Venho de uma família de classe média, mais pra baixa do que pra média. Meu pai era contador, minha mãe trabalhava em serviços do lar, prendas domésticas. Uma família muito unida, meu pai era uma espécie de guia-luz para nós todos. De fato era um homem bastante culto, autodidata. E é curioso, porque ele tinha certas intuições. Por exemplo, gostava de Hermann Hesse, um autor que 40 anos depois...
EE – ... Ah, então por isso que surgiu a sua produtora Lestepe, não é?
XO – Exatamente. Coloquei em homenagem, porque ele às vezes assinava “Lestepe”: Lobo da Estepe. Você é bem perspicaz. Meu pai era vegetariano, corria na praia, isso há 50 anos, e eu morria de vergonha porque ele me levava à praia para correr. Um espírito de uma pessoa que parecia estar vivendo em uma época errada. De modo que eu não venho de nenhum berço adverso à arte. Ao contrário, meu pai desde cedo nos levava para ver filmes no subúrbio do Rio de Janeiro. É triste dizer isso até, pois hoje em dia não se tem mais esses cinemas de rua. Religiosamente às quartas-feiras sempre íamos assistir às fitas em série. Quando surgia uma construção em Benfica, pensávamos logo que fosse um cinema. Mas não, era uma recauchutadora. O bairro é muito fabril. Eu me recordo, de mim e do Denoy todo domingo, infalivelmente, no cinema. De modo que essa foi a nossa ligação, sintetizando bastante.
EE – E isso foi correndo pela adolescência...
XO – Foi correndo pela adolescência. Denoy foi estudar arquitetura, mas não se formou, abandonou no final do ano. Eu fui fazer jornalismo, mas também não terminei. O Rui, este sim, se formou e é artista gráfico. Em meados dos anos 50 saímos de Benfica e nos mudamos para Ipanema. Evidente que aos olhos de um menino com sonhos na cabeça, como também era o Denoy, ir para Ipanema era algo maravilhoso. Caminhar a pé ao cinema. Morar num apartamento, ao invés das casas de subúrbio, casas às vezes com quintal gigantesco. Foi um choque muito grande. Choque cultural, pode-se até dizer. Naquela época o Rio era muito compartimentado, zona norte, zona sul. Mas acontece que neste ínterim, por uma ironia da vida, meu pai morre em 1957. E de repente nós acordamos pro mundo, tínhamos que ganhar dinheiro. Comecei, então, a trabalhar numa livraria. O Denoy, como ajudava meu pai a fazer contabilidade, manteve alguns clientes, mas não podia assinar porque não era contador. Eu prestei um concurso público...
EE – ... Do Banco do Brasil.
XO – Banco do Brasil, exatamente. E fui mandado pra Bahia, mas sempre com o sonho do cinema. Eu lia, tinha o tempo mais disponível. Por sorte, na biblioteca fiz amizade com a moça, bibliotecária. Escrevi crítica de cinema no jornal.
EE – Qual era a cidade?
XO – Itapetinga, sudoeste baiano, na época a 4 horas de Itabuna. O roteiro que eu escrevi do “Gargalhada Final” foi muito em função dos circos que eu via chegando lá, os circos itinerantes. Como, aliás, acontecia no subúrbio em que moramos no Rio. Na nossa primeira casa havia um terreno baldio à frente, em que periodicamente os circos se instalavam. Aquilo teve uma influência muito grande em nossa vida. Inclusive o último filme do Denoy, o “A Grande Noitada”, tem essa presença do circo. Éramos bem meninos mesmo, eu devia ter 5 anos de idade, Denoy tinha 9. Menos, talvez. Ficávamos fascinados por aquele mundo colorido, aquelas cores, aqueles personagens pintados, aquela música maravilhosa, os números de ginástica. Ficávamos bastante impregnados daquilo, chegávamos em casa e começávamos a repetir. Pra dizer a verdade, até hoje eu sei a música [cantarola enquanto faz gestos].
EE – Sempre permanece, de alguma forma...
XO – E anos depois, em Itapetinga, foi estranho porque eu e o Denoy, que estava no Rio, por carta começamos a nos revelar mais do que pessoalmente. Ele contava os sonhos dele, sentia impulso maior de falar da vida. Eu idem. Começamos a entabular uma ampla afinidade espiritual. Meu irmão foi uma pessoa muito importante na minha vida e na vida do Rui. Ele dizia: “Vamos fazer a nossa companhia de cinema. Um dia nós vamos ter a nossa companhia de cinema.” E 3 anos depois de ir para Itapetinga, eu voltei ao Rio.
EE – Não queria mais ficar lá?
XO – Fui transferido. Tempos depois é que eu entregaria a demissão. E nessa volta, o Denoy teve a idéia de produzirmos fotonovela. Olha que coisa idiota [risos]. Seria uma espécie de transição, conseguir juntar dinheiro até chegarmos ao cinema. Fotonovela despertava grande interesse, grandes publicações, especialmente dominadas pela indústria italiana. Mulheres lindas, histórias fantásticas. Tem um filme do Fellini sobre isso, o “Abismo de um Sonho”. A história da mulher que se apaixona pelo personagem da fotonovela, vivido por Alberto Sordi, um comediante muito interessante. Quando ela vai conhecê-lo, tem uma decepção enorme. Pois bem, então o que aconteceu? Produzimos uma fotonovela. Pegamos o Edison Batista, que era fotógrafo, inclusive viria a ser do “Marcelo” [“Marcelo Zona Sul”], do “André, a Cara e a Coragem” e do “Amante Muito Louca”, dirigido pelo Denoy. O Denoy escreveu a tal fotonovela, chamada “Vitrine dos Sonhos”. Tentamos vender e nada. Perdemos tudo, todo dinheiro nosso [risos], e não fizemos coisa nenhuma. Não avançamos, não resultou em nada. Foi uma bola fora.
EE – Deu um baque...
XO – Mas aí você vê como a vida é curiosa. Em 1965, estava eu voltando do Banco do Brasil, e no ônibus alguém havia colocado um jornal entre um banco e outro. Peguei e vi lá: “Curso de direção de cinema, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, dado pelo professor Ruy Guerra.” Primeiramente começou com o Ruy, depois o Gustavo Dahl e depois o Bartolomeu Andrade. Foram 3 professores, um após o outro. Importantíssimo na minha vida, pois de repente eu conheci 12 pessoas, 12 jovens alunos como eu, também apaixonados por cinema.
EE – Você se lembra de quem estava no curso?
XO – Alguns não prosseguiram, mas tinha, por exemplo, o Carlos Frederico, que fez a produção do “Marcelo Zona Sul” e diversos filmes naquela linha do udigrudi, underground. O Renato Neumann, fotógrafo, dirigiu longa-metragem também. Naquele momento era muito importante o convívio, ter contato com pessoas que falavam a mesma linguagem que eu, os mesmos sonhos. Vivíamos juntos, íamos para o cinema, o Frederico gravava os diálogos para depois ouvirmos em casa.
EE – Um encontro de almas, não é?
XO – Foi um encontro de almas. Pessoas afins, sabe? É tão importante. Você viver sozinho, isolado, pensar “será que eu vou conseguir fazer cinema? Será que cinema não é apenas para as pessoas bem nascidas? Será que eu vou ter chance; eu, um bancário?” De repente você encontra um veículo. E num dia estávamos na cafeteria do Museu de Arte Moderna, como existe ainda hoje, e lá chega perto de nós o Sílvio Autuori, jornalista do “Jornal do Brasil”. Naquela época, o “Jornal do Brasil” era de proa, de vanguarda.
EE – Nos tempos da Condessa ainda...
XO – Sim, da Condessa Pereira Carneiro. O Sílvio então nos disse: “Vai sair um concurso de cinema amador, promovido pelo Jornal do Brasil e pela Mesbla. Participem, 16 milímetros.” Foi aquela euforia danada, cada um fez o seu filme.
EE – O Denoy ajudando também ou não?
XO – Não, o Denoy já era um dos donos do Grupo Opinião. Ele e mais 6 companheiros, egressos do CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE [União Nacional dos Estudantes]. Eles estavam com um bom dinheiro, haviam montado o espetáculo “Opinião”, de grande sucesso, com a Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Era um show que juntava a ficção, o documental e a reportagem. Fazia uma simbiose dessas 3 linguagens. Eu estava sempre lá, assistindo, não pagava ingresso [risos]. Era uma válvula de escape para o pensamento de esquerda, você sabe que nós estávamos em uma ditadura muito atroz. Bom, muitas pessoas fora do curso também entraram no festival, e eu me inscrevi com um curta chamado “Escravos de Jó”, que filmei todo na favela da Rocinha.
EE – ... Sozinho?
XO – Eu e o Edison Batista. A primeira vez que ele colocava uma câmera de cinema na mão. 16 mm, que eu comprei. Como ainda era funcionário do banco, tinha um certo recurso de dinheiro, não foi só o Denoy que bancou o filme. No final, ganhei o primeiro prêmio. A influência do “Opinião” nesse curta foi grande.
EE – Então você teve a sua fotonovela particular. Encontrou o jornal no ônibus, se inscreveu num concurso, ganhou.
XO – Essas coincidências. Acho que existe um momento, uma fase da vida do ser humano, especialmente quando se é mais jovem, em que essas coincidências acontecem muito. Devido ao prêmio, eu ganhei um projetor 16 e o Instituto Nacional de Cinema financiou um documentário para mim, sobre o arquiteto Sérgio Bernardes. E assim comecei a sentir o gosto do profissionalismo. Lembro que no júri estavam o Cacá [Diegues], o Flávio Migliaccio, o Alex Viany, o Roberto Farias, Alberto Shatovsky. Eram 11. Alguns gostaram do meu filme, alguns gostaram do rapaz que ficou em segundo lugar.
EE – Você se lembra quem?
XO – Me lembro: o Antonio Calmon.
EE – O Calmon! Ele fez um monte de filmes bastante interessantes no final dos 70...
XO – O Calmon é brilhante, nunca mais eu o vi. Chama a atenção que ambos os filmes eram voltados pro social. Tanto o meu, o “Escravos de Jó”, história de crianças que ao invés de estarem estudando, brincando, são obrigadas a catar alimentos na feira ou trabalhando. O curta do Calmon, “Infância”, era sobre meninos que perambulavam pelas ruas. Curioso que para gravar na favela da Rocinha, uma pessoa me recomendou a um movimento de esquerda, a AP, Ação Popular, que tinha uma base no local: seu José, um birosqueiro. Ele me abriu todos os espaços, me apresentou às famílias do Largo do Boiadeiro, à parte baixa da favela, à parte de cima. Não filmava todo dia, mas fiquei durante 6 meses lá. Já em 1988, vê como mudam as coisas, para rodar um documentário pro governo do Saturnino Braga, eu tive que pedir autorização ao traficante. Levei o texto, um assessor do Zaca, que dominava o tráfico do Santa Marta, me recebeu com um revólver na cintura. Colocou uma pessoa ao meu lado, o tempo todo. Mas, voltando a 1966: decidi procurar os Farias, fui lá na produtora que eles têm até hoje...
EE – ... a Refefê...
XO – Exatamente, a Refefê, e me apresentei ao Roberto Farias. Ele havia gostado muito do “Escravos de Jó” e me disse que iria escrever um roteiro, o “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Pensou em trabalharmos juntos, mas pouco depois houve uma mudança de planos. “Xavier, faz o seguinte: em vez de escrever comigo, escreve uma comédia com o Reginaldo Faria. ‘Os Paqueras’.” Eu ia pro banco, largava ao meio-dia, à tarde a gente se encontrava e ficávamos trabalhando até de noite. Tudo pronto, fui ser assistente de direção dele. E aí voltam novamente aquelas coincidências, sobre as quais eu estava falando. Um dia, em Copacabana, eu dou de cara com o Flavio Tambellini. O pai, não o filho. Grande amigo meu, falecido, ele dirigia o Instituto Nacional de Cinema, que havia bancado o prêmio do “Escravos de Jó”. O Flávio: “Xavier, vou fazer o ‘Um Uísque Antes, Um Cigarro Depois’. Quer trabalhar no roteiro e ser meu assistente?” “Claro que quero.” Trabalhei então com o Flávio, já ganhando dinheiro, o que era a minha preocupação. Você não pode ser amador, tem que ser profissional, para poder se dedicar. E outra: eu vivia em contradição com o banco. O banco era um entrave na minha vida. Comecei até a... [pausa]
EE – A entrar em depressão?
XO – A entrar em depressão. Na época eu namorava uma jornalista, ela conhecia os Pereira Nunes, uma família muito conceituada, de médicos. Me levaram a um psiquiatra, e ele: “Bom, você tem que sair do banco.” Disse tudo o que eu queria ouvir. Aliás, mesmo que ele não dissesse, eu sairia do banco. E assim entreguei a demissão no Banco do Brasil. Os colegas não entenderam nada. “O que você vai fazer?” Cinema. “Cinema? Vai ser galã?” Vou ser diretor. “Diretor? O que é isso?” Ninguém sabia o que era “diretor de cinema”. Nesse espaço de tempo, ainda no “Os Paqueras”, fico noivo da Armênia [Nercessian], com quem sou casado até hoje. Aliás, a equipe morreu de rir, porque eu não tinha como provar a aliança, e ela levou para mim o mostruário. Eu ficava experimentando durante as filmagens... [risos]
EE – [risos] E justo no “Os Paqueras” que não era bem o ambiente do moço casador...
XO – [risos] Pois é! Nos casamos, eu não tinha um centavo no bolso. Quem me emprestou dinheiro pra lua-de-mel foi um primo. “Meu Deus, e agora? O que vai ser de mim? Casado, sem nada no bolso. Sem emprego...” Ela trabalhava nas Nações Unidas, na época, na representação do Rio. Mas aí eu tive a idéia. Comecei a escrever o “Marcelo Zona Sul”, terminei em 9 dias. Fico espantado, como pude ser tão rápido. Hoje levo um mês, dois para escrever um roteiro. E aquilo fluiu assim. Consegui um pequeno capital, pra iniciar a filmagem. Tudo seria feito na base do semi-profissionalismo: uma equipe de 12 pessoas, estreantes, praticamente. O Edison nunca havia fotografado um longa-metragem. Eu nunca tinha dirigido, a não ser o “Escravos de Jó”, que era um curta.
EE – O Stepan, por exemplo, é da sua família, não é?
XO – Sim, ele é irmão da Armênia, tinha 15 anos. Você vê que a vida, volto a dizer, a vida tem uns encaixes... Fico espantado. Ele morava em Goiás, veio passar as férias no Rio. Aquele menino, perturbador pra caramba... [risos]
EE – [risos]
XO – Não gostava que eu beijasse a irmã dele... E eu agoniado para conseguir um ator. O dinheiro era muito pouco, e dinheiro vai embora, se você não controla. Como eu tinha boas relações com o “Jornal do Brasil”, por conta do prêmio, programamos um concurso público. Atores e atrizes, de 15 anos. Hoje em dia tem aos montes, naquela época não havia, nessa faixa de idade. Falei com o meu irmão Denoy para me emprestar o teatro na segunda-feira, dia que não tinha espetáculo. Ele chamou uns atores, amigos, para compor a banca examinadora. Apareceram centenas de crianças, os tipos mais variados, e o Stepan estava em casa. Nisso aparece lá por casa o Neneco, meu primo e pergunta: “Stepan, cadê o Chico [o primeiro nome de Xavier é Francisco]?” “Ah, ele foi fazer um teste, um negócio do filme dele.” “Fazer um teste com os meninos e você aqui em casa? Vamos lá agora!” Só para brincar comigo, levou o Stepan. O Carlos Frederico, que organizava a fila, virou pra mim: “Ô, Xavier, tem um garoto lá embaixo dando bombada na fila.” Bombada é quando você esbarra num, e outro vai esbarrando em seguida. “Tem um garoto dando bombada na fila, fui dar uma bronca e ele disse que é seu cunhado.”
EE – [risos] Situação constrangedora...
XO – “O que o Stepan veio fazer aqui?!” Ele não tinha nada a ver com o “Marcelo Zona Sul”, não era ator, sotaque goiano, branco, magro. Era a antítese do personagem que eu tinha imaginado, de um garoto zona sul, queimado de sol. Aí chega a hora do teste do Stepan. Ele fez um teste espetacular, espetacular. Uma parte de leitura, uma parte de improviso. Quando chegou na parte do improviso, ele deitou e rolou. O Stepan é uma pessoa muito brilhante. Não era eu quem julgava, eram os atores. Mas falei: “Ok, você fez um bom teste, mas não combina com o meu filme. Tchau.” Continuei o concurso em São Paulo, o Stepan foi embora para Goiânia. Um dia eu encontro na rua com uma saudosa atriz, a Glauce Rocha. Por coincidência, em frente ao teatro que hoje tem o nome dela. Eu não a conhecia, só de palco, mas a pessoa que estava comigo, sim. Contou da minha busca e ela me indicou uma garota muita boa, que havia trabalhado com ela em Brasília. Françoise Forton. O Lula foi fácil achar, porque ele trabalhou num curta do Carlos Frederico. A Simone Malaguti era filha de um amigo meu, o Manoel Malaguti.
EE – O problema estava em encontrar o protagonista...
XO – E a essa altura meu dinheiro já estava acabando. O Denoy, que era mais pragmático, me disse “Chico, pior do que filmar com o Stepan é o seu dinheiro acabar e você não fazer mais nada. O teste dele foi ótimo, você está com preconceito pelo fato de ele ser seu cunhado.” Não era só isso, ele não tinha o tipo, mas chamamos de volta o Stepan. “Você faz o filme, só que eu vou ter que dublar com outro, por causa do sotaque.” Terminamos a filmagem, ele foi pra Goiânia, eu comecei a procurar um dublador. Mas eram adultos tentando fazer voz de garoto. “Estou perdido”. Mandei um telegrama: “Stepan, volta de novo...” Ele dublou, e coloquei uma pessoa do lado, que eu chamava de “departamento de sotaque”. Quando uma frase saía à goiana, nós corrigíamos.
EE – Xavier, o roteiro inicialmente não se chamava “Marcelo Zona Sul”, era “Jipe Sem Capota”. Houve outros títulos intermediários?
XO – Não, só este. Quem deu o título foi a Geny Marcondes, ainda viva, pessoa poderosa intelectualmente, das mais fascinantes que já conheci. Era musicista, funcionária da Rádio MEC, ela havia se casado com o famoso músico, Koellreutter, separou-se dele e conheceu o Denoy. Ficaram juntos por nove anos, e ela teve grande influência na minha vida e na vida do meu irmão. Foi ela quem fez a música do “Escravos de Jó”.
EE – E em relação ao processo de filmagem, como foi? Pela primeira vez, você diretor de longa-metragem...
XO – Impressionante como às vezes as coisas saem de maneira espontânea. No caso do roteiro já havia sido assim. Recentemente, participando do Sundance, eu comecei a ver que todos os paradigmas de roteiro foram incluídos no “Marcelo” instintivamente. Os tais pontos de virada, o clímax, a definição dos personagens, o antagonismo entre eles. Na base da espontaneidade, da intuição. Outras coisas, não. Alguns elementos específicos não foram colocados inconscientemente, não.
EE – Por exemplo?
XO – O interrogatório na escola. Eram comuns os IPMs [Inquérito Policial Militar]. Eu mesmo respondi a um, no Banco do Brasil, por ter participado de uma greve. Se você observar o filme, a inspetora, vivida pela atriz Pichin Plá, usava um apito, como se fosse um sargento. Havia intencionalmente ali a idéia de consignar o ar de IPM. Mas, no geral, o roteiro foi escrito até com uma certa irresponsabilidade, vamos dizer. Porque escrevi um personagem profundamente transgressor, irreverente. O filme acabou sendo interditado pela Censura, quase proibido no território nacional. Quando o levei pra Brasília, eu sabia que não estava levando um filme inocente.
EE – Apesar de ter crianças, um filme adulto.
XO – Tanto assim que eu procurei me precaver. A Censura federal era então dirigida por um civil, senhor com uma postura intelectual, o Professor Wilson Aguiar. Soube que ele gostava muito do Pimentinha, uma revista de história em quadrinhos. “Xavier, se ele perguntar como é o filme, você diz que é parecido com o Pimentinha.” [risos] Aí eu falei isso pra ele. “Qual é a história?” “É tipo o Pimentinha, professor.” Seguiu para a primeira comissão de censores, e voltei dali a 2 dias. “Olha, o seu filme não tem nada de inocente. Foi proibido em todo território brasileiro. Quer ver o que escreveram? Pernicioso à juventude, Marcelo é um personagem que alicia jovens pra fugir, rouba prova, fuma em aula. Personagem que...” Meu Deus, que encrenca eu fiz! “Professor, se este filme for interditado, eu estou arruinado. É o meu primeiro longa-metragem, coloquei toda a minha vida aqui.” Eu tinha um dinheirinho inicial, mas o filme foi bancado pela Comissão de Auxílio à Indústria do Cinema, CAIC, uma entidade do Rio de Janeiro, nos tempos do governo do Carlos Lacerda, do Negrão de Lima. “Bom, façamos isto: você redige um recurso, eu entrego para uma outra comissão, mais branda.” Mas, novamente, os relatórios foram terríveis. E se não fosse aprovado pela terceira comissão, acabava. Era irrecorrível.
EE – Em alguns casos, eles até destruíam as cópias. Teve caso de filme que sumiu, desapareceu.
XO – E acontecia uma coisa, é bom de ser divulgado: os censores civis eram piores do que os militares. Eram mais realistas do que o rei. Havia um pânico de perderem os seus empregos, de serem denunciados como comunistas.
EE – Eram burocratas...
XO – Algo esquizofrênico, mesmo, de Kafka. Era uma tortura para os produtores. Já começava com o aviso: “Você volta daqui a 4 dias”. E o que você faz 4 dias em Brasília? Você enlouquecia, realmente. Bom, voltando: o censor me disse que o “Marcelo” seria enviado para uma terceira comissão, de militares. No dia, fiquei bambo, numa ante-sala. Os militares assistindo ao filme e eu do lado de fora, com o Stepan. Dias antes eu havia telefonado pra ele, que casualmente estava passando lá por Goiânia: “Stepan, está dando um problema danado. Nosso filme pegou 2 interdições, vem pra cá, me dá uma força.” Eu morrendo de medo. De repente, termina a sessão. Não ouvia nada. Abre-se a porta, os militares saem rindo. Quando viram o Stepan, então... “Você, rapaz! É fogo mesmo, hein?!” “Ganhei os militares”, pensei comigo na hora. “Como é que você faz aquilo, rapaz?” E eles brincando com o Stepan, que é muito vivo. Confundiram o personagem com o ator, o que é natural. Enfim, liberaram o filme, mas com a última frase cortada. Quando o Marcelo diz no final “Só volto pra casa porque estou com fome”, queriam dar a impressão de que ele voltaria por causa dos pais. Evidente que eu só cortei nas cópias, naquela época não se cortava o negativo. A obra era mantida intacta, na esperança de que algum dia fosse vista na íntegra.
EE – Uma via-crúcis que deu certo.
XO – Mas ainda não havia acabado. Entrou em cartaz, fez um sucesso danado, eu quis que o Stepan fosse no programa de televisão do Flávio Cavalcanti. Tive que pedir autorização, porque ele era menor de idade. Fui no Juizado de Menores, me atendeu o responsável, Dr. Alírio Cavalieri. “Vem cá, se eu trocar o seu filme pra 18 anos tem algum problema?” Eu fui pedir autorização pro Stepan, não fui falar de censura. “18 anos, Dr.? Mas a Censura já liberou, o filme é livre. Se for pra 18 anos vai me prejudicar muito, perco um público, Dr.” “Está bom. Porque esteve aqui comigo uma comissão de professores e psicólogos, denunciando o seu filme.” O Dr. Alírio enfim não mexeu na censura e ainda deu a autorização pro Stepan, citando textualmente o filme como um “poema cinematográfico”. Um radialista e crítico de cinema, Adolfo Cruz, também denunciou o filme, dizendo que era pernicioso para a juventude etc. Em São Paulo também tive problemas com uma tal “Comarca” que queria subir a censura, e eu não agüentava mais, estava exausto, pedi ao Denoy para ir lá brigar por mim. Felizmente ele conseguiu resolver tudo.
EE – E qual foi a postura do Flávio em relação ao filme? Ele era meio histriônico...
XO – Olha, o Flávio Cavalcanti teve uma postura bacana com o filme, sabe? Apesar de ser uma pessoa controvertida politicamente. Mas não viu nada que desagradasse. Não era político, no sentido partidário.
EE – Seu filme seguinte, o “André, a Cara e a Coragem” apesar de brilhante e de ter uma estrutura de produção melhor, não teve a mesma bilheteria. A que você reputa isso?
XO – Existe alguma coisa imponderável no sucesso, alguma coisa que foge, nebulosa demais. Do contrário, seria fácil colocar os dados no computador e ele dar uma resposta. O “Marcelo Zona Sul” entrou em cartaz numa quarta-feira de cinzas, estrelado por quatro meninos desconhecidos, preto-e-branco quando já se fazia colorido na época. “Os Paqueras”, anterior ao nosso, é colorido. Por que um filme desses explode? E por que o “André, a Cara e a Coragem”, profissional, com equipamentos, com uma estrutura muito melhor de produção, em cores, não obteve sucesso? Algum componente que eu não sei dizer. Eu não tinha noção nem do sucesso. Vi as filas em Copacabana, eu via aquelas pessoas, mas não chegava a absorver aquilo, não sabia a proporção. De fato, o filme estourou. É uma coisa até meio estranha o que eu vou falar, parece mentira, mas é verdade. O “Marcelo” se pagou em Copacabana. Você pagar um filme em um bairro do Rio, do Brasil. E estreou em dois cinemas: no Metro e no Bruni. O filme se pagou em dois cinemas de Copacabana. Impressionante isso. No caso do “André”, havia nele uma implicação social, além disso não foi tão bem lançado quanto o “Marcelo”, que teve uma distribuidora muito forte, a Ipanema Filmes, que pertencia, dentre outros, ao Jarbas Barbosa, irmão do Chacrinha. E uma distribuidora se torna poderosa no momento em que possui títulos de peso. Ou seja: não tinha miúras, como chamavam naquela época os filmes de fracasso. Ela chegava com muita autoridade.
EE – O “Marcelo” me parece aglutinador de uma nostalgia, de um espírito.
XO – O filme continua de pé, o que não é uma coisa comum. Certos filmes envelhecem. Pode ser até uma heresia o que eu vou falar, mas, por exemplo, dois filmes que explodiram juntos, importantíssimos: “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo”. Volta e meia revejo um e outro. O filme do Nelson continua de pé. O mesmo não aconteceu, no meu modesto ponto de vista, com “Deus e o Diabo”. Envelheceu em certos aspectos, não manteve a mesma força. “Terra em Transe” manteve. O “Marcelo”, que não tem nada a ver com esses que citei, permaneceu. As pessoas dizem que é cult, que o filme já é um clássico do nosso cinema. Eu vou morrer e ele vai sobreviver, vai permanecer.
EE – Aliás, aproveitando essa linha do cult, um componente importante é a trilha sonora do Liverpool. Como você conheceu a banda?
XO – Através da Geny Marcondes. Eu a convidei para fazer a música do “Marcelo”, junto com o Denoy, e ela então sugeriu o nome do Liverpool Sound. Encontrou os garotos por ocasião de um concurso de música em que ela era membro do júri. Ficou muito encantada por eles. Eram gaúchos, viajaram pro Rio de Janeiro, ficaram ensaiando, tocando. O nome do cantor era Foguete. [Cantando um trecho:] “Vento de estrada no teu rosto...” Bem cabeludos, tipos fantasiosos, vestidos daquela maneira extravagante. Um motorista de táxi perguntou pra eles, segundo me contaram: “Vem cá, esse cabelo de vocês não incomoda, não?” “Não, não. Incomoda os outros.” [risos]
EE – [risos] Tirada perfeita.
XO – Conheci outro rapaz cabeludo assim, também gaúcho. Caio Fernando Abreu. Assistiu ao “Marcelo”, o filme ficou um ano em cartaz no Rio Grande do Sul. O Caio conseguiu entrar em contato comigo, foi lá em casa uma tarde. Perguntava tantas coisas. Passam-se os anos, ele se torna um grande escritor.
EE – Imagino o encontro pra ele. Conversar com alguém que participou da formação dele.
XO – O “Marcelo” teve disso, além daquelas loucuras e irresponsabilidades que eu comentei. Fiz verdadeiras barbaridades. Por exemplo: quando a menina pergunta pro Marcelo o número do telefone, eu coloquei um número verdadeiro, o do meu amigo Carlos Frederico! E ele riu pra caramba quando contei! Ou seja, infernizei a vida da família dele, com tantos telefonemas da garotada. Outro absurdo: ou o país era mais louco, inocente ou não sei o quê, mas para as cenas da escola, fui em uma, a André Maurois, e pedi: “Diretora, eu queria filmar um longa-metragem aqui.” E ela prontamente me atendeu: “Está aqui a chave da escola. Filma.” Assim, desse jeito. Gravei as cenas sábado e domingo.
EE – Essa espécie de caos não houve no “André”, pelo que você está contando. O que você lembra do set?
XO – Olha, a filmagem do “André” foi em tom nostálgico, em Benfica. Aquele era exatamente o filme que eu queria fazer. Eu não queria fazer o “Marcelo Zona Sul 2”, queria mostrar os problemas da juventude, a falta de emprego, as primeiras experiências no sexo, no amor, no trabalho, na amizade. O personagem vinha do interior de Minas, Carangola, e partia para o Rio de Janeiro pra ganhar a vida. Mostra-se esse confronto cultural entre cidade pequena e cidade grande, com todos os seus percalços. As falsas amizades, influências ruins, dentre outras coisas. O André não se deixa endossar pelo nocivo da vida, ele quer trabalhar, ele almeja. No final ele está perdido, o que algumas pessoas encararam como aspecto positivo. Os papéis picados, em dezembro, ele no meio daquela euforia, diante de alguns problemas que aconteceram. Como disse, é um filme que eu gostei de ter feito.
EE – Aliás, Xavier, persiste um elemento na sua obra que acho importante comentarmos. A questão dos seus filmes terem um aspecto filosófico, até existencialista, de mal-estar diante do mundo. Do ser humano envolvido por um aspecto social pelo qual ele não quer ser envolvido, pois ele quer preservar a integridade existencial dele.
XO – Isso é bem observado e pertinente mesmo. Você faz os filmes, os anos passam, você se afasta tanto deles, às vezes um espaço de 30 anos. É muito. Acho perfeitamente, muito bem observado, isso que você diz. Uma perplexidade dos personagens diante do mundo ao redor, que é mais forte do que eles. Perplexidade que existe no Marcelo, voltando pra casa; existe no André, perdido naquela cidade em festa e ele numa profunda tristeza; no “Vampiro”, quando o Carlos dança com a Sueli. Eles se abraçam, ele diz “eu te amo”, não ama nada. Vai continuar a ser o mesmo, está perdido no próprio mundo particular. Ele não venceu o mundo, ele foi vencido. No “Gargalhada Final”, quando pai e filho andam pela estrada de motocicleta, dizendo “vamos comer gilete”, na verdade eles vão se dar mal. Porque o circo não é mais aquilo que está na cabeça do velho. O que eles vão ser na grande metrópole? Eu não intelectualizava sobre isto, essas coisas saem muito ditadas pela minha própria natureza. E percebo que, na verdade, se acaba sendo um pouco até pessimista, com relação ao futuro de cada personagem.
EE – É retornar sempre.
XO – É retornar sempre. O Marcelo vai acabar sendo um burocrata, batendo ponto, igual ao pai. É uma certa desolação.
EE – Agora, o “Gargalhada Final” e o “Vampiro de Copacabana” foram rodados mais ou menos juntos, não? Por que o “Gargalhada” demorou mais tempo a ser terminado?
XO – Escrevi os dois simultaneamente. Tinha levado ao Severiano Ribeiro ambos os roteiros, para ele se associar comigo. “Gargalhada Final” já era um filme que eu curtia mais do que o “Vampiro”. Ocorre que o responsável me disse que só estava interessado no segundo, aí fizemos juntos. O “Vampiro” é, portanto, um filme que não tem dinheiro do governo, nada. Éramos eu, o Amilton Freitas, produtor de cinema, e o Severiano Ribeiro. Também pequenas participações do equipamento, mas basicamente 3 sócios. O Amilton sempre foi especial, ele sabia que eu estava em dificuldades durante a filmagem, e pelo contrato só teria que me dar dinheiro 15 dias depois. “Vem cá, eu vou te adiantar aquela parcela...” “Não, não, Amilton, pelo contrato você só tem que me dar depois.” “Não, eu te adianto já.” Um camarada fantástico, pessoa boníssima. E eu estava numa situação muito difícil. Foram os piores anos da minha vida. 74-75...
EE – Emocionalmente?
XO – Não, dinheiro. Nós tínhamos um apartamento em Ipanema, que era da minha mãe e passou pra mim. Foi lá que eu filmei o “Marcelo”, por sinal. A Embrafilme me negou um reajuste no financiamento, então eu tive que vendê-lo pra pagar as dívidas do “Gargalhada Final”. Dívidas com os bancos, agiotas. Eu vivia muito mal, muito mal mesmo. Assim de 7 horas da manhã bater em casa o oficial de justiça. Acordava de noite com pressão alta, ia pro hospital, ficava em repouso, voltava pra casa, às vezes a Armênia não tinha nem acordado ainda e ficava sem saber. Enfim, eu estava muito mal de vida e achava que com o “Vampiro” eu ia pagar as minhas dívidas todas, ia recuperar o meu apartamento, comprar outro. Fazia uma porção de projeções. Eu só vivia de cinema. E ainda contratei um ator [André Valli] que o Severiano detestou. “Xavier, se eu soubesse que você iria chamar esse cara, eu não teria entrado de sócio.” Mas era um ator excelente, fez um ótimo trabalho.
EE – Então o filme tem umas pinceladas autobiográficas. Ele diz “eu devo ao agiota”...
XO – Tem sim, alguma coisa. O Severiano lançou o filme, mas não obteve a resposta comercial que eu esperava. Não foi fracasso, não perdi dinheiro, mas lucrei pouco. E estranhamente, essas coisas do imponderável, é o filme pelo qual eu fui mais premiado. Ganhei a Coruja de Ouro, por exemplo. Interessante que no “Vampiro” eu tive que inventar um esquema: precisava filmar o carnaval, mas só poderia começar dali a 3 meses. Digamos que estivesse em fevereiro, só poderia filmar em maio. Filmei por antecipação com o André Valli, na semana de carnaval. No mais, tudo correu de uma forma muito linear, sem problemas. O que eu sempre esbarrei, em todos os meus trabalhos, é a própria falta de grana. Às vezes não transparece, no “Vampiro” creio que não transparece. Procuramos várias locações diferentes, a casa do protagonista centramos em um apartamento em Santa Teresa, cenografamos tudo. Mas parando pra pensar, acho que o erro do “Vampiro” foi eu ter perdido um pouco aquele negócio da ingenuidade, escrevi o roteiro com um certo calculismo. “Isso aqui vai agradar pela comédia, pode ir também pelo lado do erotismo.”
EE – Até porque, contextualizando, você estava no período da pornochanchada.
XO – Eu tive essa tentação, é uma estupidez. Você não pode deixar de ser quem você é, nunca. Carreguei muito nas tintas, no afã de ganhar dinheiro. Acabei fazendo um filme híbrido, nem autoral, caso do “Gargalhada”, nem fiz a chanchada do [Carlo] Mossy. Fiquei num meio-termo maldito. O “Gargalhada” saiu espontaneamente, numa boa. Meu lado mais solto, mais poético, sem compromisso de querer ganhar dinheiro. Nada disso. Mas no caso do “Vampiro”, realmente eu pensei muito nos dias que eu estava passando. Tinha um agiota com a voz metálica, e 10 dias antes do meu cheque vencer, porque eu passava cheque pré-datado: [imita a voz] “Olá, Xavier, como vai? É o Fulano, estou só avisando que daqui a 10 dias...” Um dia antes: “Olá, Xavier, como vai?...” Paguei esse cara, me livrei. Eis que depois de 10 anos, mais ou menos, ele telefona de novo. “Oi, Xavier, é o Fulano.” Quando ele falou, me deu um arrepio. Mas não era dívida. O filho dele queria ser ator...
EE – [risos] Coitado do filho, poderia ser um Lawrence Olivier dos trópicos...
XO – [risos] Eu disse “não sei, não posso ajudar.” Enfim, era uma época terrível. Com o tempo você começa a fazer um juízo crítico, cheguei à conclusão de que se justificou pelo momento, pelas circunstâncias. O “Gargalhada Final”, por sua vez, eu escrevi pensando no Fregolente. Cada seqüência, cada plano. A primeira vez que escrevi pensando em um ator. Impressionante, aquele é monstro sagrado. Uma das personalidades mais curiosas que eu conheci em toda a minha vida. Eu o tinha visto no teatro, um ator rodriguiano, e também numa peça de grande sucesso no teatro do meu irmão. “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”, de autoria final do Oduvaldo Vianna Filho e do Ferreira Gullar. Assisti muito ao Fregolente, vi filmes dele, mas, modéstia à parte, acho que o filme em que ele está mais o Fregolente é o “Gargalhada Final”. Ele mesmo dizia isso. “Com esse filme, vou pendurar a minha máscara”, assim como os jogadores penduram a chuteira. Ambrósio Fregolente. É nome de rua.
EE – E se formou em Medicina aos 52 anos...
XO – Pois é, o Rodolfo Arena, sobre quem o Stepan fez um curta, era outro camarada muito sarcástico. Dois doidos. [Com voz de trovão:] “Arena, me formei em Medicina, Arena!” “ Ô, Frego, receitado por você eu não tomo nem chope!” [risos]
EE – [risos]
XO – Eram dois personagens, duas figuras fantásticas, dois grandes atores. Convidei o Fregolente, ele topou. Aí foi a mulher dele, a Dona Cremilda, no meu escritório da rua Senador Dantas 19. E era um senhor ator, uma das coisas mais vulcânicas, talentoso, impulsivo, ao mesmo tempo muito impaciente. Eu ia dirigi-lo e ele: “Não, não... Xavier... Xavier... Deixa que eu faço, deixa que eu faço! Eu vou fazer, se você não gostar, você diz, está bem?” Mas no final ele ficou muito aborrecido comigo, muito chateado, porque custei a dublar o filme. Ficou ofendido, com toda razão. Para convencê-lo a dublar, fui com a Dona Cremilda lá em Mendes, no hospital em que ele trabalhava. Era psiquiatra. Cheguei lá, ele não queria nem me ver. “O que esse cara quer comigo?” “É o Xavier, Frego, vamos conversar, Frego.” E me esculhambou, pelo fato de eu não ter terminado o filme. Só que eu não podia, devido ao contrato com o Severiano Ribeiro, eu não podia passar do prazo. Apesar dos pesares, consegui fazer com que ele dublasse o filme.
EE – Esse processo criativo do “Gargalhada”, como foi?
XO – No “Gargalhada Final” eu escrevi num fluxo muito parecido com o do “Marcelo Zona Sul”. E eu também tinha em mente que deveria fazer uma história com poucos personagens, porque eu tinha poucos recursos. Consegui uma parceria com a Embrafilme, mas não no sistema de co-produção, em que ela entrava e se o filme rendesse, tudo bem; se não rendesse, paciência. Não, eu entrei no sistema de financiamento. Um industrial paulista, cunhado do Denoy, avalizou os títulos. A Embrafilme financiou e ia descontando as minhas dívidas na própria renda. O filme se pagou tranquilamente.
EE – Ele tem um clima de road movie. Vocês pegam a estrada, vão recortando o país.
XO – Saímos aqui do Rio, fomos seguindo a estrada. Minha mulher trabalhou na produção. Fomos até o interior de São Paulo, ali perto de Areias, depois naquela região toda de Porto Ferreira. Foi muito difícil de ser feito, porque de repente eu tinha que ter um riacho junto de tal coisa.
EE – Andando e procurando.
XO – Andando e procurando. Iam pessoas na frente, buscando locações. E se você perguntar pra mim qual o filme que mais me toca, é este. Pela proposta, pelo sonho do artista, pela reminiscência do circo. Toda essa parte afetiva do filme. Pela relação pai e filho, por aquele amor que os dois sentem um pelo outro. Eles não se abandonam, ficam numa situação final que parece o globo da morte. Recebi críticas muito interessantes, que me envaideceram. Uma delas dizia que o filme era para ser visto não agora, mas no futuro. Mas é ainda pouco conhecido. Quando fui rodar o telefilme “O Homem Que Sabia Javanês”, um muito bom ator, que mora nos Estados Unidos, Carlos Alberto Riccelli, veio falar comigo. A gente não se conhecia, só de nome. “Xavier, se você soubesse como eu gosto do ‘Gargalhada Final’. Gostaria até de revê-lo”. É bom filmar com um ator que se interessa pelo seu trabalho, que gosta. Emprestei pra ele uma cópia vhs que eu tinha.
EE – Depois do “Gargalhada Final”, de 1977, você volta em 1997, com o “Adágio ao Sol”.
XO – Nesse período minha vida teve um breque danado. Porque, como eu falei, vendi o apartamento, o “Vampiro” não me deu o retorno financeiro, o “Gargalhada” também não foi esse estouro todo de renda. Quer dizer, se pagou, mas não rendeu. Um dia conversei com uma pessoa pela qual eu tenho muito carinho, pela memória dele, o Cyl Farney. Belíssimo ator, um príncipe de criatura. Guardo uma carta bonita dele, ele nem se lembrava, me enviou quando assistiu ao “Marcelo”. “Por que você não faz documentário pra pagar as suas dívidas, Xavier? Eu também já estive assim como você. Devia tanto dinheiro que eu tinha um problema de dormência na perna. No dia em que eu paguei as minhas dívidas, sumiu a dormência. Vou ver se consigo para você.” Recebi o convite do Jorge Jonas, diretor de “O Auto da Compadecida”. O Cyl fez a cabeça do Jonas, que me chamou para dirigir um documentário sobre o lançamento de um carro, uma caminhonete chamada F-1000.
EE – E assim a publicidade salvou muitos nomes do cinema brasileiro, como você.
XO – Já na retomada do cinema brasileiro, entrei com o projeto do “Adágio ao Sol”. Escrevi o roteiro, levei pro [Luiz Carlos] Barreto, que não se interessou. Eu sem produtora, entreguei pra Rossana Ghessa, da Verona Filmes. Ela captou recursos, mas nessa parte toda econômica eu fiquei de lado, porque não era o caso. “Adágio ao Sol” é um roteiro premiado, o Marzo ficou muito interessado em fazer, viu que a história era bonita. Mas não foi um filme em que tive prazer, pois trabalhei sob inúmeros problemas. Não gosto de botar culpa nos outros, mas também não quero me atribuir toda a culpa. É um filme, para mim, rejeitado. Não fiz bem, não ficou bom, não gosto do resultado artístico. Cada dia era um drama qualquer que surgia. Tem coisas que eu acho mal realizadas, tem coisas que eu acho melhores. Na verdade, eu não deveria ter dado o start sem saber exatamente se todas as condições de filmagem estavam lá. Em 2003, ganhei a concorrência de um média-metragem, quando o governo fazia telefilmes. 52 minutos. Passei pro cinema, sem adaptar época, um filme baseado no “O Homem Que Sabia Javanês”, do conto homônimo do Lima Barreto. Um filme de que eu gosto muito, só teve um porém na distribuição. No elenco, além do Riccelli, Sérgio Mamberti, Sérgio Viotti, Zózimo Bulbul. Coloquei o Bulbul como participação especial, no papel do africano. Está no conto, inclusive. Inseriu idéias dele, como a da reza dos africanos. Fiquei contente com o resultado desse filme, me deu um certo alento como realizador. Tive uma experiência muito interessante de filmar pela primeira vez com duas câmeras, movimentando as câmeras, os atores, no corte. Produção muito bacana mesmo, com todos os recursos, tudo correndo perfeito. A equipe de 60 pessoas, eu nunca tive isso na minha vida. 60 pessoas, parece mentira.
EE – Passando às influências na sua obra, Xavier. Até vejo o seu cabelo meio Jean-Pierre Léaud, pro lado... [risos]
XO – [risos] É...
EE – ... E lembro de “Os Incompreendidos”. Quais as outras referências, importantes pra você?
XO – Antes do “Marcelo” eu não tinha visto “Os Incompreendidos”, mas gosto muito do Truffaut, grande cineasta. Havia assistido ao “Jules et Jim”, depois vi todos os filmes. Existem outros autores que também me influenciaram. Por exemplo: poucos conhecem o “Studs Lonigan”, do Irving Lerner, que pegou o título imbecil aqui no Brasil de “Uma vida em pecado”. Gosto muito desse filme, pode ter me influenciado mais até do que o próprio Truffaut. E também assisti a um filme que me impressionou muito, antes de começar como diretor, o “Mensageiro do Diabo”, de Charles Laughton. Eu não sei dizer qual a ponte, mas me impressionou muito, muito, muito. Vi num cinema antigo em Ipanema, o Pirajá. Essas coisas todas vão permeando o seu imaginário. Fellini, “As Noites de Cabíria”, “Estrada da Vida”. As pessoas comentam que o “Gargalhada” tem influências do Fellini, mas eu não sei exatamente se é influência dele ou se a matriz é a mesma: o circo.
EE – E como você se sentia no panorama da época? O seu cinema não era necessariamente cinemanovista.
XO – Não era, por isso que eu disse que eu e o Calmon, apesar da mesma origem, acabamos nos afastando do ponto de vista artístico. Fui trabalhar com o Roberto, com o Flávio, com o Reginaldo; o Calmon foi ser assistente do Glauber, depois do Cacá. Curioso, porque nós éramos uma novidade também. Não havia cinema amador no Rio de Janeiro. Me lembro que o Barreto convidou a nós todos para ir à casa dele. As pessoas começaram a querer saber quem era aquela garotada que surgiu, saber a nossa opinião também. O Alex Viany, certa vez, fez uma entrevista longa conosco, para publicar no “Jornal do Brasil”. O Glauber escreveu matérias sobre os filmes, inclusive sobre o “Escravos de Jó”. Havia uma espécie de carinho, de aceitação, um “venha até nós”, dos cineastas que já eram conceituados.
EE – Mas que depois não se confirmou, ao longo do tempo. Porque bifurcou.
XO – Conheci todas essas pessoas do Cinema Novo, eram meus amigos, até. Gostava muito do Leon Hirszman, que era uma pessoa muito brilhante. O Joaquim Pedro, o David Neves, o Marcos Farias, o Arnaldo Jabor. Pessoas muito preparadas, cultas, eles tinham as teorias deles. O Leon era uma cabeça pensante. Alguns se reuniam em frente ao bar da Líder, um laboratório de revelação e cópia dos filmes, em Botafogo, na rua Álvaro Ramos. Mas eles seguiam uma concepção estética que às vezes colocava de fora outras pessoas que não pertencessem à mesma visão. Por outro lado, quando nós estávamos escrevendo “Os Paqueras”, eu e o Reginaldo, surgiu uma comédia brasileira que não tinha nada a ver de chanchada, que explodiu e trouxe um novo conceito, o “Todas As Mulheres do Mundo”, do Domingos Oliveira. Esse filme foi muito importante. Tanto assim que nós começamos até a mudar algumas coisas. Implicitamente você começa a mudar alguns pensamentos que você estava querendo desenvolver. Era um filme de costumes, uma história de amor, muito espontânea. Dois anos depois surge o “Macunaíma”, dirigido por um dos próceres do Cinema Novo, o Joaquim Pedro, e que se apropria de elementos da chanchada para criar uma obra soberba. Ou seja, os movimentos se sucedem, cada qual com o seu estilo. No geral, o Cinema Novo foi importante, como foi importante também a Bossa Nova. Mas era um cinema elitista, voltado para um público selecionado, em flagrante oposição à chanchada. Não eram filme populares, eles não tinham essa pretensão de um filme popular.
EE – A Lestepe estava na ativa bem nesse meio-tempo. Como ela surgiu, efetivamente?
XO – Começa em 66, pouco depois de “Escravos de Jó”. Montei a Lestepe porque precisava ter uma empresa. Além de mim, eram mais 4 pessoas: Denoy; Luiza Prado, uma amiga nossa, ceramista; o filho dela, Laury Ferrari, economista, importante para fazer os projetos; e o Rui, meu irmão. Tentamos levantar junto à CAIC um financiamento para outro filme, anterior ao “Marcelo Zona Sul”. Uns 3 ou 4 anos antes. Mas, um amigo nosso, de dentro da CAIC, me deu um conselho: “Você tem 4 sócios. Com exceção de você, todos têm problemas políticos.” O Denoy no Opinião; a Luiza no Partido Comunista; o filho dela, menos; o Ruy estudando desenho, animação, na Hungria, país comunista na época. “Qualquer projeto que você apresentar na CAIC será investigado, a vida dos sócios será investigada. Se der algum contratempo, Xavier, você está perdido.”
EE – O que você fez?
XO – Falei pras pessoas saírem. Ficamos somente eu e minha mãe. A partir daí, já em 69, consigo financiamento pro “Marcelo Zona Sul”. A CAIC era então dirigida por um coronel do Exército, o Coronel Américo. Homem muito íntegro, sujeito direito, técnico, professor de português. A Armênia o convidou a assistir ao que nós já tínhamos: o filme estava em banda dupla, a imagem e o som correndo fora do filme, em magnético. Ele foi ao estúdio da Herbert Richers, eu coloquei 3 rolos para ele ver, 10 minutos cada um. Parte 2 com a parte 4, enfim, pra ele ter uma visão geral. Ele assistiu, percebeu que o filme estava pronto, que eu não estava vendendo fumaça, e nos financiou. Graças à CAIC o filme foi concluído.
EE – No “André”, o esquema foi parecido?
XO – No “André” eu apliquei todo o dinheiro ganho com o “Marcelo”, que foi muito, era muito dinheiro mesmo. Eu me achava o homem do braço de ouro. Apliquei tudo, e meu sogro vendeu uma casa lá em Goiânia, então ele tinha 10%. O pai da Armênia, do Stepan. Obtive um pequeno lucro. Nesse espaço de tempo, foi criada a Embrafilme, eu estava muito bem credenciado como cara de sucesso. Com o “Marcelo” e o “André”, ganhei prêmios. Melhor diretor do ano, essas coisas. Além disso, nessa mesma época o teatro do meu irmão fracassava. O Opinião foi perseguido pela direita, fecharam muito o cerco, os espetáculos não iam pra frente, não obtinham verbas oficiais, o CCC, “Comando de Caça aos Comunistas”, colocou uma bomba na porta, destruiu toda a fachada do prédio. Começaram também os desentendimentos internos, entre certos sócios. Resumindo, o Denoy sai do Teatro, vai trabalhar comigo na Lestepe, participa da produção do “André, a Cara e a Coragem”. Consegui um financiamento na Embrafilme para um projeto que eu tinha, o “Banana Kid, Super-Herói Tropical”. História de um super-herói brasileiro em confronto com o Super-Homem, a inferioridade. Mais político. Abri mão desse financiamento pro Denoy fazer o primeiro longa-metragem dele, o “Amante Muito Louca”. Um filme importante, premiado, uma boa bilheteria, e conseguiu novamente levantar a nossa empresa. Que tinha, de certa maneira, se abalado muito com o “André, a Cara e a Coragem”. A produtora terminaria, anos depois, com a morte da minha mãe. Atualmente eu tenho uma nova empresa, a Ártemis, que herdou o acervo da Lestepe. É por ela que entro em concorrências e vendo meus filmes, pra Globo, pro Canal Brasil, pra TV Brasil etc.
EE – O que me dá o gancho para perguntar sobre o esquema de produção atual. O que você comentaria a respeito?
XO – Houve um salto tecnológico muito grande, em diversos sentidos, da minha geração de cineastas pra cá. Às vezes até converso com a Armênia sobre isso. “Imagina Fulano, se eu fosse falar em Excel pra ele...” Eu fico pensando em alguns colegas caóticos que eu conheci, muitos já falecidos, como é que eles estariam se comportando hoje em dia diante dessa parafernália. Esse é um aspecto. Outro aspecto, mais polêmico, tem a ver com a temática. Em julho de 2007, fui convidado para o Summer Film School, na República Tcheca, na cidade de Uhreske Hradiste, para workshops, debates e exibição de 2 filmes meus. Havia uma homenagem ao cinema brasileiro. Eu senti então que a expectativa dos europeus em relação a nossos filmes é sobre as nossas misérias, sobre as nossas crianças famintas, essas meninas de 14, 15, 12 anos se vendendo por 5 reais. Se o filme não tocar nesses assuntos, não desperta interesse para o europeu.
EE – Não é brasileiro.
XO – Não é brasileiro, não interessa ao europeu. Uma história de amor, por exemplo, não interessa a eles.
EE – Aquele estereótipo da sociochanchada. Você já sabe de antemão o princípio, o meio e o fim. Têm uma suposta denúncia social. Fabricam estes filmes em série, ganha-se muito dinheiro, em vez de se fazer os filmes que você está falando.
XO – Isso aí eu senti claramente nos filmes de impacto lá. E fico vendo essa enxurrada de filmes que as pessoas fazem aqui sob esse prisma. E me bate uma dúvida, eu não sei se maliciosa ou não, se a criatividade dos nossos realizadores está muito subordinada ao sabor europeu. Ao que eles querem ver da nossa realidade. Eu gosto muito do meu Brasil, e acho que nossa realidade não é só bala perdida e miséria. É essa, mas não é só essa. São coisas depreciativas, muito depreciativas do nosso povo. Enfim, uma colcha de retalhos, mostrando o nosso lado mais miserável. Criou-se um ciclo no nosso cinema assim, ao gosto do primeiro mundo. E eu não estou nessa. Pode ser que eu esteja falando aqui um ponto de vista muito pessoal, questionável, mas essa tendência atual me irrita. Palavra de honra. Me irrita.
EE – Xavier, chegamos à pergunta final. Assim como você, eu também me emocionei em diversos momentos ao longo desta conversa. São muitos pontos, muitos aspectos riquíssimos. Gostaria de saber, então, o que você acha que fica da sua obra.
XO – É difícil dizer, avaliar exatamente o que fica da obra. Eu me coloco diante dela, dos meu filmes. Poucos filmes, na verdade eu fiz poucos filmes. Uma certa frustração de não ter filmado mais. Há essa situação muito melancólica no cinema brasileiro, o Leon disse uns anos atrás e é verdade. O sujeito passa 5 anos, 8 anos, 10 anos, sem filmar. É difícil você estabelecer um contato orgânico entre os seus filmes havendo um hiato tão grande. Meu irmão Rui, que é desenhista, diz sempre que quando passa uma semana sem desenhar ele sente uma falta de destreza na mão. Uma certa dificuldade em desenhar, pois ele tem que ficar permanentemente desenhando, pintando. E o cineasta brasileiro é essa entidade estranhíssima, é a nossa realidade. Você vai ver, no fim da vida, que dirigiu 10 filmes, no máximo. É uma coisa angustiante. Agora, tentando responder mais objetivamente à sua pergunta. O que eu gostaria que ficasse... Bom, um artista que tentou fazer seus trabalhos com sinceridade, e sobretudo preocupado com o ser humano comum. Pessoa comum, com a qual a gente esbarra no meio da rua. Seus pequenos sonhos, pequenos deslizes, seus pequenos pecados, pequenas virtudes. Essa pessoa me interessa.
EE – É a sua lírica, realmente.
XO – Me interessa porque é o grosso da humanidade, é o grosso de uma sociedade. A questão de os filmes nossos estarem com as salas vazias eu atribuo a essa falta de identidade entre o nosso cinema e o ser humano comum. A pessoa que trabalha, que está atrás de um emprego, que está querendo conquistar uma namorada. O camarada que quer conversar com o filho mas não consegue, porque não tem diálogo. Esses flagrantes, esses conflitos do cotidiano. A meu ver, isso está faltando no cinema brasileiro. Esse elo de ligação, esse poder da pessoa olhar para a tela e ver seu próprio rosto. Porque as situações são sempre excepcionais, os personagens são sempre excepcionais, dá a impressão de que se repete tanto esse tipo de temática a fim mesmo de chocar. Creio que isso não forma cinematografia. O cinema americano é uma escola, sim. Às vezes eu pego na locadora uns clássicos e fico revendo. O grande trunfo do cinema americano foi essa medida que ele fez do ser humano comum. Nunca me esqueço dos filmes do Elia Kazan. São pessoas, tipos, com seus conflitos. E tantos, tantos diretores americanos. Gostaria que ficasse pros pósteros, para as pessoas que vão analisar meus filmes daqui a 50 anos, quando não estarei mais existindo, que fui um cineasta preocupado com esse tipo de gente. Não há heróis, nem bandidos. Somos nós mesmos, com as nossas deficiências, com os nossos esplendores, com os nossos sonhos, com as nossas frustrações, com as nossas angústias, com as nossas expectativas de vida. E com os nossos fracassos também, não é? Ainda há pouco nós estávamos analisando o fato de os meus filmes terem sempre o personagem diante de suas impossibilidades. Esse cotidiano é às vezes aterrador. Gostaria, portanto, que as pessoas vissem meus filmes como resenhas sobre os minúsculos sonhos do ser humano.
7 comentários:
òtima entrevista Andrea. Já te falei o tanto que gosto de O Vampiro de Copacabana, não é?
Nele está todo esse recorte existencial que você destaca na obra do Xavier.
Um beijo querida.
O Brasil trata muito mal seus talentos. Em qualquer outro lugar um cineasta como Xavier de Oliveira teria sua obra estudada nas faculdades, analisada em livros, homenageada em mostras, mas aqui...
Que bom que temos você, Andrea, pra resgatar essas grandes figuras do ostracismo a que foram relegadas.
Belíssima entrevista!
Beijos.
Outra entrevista perfeita! Bom conhecer a história e as estórias de Xavier de Oliveira, a quem devemos muito respeito e admiração. E você, Andréa, mais uma vez conduzindo elegante e inteligentemente uma entrevista.
Neste domingo, dia 29/03, a TV Brasil (canal 19 em Minas)exibirá "Marcelo Zona Sul" no Programa de Cinema, às 12h. Eis uma excelente oportunidade para ver ou rever este clássico da filmografia nacional.
Forte abraço para você e para o Xavier Oliveira.
Andrea, escolhi o Estranho Encontro para um prêmio. Passe no meu blog para maiores informações.
Beijos!
Andrea, somente agora consegui ler esta longa (e genial) entrevista com o Xavier. Que coisa fantástica, que cara acima da média. Gostaria de ver mais coisas assim nesse genial blog. Tenho dito: Andrea Ormond é a melhor amiga do cinema brasileiro.
Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com
Excelente entrevista, Andrea, uma verdadeira "viagem" no itinerário de Xavier de Oliveira. Tive muito prazer em conhecê-lo.
Adilson, obrigada. Acho que entre o Vampiro e Marcelo, Andre e Gargalhada Final, o Vampiro perde. Mas vejo nele qualidades tb, com o tempo fui percebendo várias coisas ali. Beijos, querido
Obrigada, Sergio. Os méritos do Xavier, dentro e fora da entrevista, são imensos. Os filmes falam por si e o bate-papo que tivemos foi emocionante para mim tb, houve uma compreensão mútua que acho importantíssima para as coisas fluírem. Quanto à indicação ao prêmio, já respondi no Kinocrazy :) Beijo!
Márcio, que bom vc ter colocado este aviso sobre a reprise do Marcelo, adoro quando isto acontece. Quem lê o texto pode pessoalmente conferir o filme e tirar suas conclusões. Obrigada, grande abraço pra vc!
Matheus, a entrevista é longa e cheia de detalhes, realmente. O depoimento tem uma qualidade humana fortíssima, me impactou tb. Obrigada pelo carinho, bjs
Não é, Setaro? A conversa com o Xavier foi uma espécie de teletransporte, uma experiência marcante.
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