quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Um Trem Para as Estrelas


"Um Trem Para as Estrelas" (1987) é obra atípica de Carlos Diegues. Vindo de "Quilombo" (1984) -- na verdade "Que Rombo", pelo alto investimento e baixíssimo retorno artístico e comercial -- Cacá Diegues quis fazer um filme "jovem", de tintas contemporâneas. A idéia lhe rendeu uma enorme dor de cabeça, graças ao processo movido pelo escritor Júlio César Monteiro Martins, que alegava ter sido plagiado no roteiro.

Contrariando esta promoção involuntária, a carreira do filme foi pífia, as críticas desfavoráveis, e menos de seis meses após a estréia era exibido na Rede Globo, forma inteligente e sensata de compensar os prejuízos.

E o que resta hoje desse imbróglio? Quase nada. Mesmerizado por néon-realismo, trilha-sonora de Gilberto Gil e um roteiro tão ingênuo que é difícil imaginar demanda judicial por ele, "Um Trem Para as Estrelas" sobreviveu entre as melhores coisas dos anos 80. Típica fábula oitentista, a recriação de Orfeu -- que Cacá tentaria novamente -- levada a sério em locações que mostram um Rio de Janeiro horrível, transfigurado, promove no século XXI imersão nostálgica, observação poética de certos costumes brasileiros de outrora.

A história estava programada para São Paulo, mas problemas financeiros a deixaram no Rio. Melhor assim: fabricada na capital paulista, se pareceria bastante com "Anjos da Noite" ou "Cidade Oculta", virando pastiche espúrio. Habitantes do subúrbio carioca de Guadalupe, Vinícius (Guilherme Fontes) e Dream (Taumaturgo Ferreira) ganham ares de pessoas reais, jovens cosmopolitas de um país lacrado por dentro e empobrecido pelo surto inflacionário.

Aquele Brasil era ruim, mas não importa. Bom é ver a cidade renascida através de imagens. Nicinha (Ana Beatriz Wiltgen) trabalha na boutique Pier, do Rio Sul (alguém lembra da Pier?), e namora Vinícius, o Vina, saxofonista que busca uma chance de ser famoso. Os dois vivem noite de amor; na manhã seguinte a menina some. Enquanto procura pela namorada, Vinícius se defronta com o inferno, e com uma porção de referências datadíssimas, como Cazuza e a banda Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros.

A aparição do performer Fausto Fawcett é o ponto alto da trama. Conhecido nacionalmente por "Kátia Flávia", naquele ano de 87 Fausto gravava um dos melhores retratos pop-musicais da década. Seu lp de estréia narra uma saga absurda, com influências de Arrigo Barnabé e "Clara Crocodilo", sobre personagens fictícios da noite de Copacabana. Uma espécie de "Rio Babilônia" em vinil, a ser redescoberto, ótimo quando documentado em alguns minutos de "Um Trem Para as Estrelas".

Na peregrinação, Vinícius conhecerá também uma delegacia, onde o delegado (Milton Gonçalves) bebe cerveja durante o expediente. Ainda freqüenta uma redação de jornal, habitada por tipos como o bêbado Teacher (José Wilker), repórter de sarcasmo abundante: "Também já fui brasileirinho feito vocês. Torcia pelo Flamengo, era Mangueira...", além de uma favela abençoada por milagres.
Entre altos e baixos, o calvário de Vinícius se sustenta, mesmo que a favela esteja fora de contexto e o desfecho da namorada seja toscamente inverossímil.

Curioso
lembrarmos de Guilherme Fontes esperando o sol nascer e tocando sax: "Falta pouquinho para o ano 2000, e nós vamos ser os habitantes da Terra do terceiro milênio!" Fontes nem imaginava que chegaria aos anos 2000 enrolado com um tal de Chatô, mas aí já é outra história.

Dream, com quem Vina realiza um assalto, tem aquele sonho cafona e latino-americano de dar no pé e trabalhar nos Estados Unidos. Imagina uma Nova York maniqueísta, esteticamente perfeita, ao gosto da ideologia classe-média, que logo estaria trocando o circuito Nova York-Londres-Paris pelo arrivismo de Miami. Passados um ou dois anos, certo que o rapaz viraria eleitor de Collor, e Taumaturgo Ferreira escandiria as sílabas, naquele seu falar característico, para louvar as belezas e o sonho de vender cachorros-quentes em uma praia da Flórida.

"Um Trem Para as Estrelas" é sociologia do "que foi ou poderia ter sido" em estado puro. Se aparentava ter linguagem ágil, de videoclipe, hoje transparece aquele movimento reflexivo (e opressivo) típico do cinema nacional. Se gerava cartas furibundas para os jornais acusando-o de retratar a juventude marginalizada como leviana e apta ao crime, agora descortina uma ética otimista e infantil. O que nunca sai de moda é a boa estrela de Cacá Diegues para realizar filmes que devem ser bem guardados em prateleiras e apreciados com renovado interesse, dez ou vinte anos depois.


7 comentários:

Fofão disse...

Andrea, concordo que o "Quilombo" tem seus defeitos (o didatismo de botequim é o pior deles), mas penso que tem vários méritos na pesquisa e na parte técnica.

Adilson Marcelino disse...

A grande Léa Garcia fez um comentário ótimo sobre "Qilombo" na entrevista que deu para mim no Muheres:

O “Quilombo” para mim é muito festivo, eu acho uma festa. Eu entendi ali a visão do diretor, ele achou que chegou lá em cima, porque o “Ganga Zumba” é uma preparação para o “Quilombo”. Mas “Quilombo” é uma festa, apesar das mortes acontecendo, é tudo muito festivo. Será que aquelas pessoas tinham tempo de fazer aquelas trancinhas cheias de contas? Cada hora que o Pitanga vem ele está com um cabelo diferente na cabeça, cada um, a cada hora, está com um cabelo diferente. Não, eu sei que na África tinha tempo para isso, mas lá em cima no Quilombo não tinha muito não. Muita fantasia, muito carnavalizado, muito."

Bjs

Adilson Marcelino disse...

Outra coisa:
No "UM Trem para as Estrelas" tem uma participação de Betty Faria como a mãe prostituta do Guilherme.
Quem ia fazer esse papel era a Marília Pêra, mas como ela é GRANDE atriz, mas bastante encrenquinha, ela recusou dizendo para o Cacá que quando ele tivesse um grande papel para ela, ela faria.
Daí ele fez o delicioso "Dias Melhores Virão".
Bjs

Andrea Ormond disse...

Fofão, acho que o "Quilombo" como a maioria dos filmes do Cacá veio melhorando com o tempo, mas não tem a mesma força de um "Xica da Silva", de um "Ganga Zumba".

Adilson, muito interessante o comentário da Léa sobre o filme. Que bom a Marilia Pêra não ter aceitado, a Betty Faria está ótima como sempre no papel da mãe do Guilherme. Versátil, intensa. Bjs

MA disse...

QUERIDO CLERY, NOSSA!!! QUANTO TEMPO EU TE PROCURO, SÓ AGORA 35 ANOS PASSADOS UMA AMIGA ME MOSTROU ESTA ENTREVISTA,TENHO UM ENORME CARINHO POR VC E TB SAUDADES. E TB SOU GRATA A VC POR TER ME DADO 3 PAPÉIS NOS SEUS FILMES. IMFELISMENTE OU FELISMENTE[vai saber] ABANDONEI A CARREIRA MUITO CEDO E VIREI ESPOSA E MAMÃE FULL TIME.[tb me achava péssima como atriz] RSRS... SE VC PUDER ENTRA EM CONTATO COMIGO. TH FILHOS CASADOS E SOLTEIROS E SOU APOSENTADA. [ Ñ TENHO 68 ANOS E SIM 58] COMO VI NA FILMOGRAFIA. TB Ñ FIZ ALGUNS FILMES Q ME FORAM ATRIBUIDOS. TB Ñ IMPORTA +... UM GRANDE ABRAÇO DA MAGRIT...

Rose Barreto disse...



Me Perdoem a ignorância mas o que significa a aparição do helicópetero?

Anônimo disse...

O roteiro peca mais no final, puramente sem lógica. A suposta namorada criminosa do saxofonista provou sumindo por motivo fútil que não queria nada sério com ele e mesmo assim ele ajuda ela a fugir, jogando sua chance de brilhar nos palcos e se ferrando no final.