terça-feira, fevereiro 17, 2009

Biografia Entrevista - Clery Cunha


Dialogando com o autêntico imaginário do povo brasileiro, o cineasta Clery Cunha realizou de final dos anos 60 até meados dos anos 80 filmes como "Joelma 23o Andar", "O Outro Lado do Crime" e O "Rei da Boca", abordando fenômenos que nasciam nas ruas de São Paulo e se espalhavam pelo país.

Lá estão o espiritismo vinculado à tragédia do edifício em chamas, a crônica policial de Gil Gomes e a lenda urbana do marginal que se forja um mito. Não à toa, no final da década de 80, Silvio Santos chamou Clery para ser um dos coordenadores do inesquecível "Aqui, Agora", um dos melhores e mais originais programas jornalísticos já feitos na tv brasileira.

Ouvir Clery Cunha era imperativo para o Estranho Encontro; fato que se realizou em uma tarde agradável de Agosto de 2008. O testemunho do diretor preenche uma lacuna aberta na historiografia do cinema nacional, tão suscetível a preconceitos e cruéis esquecimentos.


ESTRANHO ENCONTRO – Clery, todas as entrevistas do Estranho Encontro começam com um rápido panorama da infância e da adolescência dos entrevistados. Quero saber isso de você.

CLERY CUNHA – Com certeza. Meu pai era da Força Pública, hoje o que se chama Polícia Militar. Chegou até a ser delegado. Eu tenho irmãos mineiros, paulistas, e nasci, incrivelmente, em Goiânia. Aliás, um dos meus irmãos faleceu em Goiânia. Era jornalista, se formou aqui em São Paulo, um grande orador, morreu num desastre de avião. Então a minha ramificação, a minha origem, é de Goiás. Mas sou um paulistano incrível, vim pra cá com oito anos...

EE – ... E você nasceu em...

CC – Olha, eu já estou meio velhinho [risos], embora esteja bem fisicamente. Nasci em 22 de junho de 1939, completei agora 69 anos. Fumo, bebo relativamente. Mas sou entusiasta de esportes. Tive amigos que já se foram, e o Clery Cunha está aqui, inteirão [risos].

EE – [risos]

CC – Quando garoto, eu era aficcionado por histórias em quadrinhos, uma loucura. E no cinema passavam muitas séries na época. Incrível, aqueles seriados que vinham de fora e eram fascinantes. Esse foi o primeiro contato com o cinema. Já em São Paulo continuei assim, e fiz meus estudos aqui.

EE – A São Paulo dos anos 40, 50.

CC – Na década do 4o. Centenário, 1954. O Cine Santa Helena, na praça João Mendes, só exibia essas séries. Uma delas era de um tal de Aranha Negra. Veja bem, não era o Homem Aranha [risos], era um cara de capa quadriculada, de luva, chapeuzinho. Quando estreiou na Tv Tupi, o maior estouro, o Cassiano Gabus Mendes teve a idéia: “Vamos introduzir séries locais”. Uma delas, muito arrojada, chamava-se “O Falcão Negro”, estrelada pelo José Parisi. A abertura eles tiraram do Ivanhoé, muito rápido para não identificar. Era um herói mascarado, medieval, de capa e espada. O Dionísio Azevedo, o Lima Duarte, até o Francisco Cuoco faziam. E eu estudava no Brás, na Escola Estadual Sarmiento que existe até hoje, na esquina com a rua 21 de Abril. Tive a sorte de ser colega de classe do irmão do José Parisi, o Armando. Enchi tanto o saco dele que consegui conhecer o ator. E de frente à escola ainda morava a mãe do Francisco Cuoco.

EE – Tudo conspirando a favor...

CC – Tudo. Também trabalhei no Banco Auxiliar de São Paulo, num bar e numa tinturaria. Mas no dia em que eu vi um um ônibus da Tv Tupi, aliado à chance através do Armando Parisi, aí... fui trabalhar como assistente, cabo man na Tv Tupi.

EE – Mas como foi isso?

CC – Ah, eu tinha 16 anos. O Armando falou: “Meu irmão sempre visita a nossa mãe, vem sempre.” Num domingo, com a minha perna tremendo, eu suando em bicas, fui lá na casa deles. “Ô, garoto, vem aqui. O que que você quer fazer? Tem uma vaga.” E tinha realmente. Os cabos eram dessa grossura; as câmeras, uns trambolhos. Eu queria ser câmera, mas devido à minha estatura não havia condições. O César Monteclaro me dizia: “Era pra você ficar na portaria, estagiando. Mas passa uma hora aqui com o pessoal técnico, pra aprender a ser cabo man do estúdio, já que você nunca pára na portaria mesmo.” [risos] Lá eu recebia as correspondências, e assim tive contato com a Eva Wilma, Johnny Herbert, Lima Duarte.

EE – Você começou primeiro, então, na Tv. E como passou pro cinema?

CC – Demorou um tempo. No Canal 2, por exemplo, pintou um programa chamado “Hélio Souto Com Vocês”, de entrevistas. O Hélio era muito vivo, já havia participado da primeira fita colorida brasileira, a primeira participação do Paulo Autran, “Destino em Apuros”. Aliás, nem foi revelado aqui porque os laboratórios não tinham condições para isso. O segundo filme em cores foi o “Dioguinho”, do Constantin Katchenko, o diretor que depois me lançaria no cinema. E, em frente à Tupi, na Sete de Abril, existia um restaurante chamado “Porta do Sol”, o point de encontro de todos naquela época. Eu, garoto, vivenciava, interagia com todo esse pessoal. Um tempo depois [1960] seria feito um filme chamado “Conceição”, preto-e-branco, direção do Hélio, mas na realidade foi do Constantin, que era um grande diretor de fotografia. Como eu trabalhava no programa do Hélio, falei que queria participar. Toparam.

EE – E assim começou.

CC – Por sinal, esse filme lançou o Mário Benvenutti, um ator de uma qualificação profissional incrível. O Walter Avancini também teve um papel; Wilson Miranda, cantava “Bata Baby”; além da Norma Bengell, que já vinha anteriormente do “Os Cafajestes” e da Atlântida também. Na época eles não conseguiram a gravação original da música “Conceição” porque o Cauby, que estava arrebentando, não quis. O tema era nome da personagem, ela aparece morta e depois vem o flashback...

EE – ... É a história da menina na favela.

CC – Exatamente. Foi um grande sucesso do Hélio Souto. Antes de eu entrar no estúdio, que era uma casa na na Francisco Matarazzo, eu pensei, “puxa, vou colocar um terno”. Um terninho de listra que eu tinha [risos], a gravatinha fininha. Sabe o que aconteceu? Era a seqüência de rock! Wilson Miranda cantando “Bata Baby”, todo mundo dançando rock e eu não sabia, completamente por fora, o pessoal de tênis... Aquela época, juventude transviada, todo mundo a caráter... e eu de terno. Todo mundo: “olha o cara”... [risos]

EE – [risos]

CC – [risos] Eu improvisei: “Faz o seguinte, eu sou um bêbado”. Aquilo foi impetuoso da minha parte. O Mário Benvenutti era ator e produtor, mandava em tudo. Um parênteses: o pai dele era dono do restaurante “Papai”, na madrugada todo mundo de televisão ia lá, na praça Júlio Mesquita. O irmão dele foi dos Incríveis, o Manito. Voltando: Eu estou no estúdio, vejo a câmera ali, já tinha essa noção da televisão, e o Mário Benvenutti era o único de terno. Fiz um papel de bêbado, fui afastando umas pessoas no meio da cena, e encarei o Mário... [risos]

EE – Aproveitou a deixa, não é? [risos]

CC – A deixa! No cinema nacional você faz 3 por 1 e é o corte. Aí o Mário [gritando]: “Quem é esse figurante, que vem e me encara?!” Mas acontece que agradou. E foi. A primeira aparição do Clery Cunha no cinema.

EE – Você foi continuando com o cinema, ao mesmo tempo que com Tv. Sempre desta forma, não é?

CC – Sempre, sempre. Teve uma co-produção Brasil-Alemanha do Alfredo Cohen, produtor, chamava-se “Noites Quentes de Copacabana”. Além desse, fiz “Carnaval Sangrento” e “Lampião, O Rei do Cangaço”, do [Carlos] Coimbra, a minha primeira fala no cinema, gravado em Itú. O Enoque Batista, que está no andar de cima, tinha que pegar a cabeça do Lampião, feita pelo Fracari, artista plástico. Por muitos anos, o Enoch cuidava muito de produção, mas como ator ele estava com essa incumbência e gaguejava. Como eu era bom falante [risos], o Coimbra: “Clery, é o seguinte...” A fala foi dividida. O Enoque levantava a cabeça e depois eu gritava: “Venham ver a cabeça do homem que tinha o corpo fechado!” Esse foi o lance, então... E consecutivamente eu já estava na Rua do Triunfo, grande movimento...

EE – ... Mas continuando na Excelsior.

CC – Lá, por exemplo, eu conheci o Tony Vieira durante [a novela] “A Deusa Vencida”, em que eu fui assistente. O Tony era um atleta, fazia acrobacia, trabalhava em circo e entrou na novela com um papel de grande sucesso. Ele fez “Panca de Valente”, do Luís Sergio Person, “Um Pistoleiro Chamado Caviúna”, dirigido pelo Edward Freund. Neste eu participei como ator. Teve também o “Idílio Proibido”, do Constantin Katchenko, com a Maria Stella Splendore, o Roberto Bataglin, o pai...

EE – ... A Maria Stella Splendore, mulher do Dener. Aliás, ele era o mesmo dândi fora das telas?

CC – Igualzinho. Tem pessoas que criam um tipo e são totalmente outro, mas o Dener era autêntico. Tanto é que ele foi em Matão, a gente estava gravando lá, e ele chegou [risos]. “Aqui tem mosquitos, eu quero que abanem...”

EE – [risos]

CC – E esse, por sinal, foi o meu primeiro filme como assistente de direção. Depois, com o Roberto Mauro, fiz o “As Mulheres Amam Por Conveniência”. Aí fui pro Rio com o Katchenko, em “Maria Bonita, A Rainha do Cangaço”, que eu não cheguei a complementar porque tive um acidente, fiquei mal. O Constantin era russo, não conseguia se comunicar com os atores e falava: “Vai lá, resolve.” Com o Katchenko fiz 4 fitas, na realidade. Entre elas, “Maridos em Férias”, na seqüência, e “Como Evitar o Desquite”.

EE – Já estamos no início dos 70, então, época do seu primeiro filme como diretor, “Os Desclassificados”. Como você chegou nele?

CC – Foi um fato verídico, acontecido aqui em São Paulo. Aliás, um dos primeiros assaltos a carros blindados. Eu estava andando com o meu amigo Ézio Vicário, ator também, está no andar de cima. Fundamos no Brás a União Teatral Juvenil, um grupo de teatro amador, com apresentações esporádicas. Um dia eu fui com o Ézio na Penha, de bonde, estávamos quase no Largo da Penha. Chovia muito, quando então presenciamos um assalto, eu e ele. Tiroteio. Uma criança baleada. O terror, e a gente presenciou isso. Tempos depois saiu o 1o. Festival de Teatro Amador da Tupy, o Antunes Filho era o idealizador, mais de 600 grupos teatrais inscritos. Aquele assalto ficou tão marcado, com os subsídios da imprensa também falando sobre o caso, que fiz o primeiro relato desse fato, intitulado “Dinheiro Sangrento”. Ganhei Troféu Tupi Menção Honrosa como melhor mensagem da juventude. Quando eu já estava no cinema, levei a idéia. Aí o produtor chegou, o Saheb Naim Homsi, que tinha 40 lojas de sapato...

EE – ... Ele era um dos responsáveis pela Profilbrás, que sempre aparece nos seus filmes?

CC – Exatamente. Profilbrás, “Produção de Filmes Brasileiros” eram quatro sócios: eu, o Saheb, o Jesse [James] e o Gyula Kolozsvary, diretor de fotografia, hoje está em Ribeirão Preto. Foi o Jesse, essa figura, que me apresentou ao Saheb. “Olha, esse cara tem uma grana, ele quer produzir cinema, ele é aficcionado. O cara é quente.” Fui conhecê-lo, claro. Na Teodoro Sampaio, em Pinheiros. “A gente podia fazer um contrato de 5 fitas, Saheb”. E ele: “Qual é a melhor produtora?” “Oswaldo Massaini, claro.” E o Oswaldo já me conhecia do Constantin Katchenko, das minhas atividades como assistente. Nunca tinha acontecido de um cara fechar um contrato desses, mas é que o Massaini me deu um aval fantástico. Tudo combinado, o Saheb falou: “Bom, eu quero algo de impacto.” E nisso eu me lembrei do que o Katchenko dizia: “Você tem que ter uma porrada no início, uma no meio, uma no fim. Porque o resto você costura.” Esse é o cinema. Se você tem um argumento com um impacto fulminante no início, outros no meio e no fim, você garantiu o roteiro. Eu me lembrei do assalto, do “Dinheiro Sangrento”, não sabia realmente o que eu iria fazer, mas disse: “olha isso aqui, nós ganhamos”. Aí foi o início, realmente, de como nasceu o filme. É claro que os personagens foram tomando vulto.

EE – E como a Joana Fomm, a protagonista do “Os Desclassificados” conheceu o projeto?

CC – O Astolfo Araújo era marido dela, a gente convivia. E a Joana Fomm, sem sombra de dúvida, era uma estrela em grande ascensão. Ela já tinha participado de vários filmes, e entrou no projeto quando eu estava terminando o terceiro tratamento do roteiro.

EE – Você escreveu o roteiro com o Jesse James?

CC – Foi. E a Joana se apaixonou pelo fato verídico do “Dinheiro Sangrento”. Se você analisar “Os Desclassificados”, os personagens centrais são os bandidos. O Hélio Souto e a Joana Fomm são o complemento, mas de grande importância no desfecho da coisa toda. Foi muito difícil, por exemplo, eu ter 35 minutos de um fato verídico, como era o texto que ganhou o prêmio no Festival, e depois partir para a construção de situações e personagens...

EE – ... O personagem central, do Darcy Silva, por exemplo..

CC – Pois é, nas reportagens, isso deve ter microfilmado, ele era o mentor intelectual do assalto. Sobrinho de um senador chamado Aldo de Moura Andrade. O cara era muito rico, ele tinha essa ânsia, essa tendência, sem necessidade de dinheiro. Contratou um pessoal. Perguntaram pra ele: “Mas por que você faz isso?” Pelo prazer de sentir. Esse foi o gancho, a partir dele nós fomos criando. E eu posso dizer que dirigir e fazer um papel quase central é muito duro, eu emagreci. Peso normalmente 64, 65 quilos, fiquei com 55. Iniciei as filmagens pelo quarto, a seqüência dos bandidos, depois estava pronto o roteiro.

EE – Alguma curiosidade do set?

CC – Um fato muito interessante: quase que o Darcy ficou cego. Isso está registrado, até o Ary Fernandes me perguntou “puxa, mas como é que você fez esse efeito?” Não foi efeito. É o seguinte: tem uma seqüência em que o personagem Berto, que o Darcy faz, está nos estertores da morte, quase morrendo e pega o revólver. O personagem Sabu, do Jesse James, está recolhendo o dinheiro. O Darcy, morrendo, diz “Sabu!” Quando o Sabu vira, é o Roberto Bataglin, quer dizer, na mente do Berto, e começa a dar risada. Muito bem, o Darcy atira. Certo? Corta a cena. O Jesse recebeu o impacto no ombro, se levanta, a câmera abaixa, ele pega o revólver 38, se posiciona perto do rosto do Darcy. Agora você veja que coisa incrível. O assistente de produção, com medo de que se falhasse o tiro, colocou 2 festins. Hoje existe o festim pronto, mas nessa época, não. O que se fazia? Você tirava a pólvora da bala, ela ficava um festim, colocava algodão e tudo bem. Ninguém sabia que tinha outra bala de festim. Quando o Jesse atirou, saiu uma língua de fogo desse tamanho... O Darcy não esperava... Ele levantou, correu, claro que na montagem eu cortei. E a câmera ligada, os 2 se abraçando, ficou rodando. Aquele terror, ele abraçado com o Jesse, a cara dele sangrando. Meu Deus! Eu fiquei paralisado, a equipe toda ficou, eu não sei quem desligou a câmera. Esse negativo existe ainda.

EE – Nesse meio tempo, você tocou em um dos nomes mais pitorescos da Boca, o Jesse James Costa. Também já falecido, e que trabalhou com muita gente, inclusive com o Ugo Giorgetti...

CC – ... Com o Giorgetti ele fez o “Jogo Duro”, no papel de um ex-boxer que cuida de uma casa no Pacaembu. Excelente. Jesse James, motorista de táxi. Me conheceu e quando fui transferido pra Tv Cultura eu estava precisando de alguém ativo, para a produção. E por isso que o Jesse James [risos], meu parceiro, meu amigo, entrou na televisão brasileira. A nossa amizade foi se consolidando daí pra frente, vieram os programas, o “Aqui, Agora”. Fora disso, um ator excepcional, um cameraman fantástico. O pessoal falava “o Jesse é curinga”, e realmente era. Morreu em um acidente de carro, lamentavelmente, já há 2 anos e tanto, 3 anos.

EE – Passando à música do “Os Desclassificados”, como foi escolhida?

CC – Era de um conjunto que não existe mais, o “Harmony Pops”. Do Alberto Luiz, que sempre foi compositor, teve várias músicas de sucesso, traduziu o “Suave é a noite”, escreveu para Os Trapalhões. É redator de programas há muito tempo, desde o SBT, onde trabalhamos juntos quase 10 anos.

EE – E a transição para o “A Pequena Órfã”?

CC – Pouco depois do “Os Desclassificados” a produção do “A Pequena Órfã” começou a pleno vapor. Gravamos em Embu, e teve algumas modificações, comparado à novela da Excelsior. Na novela, eu fui assistente de direção do Dionísio [de Azevedo] e, além disso, o Ary França, que fazia o Mercadoria, foi substituído no filme pelo Noite Ilustrada. Transformar uma novela de 1 ano em um compacto de 1 hora e 20, 23 minutos, não foi sopa. Quase 6 meses pra gente condensar tudo. Mas a menina Patrícia Ayres, de 6 anos de idade, foi mantida. Sobre o filme, tem uma coisa que eu nunca esqueço: quando eu dirigi o Dionísio pela primeira vez. Travei... Eu já tinha rodado uma seqüência da Patrícia fugindo pela rua, algumas outras coisas também. Mas um dia, eram umas 8 horas da manhã, eu com uma equipe grande, de quase 15 pessoas, e aparece o Dionísio... Entrei em parafuso, pelo respeito que eu tinha por ele. Me desmontou, me deu branco. Eu saí, todo mundo percebeu, ele também. Cheguei num bar, pedi Crush, misturei com vodka [risos]. Coisa que eu nunca fiz, porque você tem que ficar caretão mesmo. “Meu Deus, eles vão vir atrás de mim.”Aí surge o Carlos Franco, diretor de produção, e o Jesse James. Voltei para o estúdio. Nisso, o Dionísio fala: “Olha, vocês dois, dão licença, eu quero conversar com o Clery.” Ele sentiu, pôs a mão no meu ombro: “A partir deste momento, a autoridade máxima aqui é você.” Aí, vendo ele falar isso, eu peguei e disse: “Câmera ali!”

EE – E você ainda trabalharia com ele, como assistente, no “A Virgem”...

CC – Eu vinha trabalhando 2 anos direto, porque um filme demanda 1 ano de trabalho e tal, até o lançamento. E como “Os Desclassificados” me deu um desgaste físico muito grande, pensei em descansar um pouco, me recuperar. Aí pintou “A Virgem”. Aproveitei e fiz um personagem, o Chiquinho. Um homem da roça, humilde, que namorava a Maria Luiza Imperial, filha do Carlos Imperial. Me lembro do Dionísio me explicando: “As seqüências de motos você faz todas, e deixa o restante comigo.”

EE – Então as externas, na estrada, foi você que dirigiu.

CC – Foi, toda aquela movimentação de externas. O Saheb Naim Homsi aparece no filme, contracena com a Célia Helena. Aliás, no “Pensionato de Mulheres” ele é o cara rico, que sai com a Cinira Camargo e ela rouba o iate dele. O Saheb sempre quis participar com alguma coisa, mas dizia: o produtor é o Saheb Naim Homsi, eu sou o Roberto Homsi, ator [risos]. “Não sou eu, o Saheb é o meu irmão” [risos]. Ainda sobre o “A Virgem”, o filme teve o Kadu Moliterno, Nuno Leal Maia, Nádia Lippi, Alexandre Radova, Tony Tornado, Célia Olga Benvenutti, que tinha feito “Liliam M.” com o Carlão [Reichenbach]. O filme fez um sucesso muito grande, mas a crítica... E realmente aí está a veia poética do Dionísio. “A Virgem” é muito bem constituído, uma montagem maravilhosa, mas tem uns lances que incomodaram. O Alexandre Radovan recitando García Lorca em castelhano... Ficou meio enfadonho. Reduzimos um pouco, a crítica disse que era “meio ralentado”, mas é uma obra fantástica.

EE – O “Pensionato de Mulheres”, de 1974, veio em seguida.

CC – Um dos últimos trabalhos da grande atriz Ruthinéa de Moraes, ela faz aquela parteira carniceira de uma forma impressionante. A Magrit Siebert também tinha participado de alguns filmes, inclusive o “As Mulheres Amam por Conveniência”, em que eu apareço como ator e fui assistente de direção do Roberto Mauro. Suely Fernandes, Liana Duval, que fez 4 fitas comigo, Silvana Lopes. A Guta, mulata do Sargentelli e que foi esposa do Mussum. A história do “Pensionato” tem vários personagens que se cruzam. Eu faço uma ponta como um ladrão, em todos os filmes eu gosto de entrar assim, ter um papel, não é como o Hitchcock. E o filme bombou realmente, maravilhosamente bem.

EE – Você lembra de onde veio a idéia de fazer esse filme, Clery?

CC – Ali perto da Excelsior, na Nestor Pestana, havia um restaurante grandão, o Eduardo, e um pensionato. Na época eu flertava com uma menina de lá, que trabalhava na Mesbla. Um dia eu entrei. Acontece que a dona do pensionato chegou no quarto, fiquei apavorado. Pelo menos a garota pensou rápido: “Você vai entrar no guarda-roupa! Você vai ficar aí dentro do guarda-roupa!” “Eu não posso, eu tenho que trabalhar! Como é que eu faço? Amanhã eu tenho que trabalhar!” “Fica quieto!” Pra você ver... aí eu fiquei. Nisso chegou a menina da boate. Cada papo! [risos]

EE – [risos] E você captando....

CC – [risos] Você nem imagina, eu lá dentro, com fome. No dia seguinte, a menina veio na hora do almoço. Aproveitei a confusão e desci como se fosse na tramitação normal. Mas ouvi muitos papos, já tinha essa idéia. Pensei no título: “Um Certo Pensionato”. O Jesse aprovou, “Vamos fazer um negócio de pensionato, que dá pé.”

EE – A idéia era anterior a esse dia?

CC – Foi bem anterior. A gente estava rodando “A Virgem”, a Excelsior tinha ido pra cucuia, falido. Pensei no argumento. Coloquei a comerciante, papel da Cinira Camargo, que troca de namorado como se troca de vestido. A outra, liberal; a outra, que trabalha em boate. “‘Um Certo Pensionato’, vou desenvolver isso.” Encontro com a Joana Fomm, que tinha filmado comigo no “Os Desclassificados”. “Joana, eu estou com uma idéia. Assim, assado...” E ela: “Não é possível! Eu estou gravando ‘Pensionato de Mulheres!”. No final, o argumento foi meu e da Joana, com diálogos adicionais do Ody Fraga, grande expert. Você veja, uma coincidência fantástica. E o título dela era muito mais comercial que o meu. Fundimos as histórias, foi um grande sucesso.

EE – A Profilbrás ia se mantendo, sem problemas.

CC – Exatamente. Os roteiros eram muito bem analisados, como tem que ser, sempre. Passa-se por tantas pessoas, as mais diferenciadas possíveis, diferenças de classe, de idealismos, de tudo o mais. Para você sentir, porque aí você tem um parâmetro. E eu sabia disso. “Os Desclassificados” foi ótimo, e depois com o “Pensionato” ganhei o Festival de Resende de cinema, melhor filme. Com o “A Pequena Órfã”, eu tive um respaldo, até hoje ele está inédito na televisão. “A Virgem” correu bem, e o último da série dos 5 foi o “Eu Faço, Elas Sentem”. O povão da época queria ver uma história com começo, meio e fim. Eu sempre acertei na veia do gosto popular, talvez também pela minha origem. Entrei no SBT, antiga TVS, com “O Povo na Tv”. Uma parafernália excelente, um grande boom para o que se tornaria o Sistema Brasileiro de Televisão. Depois, o “Aqui, Agora”, que me deu uma autonomia perfeita para usar a linguagem de cinema.

EE – Na medida em que você também foi produtor, como era lidar com a distribuição dos filmes?

CC – A distribuição era o grande suporte para as produções. Na época todo mundo, eu, Tony Vieira, Ary Fernandes investia nesse sentido. Como eu era diretor e sócio, negociava com os distribuidores. “Clery Cunha, o que você está fazendo aí?” “Eu tenho um projeto.” “Você quer alguma grana?” Veja como era a coisa: na confiança. “Então eu estou enviando hoje 150 mil reais pra você me dar a distribuição aqui.” O Tony, por exemplo, teve no Nordeste uma receptividade tão grande, que ele não fazia mais nada. Telefonava para lá e diziam “Não quero nem saber o que você fez, manda para cá.” A Profilbrás existe até hoje, tem CNPJ, inclusive. Tanto é que estou negociando os 5 filmes com o Canal Brasil.

EE – Depois desse ciclo, veio o “Chumbo Quente”.

CC – Sim, com a dupla Léo Canhoto e Robertinho, que eram uma espécie de Zezé di Camargo e Luciano. Tinham avião, ônibus, agenda lotada. E eu, coincidentemente, vi na televisão, não me lembro em qual canal, uma entrevista com o Léo Canhoto. O Léo é o compositor; o Robertinho, o complemento. Eles faziam shows em circos, bangue-bangue ao vivo. O Jesse James teve a idéia do filme, e como “O Menino da Porteira” estava explodindo, fui verificar a versatilidade dos dois no palco. Incrível! Briga, mesa virando, baú que atira. E a partir de uma dessas apresentações, começamos a armar. Foi bem difícil a realização, por conta da agenda. Rodamos em Mogimirim, Mogi Guaçu, em São Paulo. 95% de externas de dia, umas 3 seqüências à noite, só, durante o filme todo. Quem dificultou mais foi o Robertinho, meio inibido, mas o Léo Canhoto foi de uma grande versatilidade. O resultado final é meio burlesco, meio circense, os bandidos fazem pirueta. Coisas de eles abrirem um queijo e sair um rato de dentro. Inusitado [risos].

EE – No “O Outro Lado do Crime”, o universo era bastante diferente, você trabalhou com o Gil Gomes. O Gil Gomes, que é ao mesmo tempo personagem e narrador do filme, algo revolucionário.

CC – Do “Chumbo Quente” para o “O Outro Lado do Crime”, eu cheguei pro Mouracy Duval, jornalista, que me disse: “Faz o roteiro!” Não deu outra. O Gil Gomes sempre conseguiu atingir pontos de audiência inacreditáveis, no rádio. Sem aparecer, ninguém o conhecia. Só a voz. Marido matou esposa, rua tal, número tanto, qual foi o motivo? Ciúme. Ele tinha essa pauta e trabalhava junto com o sonoplasta, o Roberto Félix, os dois se entrosavam de uma maneira excepcional. O Gil começava a suar, ia tirando o paletó, ficava de camisa. Ele vivia aquilo, narrava de uma forma impressionante. E sempre negava, “não, não quero entrevista, não quero nada.” Mas ele fez um especial, contando a história de um sapateiro, que sempre pediam para reprisar. Era uma narração telefônica, aos sábados, todo mundo esperava. E essa história real deu origem ao filme. No “O Outro Lado do Crime” o Gil Gomes entra a toda hora. Mas para a narrativa ir bem, tive que cortar muito. Eu projetava a imagem, e ele: “Então o homem abriu a porta, o homem abriu a porta”. “Gil, cinema. Está mostrando a porta, você não precisa dizer, entendeu?” “Então deixa eu narrar sem imagem.” [risos] Vendo o filme, fica limpíssimo, mas deu trabalho. Com o tempo o Gil Gomes se adaptou, eu tive a incumbência de levá-lo para a televisão no “Aqui Agora”, muitos anos depois.

EE – Um programa que surpreendeu e ecoa até hoje.

CC – O “Aqui Agora” foi uma revolução televisiva, sinto grande prazer de ter participado. Pena que o Gil tenha ficado, talvez, na embriaguez do sucesso. Na época do filme [1978], ele era conhecido em São Paulo, e aqui arrebentou. Foi lançado no São Luiz, fazia filas. No Rio de Janeiro, ninguém. “Quem é esse? Cara chato.” No somatório geral do lançamento foi ótimo, deu retorno. Todos os meus filmes deram retorno, isso que importa, isso proporcionou a mim uma satisfação imensa. Espero que meu projeto atual, o “Tiradentes City, Zona Leste SP” também atinja o mesmo objetivo. Além desse, tenho o “Santo Expedito”, que vou lançar em abril, é um média-metragem. Mais um longa, e eu estou nessa ansiedade.

EE – O “Joelma, 23o. Andar” é um filme que fez uma dessas pontes muito fortes com o público. E você não esperava, não programou nada, tudo aconteceu de repente...

CC – E veja como tudo é ligado à televisão na minha vida. O Souza Lima, cinegrafista da Tv Excelsior, era do jornalismo. Ficamos amigos. Quando eu estava terminando o “O Outro Lado do Crime”, eis que chega o Souza Lima: “Clery Cunha, vem cá, quero falar com você. Vem almoçar comigo.” Ele tinha um estúdio, na rua Rosa e Silva, ali na praça Marechal Deodoro. Me mostra um roteiro, para eu levar pra casa e ler. Falou por alto a sinopse do filme, na linha do “Chumbo Quente”, rural. Nisso entra um amigo do Souza e coloca em cima da mesa um exemplar do “Somos Seis”. Psicografia do Chico Xavier sobre seis personagens que morreram no incêndio do Joelma. “Você não tem a imagem, Souza?” “Tenho.” E então naquele momento terminou o projeto anterior e nasceu o “Joelma”.

EE – Claro, ele tinha feito o registro do incêndio, não é isso?

EE – Exatamente. Agora vamos retroceder no tempo, como se fosse um flashback: em 1974, o ano da tragédia, o Souza Lima estava montando um documentário em 16 mm sobre a extinção do teatro de revista em São Paulo. Na praça Júlio Mesquita existia o Teatro Natal, hoje um estacionamento. Nesse teatro trabalhou a Marly Marley, esposa do Ary Toledo, a Mara Rúbia, as vedetes, o Costinha. O Souza me convidou para fazer as gravações. Só que às 10 horas eu ia no Galante, no Jaçanã, para ouvir uma proposta dele. E o estúdio do Souza era na Rio Branco, esquina com a Guaianazes. “Souza, é longe...” “Não, mas eu quero que você me dê uma mão.” Tudo bem. Chegamos cedinho, umas 6 horas, gravamos na São João, no Anhangabaú. Quando começou a demorar, falei “Souza, filma aí, eu vou embora, o Galante está me esperando, tenho que ir.” Fui, e a pé. Já estava quase chegando em Santana, quando irrompeu o incêndio no vigésimo-segundo andar, tudo muito rápido. Um problema elétrico. Do outro lado da cidade, o Souza estava filmando quando o pessoal na rua começou a gritar: “Olha! Olha!” Ele olhou e lá estava o incêndio. Hoje todas as emissoras têm os seus helicópteros e tudo o mais, na época, não. Quando estourou o lance, o Souza Lima virou a perua, encostou no Joelma e fez o registro. Um membro da equipe desmaiou, porque as pessoas começaram a saltar do prédio.

EE – As gravações correram o mundo, até para filmes educativos sobre incêndio...

CC – Fora o que aconteceu e que depende da credibilidade de cada um, fatos paranormais. Eu mesmo tive uma modificação muito radical na minha vida. Não sou um kardecista praticante, mas para fazer o filme eu tive contato com o Chico Xavier por 10 dias. Estamos lá em Uberaba, e começa a sair ectoplasma dele. O Cláudio Portioli, que era ateu, também viu. Quando voltamos para São Paulo, onde é que está seqüência? O boletim de câmera dizia que estava lá, mas sumiu.

EE – Como vocês se prepararam para reproduzir a tragédia?

CC – Chegamos no Joelma e disseram “aqui não filma”. Eu respondi, “bom, na rua vocês não podem proibir.” Montamos uma operação muito difícil, paralisamos a Nove de Julho das 8 horas da manhã ao meio-dia, num domingo. Causou um caos total de trânsito, mesmo sendo domingo. Pra você ter uma idéia, preparamos 3 caminhões de lixo, bombeiros, 300 figurantes, 4 câmeras na mão. Não pude usar muito as gravações originais porque o Souza estava tremendo, aquela confusão toda. Eu com o Cláudio Portioli, um dos maiores diretores de fotografia que já existiu, a gente ia se comunicando: “câmera 1, câmera 2, câmera 3”. Quando de repente eu olhei, ao invés de 300 tinha mais de 5.000 figurantes, que não entendiam o porquê daquilo. “O que que está acontecendo? O Joelma está pegando fogo?” A imprensa, aquela movimentação.

EE – Foi relançado em dvd recentemente.

CC – Fiquei muito feliz com o relançamento e com o resultado final do filme. Aliás, não só eu [risos]. Os americanos gostaram tanto, acharam tão incrível o apelo que fizeram uma superprodução, “Inferno na Torre”. Com Steve McQueen, Paul Newman e um elenco. Só que não tem essa conotação espírita, essa idéia.

EE – Voltando para a temática da violência urbana, surge o “O Rei da Boca”(1982), que é excepcional.

CC – “O Rei da Boca” foi exibido em toda a América do Sul, com o título de “El Rey del Vicio”, porque o “Boca” é um outro sentido pra lá. A concepção inicial do filme foi do Tião Valadares e do Rajá de Aragão, que fizeram o primeiro tratamento. Eu fiz o segundo e o terceiro. O objetivo era retratar os reis da Boca: Quinzinho, Nelsinho da 45, Brandãozinho, Hiroito. Eles dividiam o quadrilátero ali em setores.

EE – Conheceu todos, pessoalmente?

CC – Conheci, conheci. O Roberto Bonfim, quando esteve aqui em São Paulo, quis ver o Quinzinho. Ele trabalhava como leão de chácara em um clube de jogo, no Pari, e ficaram conversando a noite toda. Como carioca, era um desafio vestir o personagem. E aquele sorriso, aquele maneirismo, ele conseguiu numa noite. Sintetizamos esses personagens em um só. Era uma solução, se não ficaria muito longo. O original do que está no filme tem 2 horas. E olha que são 2 horas que começam no garimpo e vem vindo, sem cansar um minuto sequer. Disseram “olha, vocês vão perder uma sessão.” Não interessa. A Cinedistri entrou com tudo, patrocinou, e pensamos: “Aonde vai ser?” Claro, na Boca, porque nós tínhamos a colaboração de todo mundo. Filmamos na rua dos protestantes, num hotel que o proprietário tinha participado de um assalto a banco, de metralhadora. Mataram o cara lá, o hotel estava fechado, mas tinha moradores. Prostitutas e tudo o mais que, inclusive, participaram também do filme todo. Trombadinhas, trombadões, eu agradeço à participação do submundo. E estamos nesse hotel, rodando uma seqüência que o Bonfim enrola um pacotão de maconha. O que que você vai fazer como maconha? Alfafa. Alfafa visualmente se parece com maconha. Eis que de repente, no meio do ensaio, primeiro chega um cara. Fica olhando da porta... “Tá vendo? Cinema nacional é isso! Porque, seguinte, meu: o cara não sabe nem enrolar um pacau?”

EE – [risos]

CC – [risos] O cara veio, explicou e o Bonfim aprendeu a enrolar os pacaus. Voltamos a filmar. Aí chega um outro cara, que levantou aquela hora, doido, xarope, falou: “Pô, ‘o rei da Boca’, que que é isso? Tem que ter fumo mesmo.”

EE – [risos]

CC – [risos] O cara entrou, pegou a alfafa, jogou pela janela. “Aonde foi parar? Alguém vai pegar lá embaixo!” Enquanto isso, o louco foi no quarto dele, trouxe 2 quilos, abriu! “Meu Deus, e a 3a. delegacia?!” “Não me interessa se vocês vão me cagüetar!” “Mas você vai complicar... bom, então vamos filmar logo, pelo amor de Deus!” E acabou sendo feita a cena com o fumo.

EE – Lembra um pouco os absurdos do “Aqui, Agora”, quando as coisas fugiam de controle...

CC – É, e sabe que o “Aqui, Agora” foi trazido da Argentina pelo Sílvio Santos? Como sempre, ele viu e fez uma adaptação. Era um desafio muito grande, a gente sair pras ruas, nas batidas policiais. Teve casos de tiroteio, eu cheguei numa época a dizer “eu não vou sair mais!” Fui um dos diretores, e tinha, por exemplo, a incumbência de gravar o Gil Gomes e o Jacinto Figueira Jr., o Homem do Sapato Branco. Era um negócio fantástico. Você sair, chegar numa favela, batidas simultâneas. O pioneirismo, o arrojo de sair pra rua, captação de imagem, tiros e tiros, câmera, isso aconteceu mil vezes. Foi muito bom e me deu um respaldo, tecnicamente, de mobilidade da coisa toda.

EE – Seguindo essa linha de reportagem, você está completando agora o “Santo Expedito Urgente”.

CC – Em Goiânia tem uma estátua imensa do Santo Expedito. Você passa nas igrejas, vê os bilhetes de “graça alcançada”. Um dos relatos que eu conheci foi o de uma pessoa que caiu de quase 1 metro de altura, estava fazendo instalação de pára-raios numa firma. Se arrebentou todo, ficou 45 dias em coma, a família desesperada. A junta médica: “Olha, não adianta vocês virem aqui todo dia, porque ele vai entrar em óbito a qualquer momento.” A esposa encontrou uma igreja, fizeram uma corrente e disseram para ela levar água benta. Foram lá no hospital, a enfermeira-chefe dizendo “não, não, não vai entrar”. O homem todo entubado. “Pelo amor de Deus!” Aí, uma outra: “deixa, ele vai morrer mesmo...” Tiraram o tubo, colocaram na boca o santinho. No dia seguinte ele já recobrou a consciência e está vivo. Tem seqüelas, claro, fez operação. Mas está vivo. E a esposa veio nos contar o que aconteceu, porque quando alguém consegue uma graça, a praxe de agradecer é divulgar o Santo.

EE – E o “Tiradentes City, Zona Leste SP”?

CC – Esse, o argumento é do Marcelo Coelho, que usa o pseudônimo Voltaire de Souza. Ele escreve desde a época do “Notícias Populares”. Hoje, no suplemento de tv do jornal “Agora”. Um dos jornalistas mais categorizados da sua posição, pertence à alta direção da “Folha de São Paulo”. Ele vê o fato e numa coluna chega ao desfecho. Não é uma fita policial, estou terminando o roteiro com o Volney de Assis, ator, meu amigo há muito tempo, um ótimo roteirista. Estamos no terceiro tratamento, definitivo. Já registrado, devidamente. Antes desse eu também fiz, em vídeo, o “Matar ou Morrer”, longa-metragem lançado pelo Conte Lopes, deputado, um dos fundadores da Rota. Ele escreveu um livro, chamado “Matar ou Morrer”, que conta mais de 30 histórias da Rota. Histórias incríveis, ele já matou mais de 200 e tantos bandidos. Também fiz “O Crime da Rua Cuba”, pela UniTv com o Ivo Morganti, que apresentava o “Aqui, Agora”. Ele era diretor artístico, e fizemos o “Crimes Insolúveis”. A finalidade era montar uma série, mas como aí veio o “Linha Direta”, com os “Crimes Sem Solução”, acabou perdendo a novidade. A idéia era pegar casos misteriosos, como foi o “Enigma do Joelma”, exibido pelo “Linha Direta”. Eu fui entrevistado por eles. Além de falar do filme, também mostraram o local maldito, as vítimas enterradas na Vila Alpina e que ficam gemendo à noite... O “Tiradentes City, Zona Leste SP” eu acredito que vai ser mesmo interessante, porque ele retrata não só o filme policial, não. Ele monta várias histórias que se intercalam uma à outra.

EE – Agora na reta final, Clery, vamos para a última pergunta. Dentro do panorama do cinema brasileiro, como você se situa e o que acha de essencial da sua obra?

CC – Vejo como uma contribuição. Em uma seqüência no “A Pequena Órfã” eu pensava: “Como é que nós vamos fazer o relâmpago?” [risos]. Ao lado de onde a gente estava, tinha um solda largada no chão. Usamos e ficou perfeito! Olha, não tem maçã, tem banana. Quer dizer, é um tipo de improviso. Normal, esse era o cinema da Boca. A minha contribuição foi sincera, honesta. Eu não medi esforços para que essa fimografia, que está aí para sempre, possa servir até de exemplo dessa tenacidade, dessa vontade, de uma época em que todo mundo... a gente fazia mesmo. Comparando, é como hoje o atleta, o jogador de futebol, quando está no time mas não tem a alma ali, como teria há um tempo atrás. Acho que a única diferença é essa. E eu acredito que cumpri a minha parte.

13 comentários:

Rodrigo Pereira, um sujeito que gosta de cinema disse...

Oi, Andrea. Todos os parabéns do mundo para vc por essa bela entrevista com o Clery. Nem sabia que ele era vivo. CHUMBO QUENTE é um dos filmes que estará presente no meu livro sobre westerns brasileiros, e foi ótimo ler o que o próprio diretor tinha a dizer sobre o filme. Uma vez mais, parabéns pela bela entrevista.

Anônimo disse...

Putz! O Clery é parecido demais com o meu tio. Que bom saber que ele ainda está vivo. Eu era espectador assíduo do "saudoso" AQUI AGORA... bons tempos.

Tomara que nesse pacote "negociado" com o Canal Brasil venham os longas: OS DESCLASSIFICADOS e REI DA BOCA.

Anônimo disse...

Pô! Grande entrevista!

Um abraço!

Anônimo disse...

Mais uma excelente entrevista! Mas o que mais me chamou atenção desta vez foi o fato verídico que originou o filme Os Desclassificados. O Aldo de Moura Andrade é um parente distante, e nunca tinha ouvido falar nessa história do sobrinho bandido. Muito interessante. Você tem esse filme, Andréa?

Beijos!

Anônimo disse...

Parabéns Andréa! É sempre bom conhecer a trajetória de figuras tão ilustres para a memória do cinema brasileiro. Clery Cunha é sensacional! Abraços.

Adilson Marcelino disse...

Andrea,
Adorei a entrevista.
Bjs

Anônimo disse...

Que ótima surpresa, Andrea, ver o Estranho Encontro de volta à ativa quando eu já tinha perdido as esperanças de que voltasse a ser atualizado. E topo justo com essa entrevista memorável com o monstro sagrado do nosso cinema que é o Clery Cunha. Dois craques, a entrevistadora e o entrevistado, só podia dar no que deu.

Parabéns por mais uma entrevista impecável, que deixa a gente com água na boca esperando pelas próximas. Só não judie mais dos seus ávidos e fiéis leitores, Andrea, deixando a gente tanto tempo sem nos brindar com novos dos seus sempre brilhantes artigos e entrevistas.

Anônimo disse...

Oi Andrea. Só agora, com mais calma consegui ler toda a entrevista com o grande Clery Cunha. Uma das maiores fíguras do cinema da Boca, dirigiu filmes policiais clássicos como Rei da Boca, Os Desclassificados, etc. Gostaria muito de vê-lo dirigindo novos filmes. Hoje, no cinema brasileiro faltam filmes de gênero. Que bom que o Estranho Encontro voltou pra ficar, porque é um dos melhores endereços eletrônicos sobre cinema brasileiro.
Matheus Trunk
www.revistazingu.blogspot.com
www.violaosardinhaepao.blogspot.com

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Rodrigo, fica o registro da entrevista, com a visão do diretor sobre "Chumbo Quente" e outros filmes bastante interessantes na obra dele. O bate-papo foi ótimo, me facilitou bastante o trabalho. Abraços

Vivíssimo, Thiago. E ele se parece com seu tio? rsrs O Clery tem o jeitão brasileiro, ele parece bem familiar mesmo, nos filmes e pessoalmente. Um abraço

Retornaste, Palhastro? Obrigada, um abraço!

Sergio, obrigada :) Tenho o filme num vhs bastante precário, a banda de som está terrível. E quer dizer, então, que além do Kinocrazy, a família Andrade colaborou mais uma vez para a cultura nacional: virou roteiro de um filme excelente :) Beijos!

Oi, Márcio. Realmente, o Clery é de poucos filmes, mas é um vulto marcante do cinema popular brasileiro. Um abraço, obrigada.

Adilson, bjs para vc, querido.

Jorge, leitores como vc e todos os que comentaram aqui, qualificam em muito o Estranho Encontro. Admiro seu trabalho à frente do Preserva SP, algo de rara sensibilidade e de visível paixão pelo tema. É assim que surgem os melhores projetos em matéria de arte e de preservação cultural. Não judiarei mais rs O blog voltou à sua programação normal, e em breve postarei novas entrevistas já realizadas. Um grande abraço

Obrigada, Matheus. Vamos aguardar os novos filmes do Clery, em pré-produção. Gostaria de vê-lo numa roupagem atual, mantendo o pique dos policiais em que ele tem um senso de direção raríssimo.

Milton Roberto disse...

Nossa, não deixar de ler de uma vez só esta entrevista do Clery Cunha, ele está fazendo um filme no meu bairro Cidade Tiradentes, aqui tem a cultura de todo o mundo, espero que ele saiba aproveitar, porque toda vez que vem alguém filmar é sempre o mesmo grupo que acompanha e a informação é sempre a mesma, sem diversidade.
Ótimo ter conhecido essa entrevista e esse entrevistado, que não encontrei por aqui durante as filmagens, ainda está filmando? Sou jornalista e um dos moradores mais antigos do bairro e filmo também. Adoro.
Um grande abraço a todos e agora somos amigos.
Milton Roberto, da Tiradentes City.
www.multicolorinteratividade.blogspot.com

sitedecinema disse...

Vi o JOELMA no SBT (na época, TVS), há mais de duas décadas, e me deu arrepios. O clima sobrenatural é sufocante e a interpretação da Goulart MUIYO boa.
Boa entrevista!

Anônimo disse...

Que legal! Adorei relembrar tudo isso sobre meu amigo Clery Cunha.

artelanternamagica disse...

Grande Entrevista. conheço O Clery
grande figura
Abraços
Hugo