“Fulaninha” (1986) é tão bom, mas tão bom, que só poderia ter sido feito com o desprendimento e a tranqüilidade que caracterizavam a mão segura de David Neves. Filmando como quem respira, de David Neves pode-se dizer tudo, menos que carregasse em seus filmes o peso do mundo: toda a tensão dramática ou trágica que consegue exprimir logo acaba absorvida em considerações atenuantes, sejam de humor, de lirismo ou mesmo de resignação.
Isso o torna um exemplo de cineasta no qual os mais jovens deveriam se mirar, antes de trocarem de profissão ou aprenderem que quanto mais alguém afirma que é importante, menos com certeza tem qualidades próprias para sê-lo. Do alto de sua genialidade discreta, David relutava em fazer algo além de filmar e viver. E gostava de filmar, quase sempre, aquilo que vivia ou observava nas ruas da cidade amada.
“Fulaninha” é exemplar dessas andanças: como morador da Avenida Prado Júnior, no epicentro de Copacabana, tornou possível um filme sobre o cotidiano da rua e sua vizinhança. Se o Rio de Janeiro encerra uma síntese do Brasil, pode-se dizer que Copacabana é a síntese do Rio – e o microcosmo do país em toda a sua grandeza e pequenez.
Bairro nobre, de frente para uma das praias mais bonitas do mundo, na Copacabana dos hotéis de luxo e da vida abastada há um avesso facilmente visto, em enormes edifícios de apartamentos minúsculos e na população flutuante, que diariamente desembarca na princesinha do mar em busca dos dólares do turismo e do comércio. Isso torna o lugar por vezes saturado e caótico – fascinante para quem o compreende em sua multiplicidade e intrigante (por vezes hostil) para quem chega forasteiro ou provinciano.
E é nessa Copacabana de tantas explicações que David coloca sua fauna de personagens. Na Prado Júnior convivem os amigos Bruno (Cláudio Marzo), Canela (Roberto Bomfim), Jardel (José de Abreu) e Hermínio (Flávio São Thiago), todos naquele limite de desocupação e disponibilidade que tornam um mistério a sobrevivência material e financeira de certas figuras cariocas. Freqüentadores do mesmo bar, aos poucos percebemos que se Jardel é desempregado profissional, Hermínio é advogado. Já Bruno e Canela atuam na mesma área – o cinema – mas se o primeiro é cineasta pretensioso, o outro ganha dinheiro com vídeos pornográficos.
É Bruno que, em uma tarde copacabanense igual às outras, descobre Fulaninha (Mariana de Moraes), garota que namora um surfista (Marcos Palmeira) e por quem o lobo quarentão adquire uma espécie de obsessão delicada. Sem que Fulaninha perceba, Bruno passa a filmar seu cotidiano, suas idas à praia, seus laços de amizade momentâneos. Como há um filme dentro do filme, David aproveita para nos mostrar a Prado Júnior e as miudezas de seus humanos habitantes.
Dramas paralelos vão acontecendo: Hermínio perde um longo processo que o obriga – supremo desgosto – a trabalhar para sobreviver (!). Fulaninha tem uma relação conturbada com a mãe, Rose (Kátia D´Ângelo), e Rose por sua vez tem caso amoroso com um marginal (Paulo Vilaça). Em certo momento esses destinos se cruzarão e cada um libertará o melhor de si para o mundo.
Além da anotação antropológica dos hábitos locais, “Fulaninha” oferece como atração extra um retrato da época, os meados dos anos 80, com toda a inocência que se dissolvia dando lugar ao país amargurado e sem amor-próprio em que vivemos hoje. Mal ou bem, o Brasil e o Rio de Janeiro retratados no filme transparecem um orgulho cosmopolita e cordial – que não se perdeu, mas que o cinema brasileiro contemporâneo, no rastro da dissolução de nossa identidade cultural, passou a ter vergonha de mostrar.
“Fulaninha” não é o melhor filme de David Neves – o título vai para “Muito Prazer”, de sete anos antes. Junto com “Jardim de Alah”, os três compõe a famosa trilogia carioca do diretor, que morreu em 23 de novembro de 1994 e deixou de presente para o mundo um elogio à vida – principalmente à vida passada entre os bares, ruas e praias da Zona Sul. Todos os brasileiros, à menção de seu nome, poderiam dizer baixinho, com a suavidade que o caracterizava: obrigado.
Isso o torna um exemplo de cineasta no qual os mais jovens deveriam se mirar, antes de trocarem de profissão ou aprenderem que quanto mais alguém afirma que é importante, menos com certeza tem qualidades próprias para sê-lo. Do alto de sua genialidade discreta, David relutava em fazer algo além de filmar e viver. E gostava de filmar, quase sempre, aquilo que vivia ou observava nas ruas da cidade amada.
“Fulaninha” é exemplar dessas andanças: como morador da Avenida Prado Júnior, no epicentro de Copacabana, tornou possível um filme sobre o cotidiano da rua e sua vizinhança. Se o Rio de Janeiro encerra uma síntese do Brasil, pode-se dizer que Copacabana é a síntese do Rio – e o microcosmo do país em toda a sua grandeza e pequenez.
Bairro nobre, de frente para uma das praias mais bonitas do mundo, na Copacabana dos hotéis de luxo e da vida abastada há um avesso facilmente visto, em enormes edifícios de apartamentos minúsculos e na população flutuante, que diariamente desembarca na princesinha do mar em busca dos dólares do turismo e do comércio. Isso torna o lugar por vezes saturado e caótico – fascinante para quem o compreende em sua multiplicidade e intrigante (por vezes hostil) para quem chega forasteiro ou provinciano.
E é nessa Copacabana de tantas explicações que David coloca sua fauna de personagens. Na Prado Júnior convivem os amigos Bruno (Cláudio Marzo), Canela (Roberto Bomfim), Jardel (José de Abreu) e Hermínio (Flávio São Thiago), todos naquele limite de desocupação e disponibilidade que tornam um mistério a sobrevivência material e financeira de certas figuras cariocas. Freqüentadores do mesmo bar, aos poucos percebemos que se Jardel é desempregado profissional, Hermínio é advogado. Já Bruno e Canela atuam na mesma área – o cinema – mas se o primeiro é cineasta pretensioso, o outro ganha dinheiro com vídeos pornográficos.
É Bruno que, em uma tarde copacabanense igual às outras, descobre Fulaninha (Mariana de Moraes), garota que namora um surfista (Marcos Palmeira) e por quem o lobo quarentão adquire uma espécie de obsessão delicada. Sem que Fulaninha perceba, Bruno passa a filmar seu cotidiano, suas idas à praia, seus laços de amizade momentâneos. Como há um filme dentro do filme, David aproveita para nos mostrar a Prado Júnior e as miudezas de seus humanos habitantes.
Dramas paralelos vão acontecendo: Hermínio perde um longo processo que o obriga – supremo desgosto – a trabalhar para sobreviver (!). Fulaninha tem uma relação conturbada com a mãe, Rose (Kátia D´Ângelo), e Rose por sua vez tem caso amoroso com um marginal (Paulo Vilaça). Em certo momento esses destinos se cruzarão e cada um libertará o melhor de si para o mundo.
Além da anotação antropológica dos hábitos locais, “Fulaninha” oferece como atração extra um retrato da época, os meados dos anos 80, com toda a inocência que se dissolvia dando lugar ao país amargurado e sem amor-próprio em que vivemos hoje. Mal ou bem, o Brasil e o Rio de Janeiro retratados no filme transparecem um orgulho cosmopolita e cordial – que não se perdeu, mas que o cinema brasileiro contemporâneo, no rastro da dissolução de nossa identidade cultural, passou a ter vergonha de mostrar.
“Fulaninha” não é o melhor filme de David Neves – o título vai para “Muito Prazer”, de sete anos antes. Junto com “Jardim de Alah”, os três compõe a famosa trilogia carioca do diretor, que morreu em 23 de novembro de 1994 e deixou de presente para o mundo um elogio à vida – principalmente à vida passada entre os bares, ruas e praias da Zona Sul. Todos os brasileiros, à menção de seu nome, poderiam dizer baixinho, com a suavidade que o caracterizava: obrigado.
6 comentários:
Cara Andréa, muito boa a crítica e a homenagem ao David. Eu até gosto dele e de MUITO PRAZER (em que o Otávio Augusto está demais), mas prefiro aquele baseado no Rubem Fonseca com a Adriana Prieto. Mas ele deveria ser melhor estudado: merecia uma mostra só dele. Aquele livro que lançaram de artigos dele eu não li, mas parece ser legal. Já leu ? Faltou apenas dizer que este FULANINHA tem trilha sonora do genial Paulinho da Viola. O David morreu muito cedo e era um dos mais interessantes personagens de sua geração. Bjos, Matheus.
Vi pouca coisa do David, se bem que ele dirigiu poucos filmes mesmo. Muito Prazer vi faz muito tempo e na época não gostei muito, preciso rever, mas o "bressoniano" Memória de Helena é obra-prima! Bjs!!!
Matheus, o Lúcia McCartney tb é um dos meus favoritos, mas ainda fico com o Muito Prazer e Memórias de Helena. Este, aliás, assisti há um tempão atrás numa sessão em homenagem ao David, no cine Odeon, aqui no Rio. Bjs
Sergio, Memória de Helena é deslumbrante, ainda mais na telona, sem as limitações da tv. Mas dá uma conferida no Muito Prazer, revendo com calma vc vai achar mais pontos legais pra gente comentar :) Bjs!
Gostaria de saber se alguem pode me dizer se encontro o filme Fulaninha em VHS ou DVD, pois é um dos filmes nacionais mais engraçados que eu já vi.
Se souberem por favor me mandem - betooliveira4@superig.com.br
minha esposa fez uma participação neste filme fulaninha quando namoravamos hoje temos 20 anos casados, gostariamos de relembrar. onde encontro o filme em dvd , por favor
me comuniquem,
abs,
edsonjayme@yahoo.com.br
Vi uma cópia no site ''OK.RU'',vou assistir,a resenha como sempre é ótima.
Postar um comentário