O papel ocupado pelo cinema de Ugo Giorgetti em relação ao imaginário da cidade de São Paulo é no Rio de Janeiro amplificado e dominado pela curta cinematografia como diretor do roteirista, produtor e ator – de mais de cinqüenta filmes! – Hugo Carvana.
Logo, para se compreender a obra de Carvana, precisamos dar um mergulho nos recônditos da alma carioca. Capital do Brasil por 200 anos, cidade-símbolo das delícias paradisíacas nacionais, o Rio é um daqueles fenômenos contraditórios, de onde se espera tanta perfeição que qualquer imperfeição soa gritante, grotesca.
Muita coisa aconteceu da "Paris Tropical" no início do século XX, para o Rio de Janeiro do século XXI. Neste vácuo de profundas transformações surgem as grandes questões de conflito: a mesma favela que simboliza a cidade é também sua desgraça; a mesma mítica da dolce vita é a que cria a injustiça de se dizer que no Rio ninguém trabalha, apesar da população ser a campeã absoluta em horas trabalhadas no Brasil.
Navegando em tantos paradoxos, os cariocas costumam responder aos problemas com uma auto-suficiência exagerada, com a exacerbação de seus méritos e uma tentativa de volta pródiga ao passado. Tal como sebastianistas, dão-se ao carioca típico os descontos de ser utópico. Dom Sebastião não retornará – assim como a Argentina nunca será novamente a de Perón e Gardel – e Antônio Carlos Jobim não se levantará da sepultura do São João Baptista, para recolocar no mundo o suspiro por uma aldeia longínqua e ideal.
Hugo Carvana, primordialmente um filho de Ipanema, começa sua trajetória no cinema como ator em meados dos anos 50 e chega à direção, no início dos anos 70, pronto para colocar em prática aquilo que tinha aprendido em quase duas décadas de ofício.
Assim é que Carvana captou o rumo das coisas e, como a alma onipresente que tudo vê e tudo sabe, recriou em meia dúzia de filmes uma metáfora do que era, foi e seria sua cidade – do passado triunfante aos dias incertos e conturbados de hoje, quase previstos em “Vai Trabalhar, Vagabundo!” (1973), exatos trinta e três anos atrás.
No filme, Dino (o próprio Carvana) é um malandro que ao sair da cadeia procura continuar a fazer da vida aquilo que sempre fez: absolutamente nada. Notem que não existiria Dino sem Rio e Rio sem Dino. Levado para qualquer outro espaço, o tipo murcharia e seu way of life não faria sentido. Alimentando-se da geografia exuberante, da fauna social que manipula, dos refúgios nos casebres da favela, há em Dino um carioquismo militante de anedota, na fronteira entre a realidade e o estereótipo.
Antropologicamente, o malandro pode ser explicado pela proximidade da população da antiga capital com o poder e a ordem estabelecidos – o que a tornava mais resistente e debochada a eles. Em uma explicação psicanalítica, o malandro é aquele que insatisfeito com a interdição, o controle paterno (a lei), sublima a castração através de artifícios de resistência e fuga, criando para si uma compensação de self – ou melhor dizendo, criando um mundo onde estes conflitos desapareçam e triunfe o prazer, o Eros.
O que torna o filme interessante, no entanto, não é só o personagem, mas sua busca por um sentido. Quanto mais pretende vagabundear, mais Dino é posto para agir, criar, trabalhar. Em suma, como bom carioca e malandro que se preze, sua embromação e seu savoir-affair são motivos de quase-arte, quase-mérito. Ironia absoluta é precisar fazer um esforço maior do que um emprego formal para sustentar exatamente sua negação ao formalismo sócio-econômico.
Carvana opera o tempo todo com signos: o homem branco e pobre brasileiro guarda na mistura racial do país sua delícia, sua vazão existencial. Sendo amante da empregada negra (Zezé Motta) de um apartamento na Lagoa, Dino se apaixona também pela dona da casa (Odete Lara), loira fidalga que, apesar disto, vive de golpes tanto quanto o próprio Dino. Discute-se, em nível maior, a descrença na integridade moral da sociedade, anulando-se assim o aspecto dos feitos de Dino como contravenção ou desvio de conduta. Em um país onde todos erram, que mal há em ser errado?
Posicionando o espectador na torcida pelo herói, a trama avança as peças e para pagar um saldo de jogo, Dino precisa organizar um campeonato de sinuca. Recorda na lenda urbana, no imaginário popular, os dois maiores jogadores da cidade. Um deles, Russo (Paulo César Peréio), foi parar literalmente no Pinel. Outro, Babalu (Nelson Xavier), largou a sinuca e virou represente comercial em botequins. A ida de Dino para buscá-lo, em uma pequena casa da favela, e sua posterior argumentação para que o amigo volte a ativa – para que não massacre seu talento em benefício de uma moral burguesa –, dizem mais sobre a luta de classes do que mil tratados sociológicos.
E a trilha-sonora emocionante de Chico Buarque, as externas de um Rio-73 pleno de luz, alegria e sol, o riso fácil dos párias que deveriam chorar de amargura e a instrução didática que o filme propõe, conduzindo o espectador pela mão, já bastariam para incluí-lo como parte do currículo de qualquer universidade do mundo que estude cultura brasileira. Mas o que o leva a ser um dos maiores filmes nacionais é, sobretudo, a capacidade de se antecipar em documento vivo das mudanças que massacravam a cidade, das idiossincrasias do fascinante e dionisíaco povo carioca e das razões óbvias que encaminharam a Cidade Maravilhosa para a encruzilhada em que se encontra na atualidade.
Ao longo de sua filmografia, tal como David Neves, Carvana foi desfiando o carretel e tornando-se comentador do próprio tema. Mas ao assistí-lo aprendemos a amar uma Ipanema que não conhecemos, um apartamento em Copacabana que nunca freqüentamos e uma birosca no subúrbio na qual nunca beberemos. Portanto, se a raça humana desaparecer e do Rio sobrar apenas uma cópia de “Vai Trabalhar, Vagabundo!”, ainda assim no futuro conhecerão a lenda, o mito de quem nasceu ou viveu naquele pedaço de terra onde um dia construíram uma bela metrópole, entre as montanhas e o mar.
5 comentários:
Andréa,
Já tinha lido ontem essa coluna. Esqueci de comentar, porém, aqui vai meu comentário. Esse filme é demais. É talvez seu melhor texto Andréa. Parabéns desde já. Pra mim a cena em que o Carvana abraça o Pereio no asilo, é uma das mais belas que o cinema brasileiro já produziu. Carvana rompe com os "intelectuais" definitivamente, e chama stars que estavam meio esquecidos: Wilson Grey, Rodolfo Arena, Frengolente, entre outros. Parabéns mais uma vez Andréa.
Propósito: você viu "Tchau Amor" em VHS ? falei com o Inácio e ele próprio não sabe se o filme existe no formato
Andréa, o duro é aprender a amar uma Ipanema em que o taxista tem que ir pela praia no sentido Leblon pra chegar no Galeão. :D
Tive que fazer uma leitura dinâmica dos trechos que comparam o passado da nossa cidade com o presente e tô aqui meio passando mal de tristeza e amor. Melhor ir dormir. Você mexe com a gente. Vai escrever assim lá naquela cidade auto-suficiente. :D Beijo!
Oi Matheus, valeu, obrigada :) O Tchau Amor eu encontrei em vhs mesmo, foi distribuído pela F. J. Lucas em meados dos anos 80. Se vc quiser, te passo o contato de onde eu encontrei.
Oi Luiz, Ipanema-Galeão via Leblon? Passando por onde, Jacarepagua? rs Quanto a tristeza, acho que pode ser pior: imagine daqui a 20 anos o Bairro Peixoto ou o Leme cheios de multilplexes. Esta, sim, é a visão mais drástica, mais bombástica que consigo imaginar rs Beijos
Oi Gente !
Me chamo Gilberto, eu e meu irmãos participamos do filme como figurantes, na época tinha 05 anos e meus irmãos 07 e 09 respectivamente.
Morávamos na Sen. Pompeu 51, locação de várias externas.
Hoje moro em São Paulo e há anos busco uma cópia da obra. Por fv, me passe a dica de onde encontrou !
Giba
EDEVALDO (EDEVALDO JOSE STRAPASSON) CANTOR COMPOSITOR INSTRUMENTISTA COLOMBO PR 19/04/1971 NA MÚSICA DESDE 1989. EU FIZ MÚSICAS PRO GENIAL E MEU AMIGO HUGO CARVANA, FUI CRÍTICO DE CINEMA UM ANO E MEIO E FIZ UMA CRÍTICA DESE FILME QUE EU VI VÁRIAS VEZES, O QUE MAIS ME CHAMOU A ATENÇÃO É A MANEIRA DO PERSONAGEM DINO VIVIDO PELO HUGO NA MANEIRA QUE ELE CUMPRIMENTA AS PESOAS, CUMPRIMENTA TODO MUNDO DE UM JEITO ALEGRE DIVERTIDO, EXCELENTE FILME. VAI TRABALHAR VAGABUNDO. CONTATO 041 3666 1449.
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