A melhor maneira para revermos “Convite ao Prazer” (1980) parece ser o esquecimento de que o filme teve a assinatura de Walter Hugo Khouri. Analisado diante do legado autoral do diretor é obra menor, quase um comentário a “Noite Vazia”, dezesseis anos antes. Mas se olhado apenas como aquilo que de fato foi, um curto drama de costumes, produzido dentro dos esquemas da Boca do Lixo, “Convite ao Prazer” cresce e se parece muito com uma daquelas obras-primas que os cineastas da Boca deixaram para serem descobertas pelo mundo, antes que mofem nas Cinematecas.
Esqueça, portanto, que o Marcelo é o mesmo de “Eros”, que o apartamento também é quase no mesmo endereço, e que o embate Luciano-Marcelo é similar ao de Luisinho-Nelson em “Noite Vazia”.
Nos concentremos nas primeiras cenas, quando o dentista Luciano (Serafim Gonzalez) mostra-se entusiasmado ao colocar uma jovem garota de programa na sua cadeira de trabalho. Quando queria, Khouri sabia ser pateticamente machista e a garota (Aldine Müller) nada mais é do que um adereço. Não fala, não tem vontades, nem guarda em si a força a que Marcelo costumava querer dominar e se misturar sem sucesso. No fato da garota explicitamente não-ser, reside o impacto inicial da história.
Não-sendo, ela serve a Luciano como uma bonequinha viva, até que alguém chega de surpresa: Marcelo (Roberto Maya) resolve visitar o amigo e o surpreende como uma criança surpreende outra comendo um doce. A alusão homossexual é fácil: Marcelo é o macho mais forte e Luciano cede ao amigo sua conquista. A menina continua a servir, passiva.
Marcelo e Luciano têm um pacto, repartido de forma silenciosa por décadas. Uma destas amizades masculinas, difusas, que normalmente só se sustentam pelo óbvio interesse homossexual latente entre uma (ou as duas) partes. Luciano inveja em Marcelo seu dinheiro, seu poder, suas conquistas. Marcelo gosta de se ver mais bonito refletido na admiração de Luciano. As mulheres são desnecessárias no conluio: os dois, apaixonadamente, se completam e se amam.
Rememoram festas, histórias do passado, dissertam de tudo um pouco. Marcelo, o pavão, convida o amigo para uma nova rodada de voyeurismo explícito, dessa vez no edifício em que mantém uma garçonniére. Há toda uma lenda envolvendo a famigerada garçonniére, contada de forma mais atraente um ano depois, em “Eros”. Mas aqui sutilezas não importam tanto. O apartamento guarda móveis de Laka e o jazz na vitrola faz alusão ao passado nostálgico dos velhos lobos. Marcelo contratou algumas prostitutas. Em horários alternados elas chegam e servem, servem sempre.
Trocando olhares furtivos e sexo em posições de Kama Sutra (excepcionalmente filmadas pelo gênio que, afinal, se escondia na direção e operação da câmera), a vida é passada em sua plenitude e gozo. Como o loft possui um mezanino, a ação ocorre em dois ambientes. Os casais se alternam e a composição dos quadros é primorosa, podendo ser assistida mil vezes sem parecer tediosa ou enjoativa.
Marcelo tem uma esposa, a inevitável Ana (Sandra Bréa, no auge da beleza), com quem disputa o título de mais infeliz e neurótico. A relação dos dois é apenas formal. Por outro lado, a esposa de Luciano, Anita (Helena Ramos), dá uma de detetive particular e caça o marido por São Paulo inteira. Quando encontra provas suficientes de que ele sublimou a paz conjugal no apartamento do melhor amigo, arma uma cilada. E, entre um bacanal e outro, Marcelo e Luciano brigam, para Ana acabar vitoriosa. Mesmo porque, ainda sendo este atípico, nos filmes de Khouri a anima sempre vence.
A narrativa é boba, fraca, deixando um quê de inutilidade. No entanto, como em toda obra menor de um talento maior, os defeitos e pontas soltas fazem com que questões autorais escondidas tornem-se melhor estudadas.
Em nenhum outro filme, Khouri sugeriu tanto a homossexualidade latente de seus protagonistas masculinos quanto aqui. Fica quase claro que Luciano e Marcelo se desejam. Por outro lado, também fica entregue o quanto Marcelo é uma projeção do super-homem brasileiro e paulistano, na fantasia de poder, carisma e indiferença, que como em um grupo de predadores divide a classe masculina entre os que vencem muito e os que vencendo pouco, se sentem derrotados e excluídos.
Esqueça, portanto, que o Marcelo é o mesmo de “Eros”, que o apartamento também é quase no mesmo endereço, e que o embate Luciano-Marcelo é similar ao de Luisinho-Nelson em “Noite Vazia”.
Nos concentremos nas primeiras cenas, quando o dentista Luciano (Serafim Gonzalez) mostra-se entusiasmado ao colocar uma jovem garota de programa na sua cadeira de trabalho. Quando queria, Khouri sabia ser pateticamente machista e a garota (Aldine Müller) nada mais é do que um adereço. Não fala, não tem vontades, nem guarda em si a força a que Marcelo costumava querer dominar e se misturar sem sucesso. No fato da garota explicitamente não-ser, reside o impacto inicial da história.
Não-sendo, ela serve a Luciano como uma bonequinha viva, até que alguém chega de surpresa: Marcelo (Roberto Maya) resolve visitar o amigo e o surpreende como uma criança surpreende outra comendo um doce. A alusão homossexual é fácil: Marcelo é o macho mais forte e Luciano cede ao amigo sua conquista. A menina continua a servir, passiva.
Marcelo e Luciano têm um pacto, repartido de forma silenciosa por décadas. Uma destas amizades masculinas, difusas, que normalmente só se sustentam pelo óbvio interesse homossexual latente entre uma (ou as duas) partes. Luciano inveja em Marcelo seu dinheiro, seu poder, suas conquistas. Marcelo gosta de se ver mais bonito refletido na admiração de Luciano. As mulheres são desnecessárias no conluio: os dois, apaixonadamente, se completam e se amam.
Rememoram festas, histórias do passado, dissertam de tudo um pouco. Marcelo, o pavão, convida o amigo para uma nova rodada de voyeurismo explícito, dessa vez no edifício em que mantém uma garçonniére. Há toda uma lenda envolvendo a famigerada garçonniére, contada de forma mais atraente um ano depois, em “Eros”. Mas aqui sutilezas não importam tanto. O apartamento guarda móveis de Laka e o jazz na vitrola faz alusão ao passado nostálgico dos velhos lobos. Marcelo contratou algumas prostitutas. Em horários alternados elas chegam e servem, servem sempre.
Trocando olhares furtivos e sexo em posições de Kama Sutra (excepcionalmente filmadas pelo gênio que, afinal, se escondia na direção e operação da câmera), a vida é passada em sua plenitude e gozo. Como o loft possui um mezanino, a ação ocorre em dois ambientes. Os casais se alternam e a composição dos quadros é primorosa, podendo ser assistida mil vezes sem parecer tediosa ou enjoativa.
Marcelo tem uma esposa, a inevitável Ana (Sandra Bréa, no auge da beleza), com quem disputa o título de mais infeliz e neurótico. A relação dos dois é apenas formal. Por outro lado, a esposa de Luciano, Anita (Helena Ramos), dá uma de detetive particular e caça o marido por São Paulo inteira. Quando encontra provas suficientes de que ele sublimou a paz conjugal no apartamento do melhor amigo, arma uma cilada. E, entre um bacanal e outro, Marcelo e Luciano brigam, para Ana acabar vitoriosa. Mesmo porque, ainda sendo este atípico, nos filmes de Khouri a anima sempre vence.
A narrativa é boba, fraca, deixando um quê de inutilidade. No entanto, como em toda obra menor de um talento maior, os defeitos e pontas soltas fazem com que questões autorais escondidas tornem-se melhor estudadas.
Em nenhum outro filme, Khouri sugeriu tanto a homossexualidade latente de seus protagonistas masculinos quanto aqui. Fica quase claro que Luciano e Marcelo se desejam. Por outro lado, também fica entregue o quanto Marcelo é uma projeção do super-homem brasileiro e paulistano, na fantasia de poder, carisma e indiferença, que como em um grupo de predadores divide a classe masculina entre os que vencem muito e os que vencendo pouco, se sentem derrotados e excluídos.
Também é notável a ambientação, a colocação dos cenários, como um filme-ensaio para “Eros” ou “Eu”. Compreendido mais como diversão do que reflexão, apreciadas as belas plásticas femininas e decorativas, anotando-se as peculiaridades de cada uma das festas, atrizes no auge (Patrícia Scalvi, Nicole Puzzi, Kate Lyra, para citar só as melhores) e transas que se sucedem, “Convite ao Prazer” vira diversão inofensiva e fácil, conquistando o mais renitente dos espectadores para os quintais do universo khouriano.
15 comentários:
Andréa, perfeita a sua análise sobre "Convite.."
Só ficou faltando citar a Rossana Ghessa, que faz uma rápida aparição como a melhor amiga de Anita (Helena Ramos). Ela que leva Anita à garçoniére do Marcelo. Está muito linda, pena que sua participação é curta.
Ah..vou esperar o e-mail da Carol. Valeuu
Excelente análise, Andréa! Nunca tinha pensado na atração homossexual entre Luciano e Marcelo, mas faz sentido.
As cenas na garçonniére são de um rigor formal inacreditável, ainda mais numa produção com apelo comercial. Beijo!
Estou mobilizando todo mundo que conheço para conseguirmos esse sonho: uma entrevista com a lenda Mozael Silveira. As novidades (que não são muitas...) te mandei por e-mail Andréia. Já falei com o Carrard, com o Carlão, com o Aguilar e com a Ana, que é uma amiga minha filha do cara que organizou a mostra do Walter na Cinemateca Brasileira. Vou falar com o Carlão pra ver se arrumo e-mail do Alessandro Gamo, professor de cinema brasileiro da UFSCAR. Vamos dar um jeito !
Oi Raphael, verdade, a Rossana faz uma pontinha como a amiga da Anita. Podia ter sido melhor aproveitada, seria interessante vê-la na garçonniére :)
Oi Sergio, acho "Convite" uma prova de que o Khouri podia se esforçar, mas não conseguia fazer filme ruim :) Beijão!
Matheus, a gente vai conseguir, assim espero :)
Uma curiosidade, gosto de "Convite ao Prazer", mas penso como vc., nessa fase mais bôca do lixo (sem preconceitos, apenas registrando o momento), prefiro "O Prisioneiro do Sexo", e vc.?
Oi Edú, acho "Convite ao Prazer" muito linear, sem grandes vôos, bem no esquema comercial mesmo. Prefiro tb "O Prisioneiro do Sexo", tem mais interpretações, mais cara de filme do Khouri :)
Matei aula para assistir esse filme
num cine "poeira", eu tinha 17 anos.
Helena Ramos era a musa de todos nós
adolescentes daquela época. E ainda é.
A cena do mezanino é tão interessante,que até um ator desprovido de sex-appeal como Roberto maya,destila uma sensualidade faíscante pouco vista em cinema.
Eu sempre achei que quando um homem divide sua parceira sexual com outro homem,existe um componente homossexual,é o que eu chamo de homossexualidade terceirizada.
Não percebo essa questão do homossexualismo entre os protagonistas. Muito pelo contrário. Ambos querem se divertir ao máximo com as mulheres. Pode haver sim uma rivalidade, mas não desejo entre eles.
Desculpe, mas não existe nada de homossexual nas personagens do filme. Essa análise é típica de "mulheres" que não querem ou não conseguem enxergar o "universo" masculino. Além do mais, não se trata de uma obra menor de Khouri. Muito pelo contrário...
Pessoal, alguem sabe me informar o nome daquela obr de arte que aparece na ultima cena do filme, no livro que a esposa do Luciano ta folheando? É uma pintura na qual um homem e uma mulher se beijam, mas mascarados.
Agradeço desde ja pelo auxilio,
Um abraco
Quem é a atriz que faz a filha de Marcelo?
Adoro esse filme!!
Só achei que a Sandra Bréa foi pouco utilizada.
É muito evidente a questão homossexual no filme. A maneira como Luciano fica observando Marcelo fazendo sexo no mezzanino e a metáfora da distância entre os dois são claríssimos indícios de um amor platônico. A forma da qual o dentista adula insiste e abertamente o amigo também é óbvia indicação. Porém, é a alegria e realização de Luciano na cena em que transam juntos com Harriet que não deixa margem para dúvida quanto a essa atração, que é tão intensa que, em vários momentos, o dentista parece querer ser o outro. No entanto, não vejo nenhuma reciprocidade, pois Marcelo é, antes de tudo, um tremendo narcisista sem muito sentimento por ninguém além de si mesmo, tanto é que trata todos a sua volta como meros objetos, talvez com a única exceção da filha, que, ao que tudo indica, mais mima do que ama. O milionário busca o amigo justamente por causa dessa adulação, que lhe alimenta o ego inflado. Claro que também aprecia o "companheiro de farra", com quem tem uma relação muito prazerosa, divertida, mas, no fundo, superficial, haja vista que nem de dá ao trabalho de dizer que não fez sexo com a esposa dele. Enfim, vejo semelhanças entre Marcelo e Brás Cubas no tocante à personalidade vazia, superficial, como uma folha carregada pelos ventos das meras convenções sociais, assim como o balanço final, no qual resta um nada, representado pelo não-beijo do quadro de Magritte que fecha o filme.
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