Baseado na peça "Do Sótão ao Rés-do-Chão", autoria de Ilclemar Nunes, "Soninha Toda Pura" (1971) engana pelo título. Em plena onda das comédias eróticas -- gênese da pornochanchada -- bem provável que se tenha vendido o drama pessimista como tentação lollipop. Produção esmerada de Jarbas Barbosa -- irmão do Chacrinha -- direção do talentoso Aurélio Teixeira, "Soninha Toda Pura" foi obra à frente do seu tempo, discutindo lesbianismo, estupro e infidelidade de maneira adulta, muito além daquilo que o provincianismo brasileiro moralista seria capaz de digerir e aceitar.
Pois quem pagou ingresso esperando ver o casalzinho Adriana Prieto e Carlo Mossy vivendo desventuras românticas, se surpreendeu com influências de Eric Rohmer e Walter Hugo Khouri. O ponto de partida é uma esposa infiel, Malena (Zélia Hoffman), que viaja com o amante, Betinho (Mossy), a filha Soninha (Adriana Prieto) e uma amiga, Nanan (Elsa de Castro) para temporada em uma praia de Cabo Frio. Se o resumo lembra bastante o imaginário khouriano, closes em rostos femininos e jazz na vitrolinha que as meninas levam de um lado para o outro convencerão definitivamente o espectador de que Aurélio Teixeira era fã do maior diretor brasileiro.
Na casa, cercados de areia e mar por todos os lados, fica claro que Nanan deseja ardentemente a amiga Soninha. Lindíssima, Elsa de Castro fez o dever de casa, e tem a presença de uma atriz da Nouvelle Vague. Sua liberdade, avassaladora e contida, encontra na ingênua Soninha fuga e atração. O ritual de côrte homossexual eleva-se nos beijos roubados e na conversa sobre teatro, o que torna o filme prato cheio para ataques ignorantes, daqueles que só aceitam cinema brasileiro se tiver quatro patas.
Galanteada pela outra, Soninha nem percebe que sua mãe é amante de Betinho, garotão ressentido da mulher velha e sonhando com a pureza das moças. Três idéias -- o flerte em diversas combinações, a sedução de Nanan e a humilhação de Malena por Betinho, montam um final rancoroso e surpreendente. Percebam que somente em um momento, logo nas primeiras cenas, outro personagem, além dos quatro, é mostrado: o pai de Soninha, vivido pelo próprio Aurélio Teixeira.
Dublado por Mário Petraglia, Carlo Mossy teria rendido melhor com a voz original. Os arroubos machistas, a angústia travestida de impaciência, eram um prato cheio para o ator brilhar sua especialidade: o cafajeste humanizado e perdedor, iniciado em "Copacabana Me Engana" (1968), revisto em "A Penúltima Donzela" (1969), diluído em "Lua de Mel e Amendoim" (1971).
A verdade é que Mossy, Prieto e Hoffman navegam pelo desbunde de interpretação da paulista de Garça, Elsa de Castro. Poucos anos depois, apresentada por Mossy ao policial-bandido Mariel Mariscott de Mattos, Elsa teria uma filha e abandonaria a carreira. Zélia Hoffman também se afastou dos filmes e da tv naquela década, morando no Retiro dos Artistas até morrer, em 2007. Já o diretor-ator Aurélio Teixeira faleceu em 73, deixando este como último longa-metragem, indício do que poderia ter feito na maturidade artística.
Complementando a trilha-sonora do Maestro Erlon Chaves, os adoráveis discos de jazz que os protagonistas ouvem forçam um pouco a barra, já que adolescentes dificilmente apreciariam Louis Amstrong nos momentos de lazer. A repentina proposta de Betinho para um ménage-à-trois com mãe e filha é outro curso improvável, deslize vazio no roteiro, pois não se explora qualquer ligação entre Malena e Soninha. Com a mãe limitada a proteger a menina, tudo que envolve ambas parece artificioso, sem consistência.
Nunca lançado em Vhs, que maravilha "Soninha Toda Pura" um dia voltando ao cinema ou mesmo exibido no Canal Brasil. Incômodo, mal compreendido e esquecido, o filme revelará que a presença do homossexual nas telas brasileiras pode ser bem mais complexa do que imaginamos. Tomado pela delicadeza, Aurélio Teixeira eternizou belas cenas de amor entre iguais, ao mesmo tempo que conduziu o drama teatral com elegância de grande cineasta.
Pois quem pagou ingresso esperando ver o casalzinho Adriana Prieto e Carlo Mossy vivendo desventuras românticas, se surpreendeu com influências de Eric Rohmer e Walter Hugo Khouri. O ponto de partida é uma esposa infiel, Malena (Zélia Hoffman), que viaja com o amante, Betinho (Mossy), a filha Soninha (Adriana Prieto) e uma amiga, Nanan (Elsa de Castro) para temporada em uma praia de Cabo Frio. Se o resumo lembra bastante o imaginário khouriano, closes em rostos femininos e jazz na vitrolinha que as meninas levam de um lado para o outro convencerão definitivamente o espectador de que Aurélio Teixeira era fã do maior diretor brasileiro.
Na casa, cercados de areia e mar por todos os lados, fica claro que Nanan deseja ardentemente a amiga Soninha. Lindíssima, Elsa de Castro fez o dever de casa, e tem a presença de uma atriz da Nouvelle Vague. Sua liberdade, avassaladora e contida, encontra na ingênua Soninha fuga e atração. O ritual de côrte homossexual eleva-se nos beijos roubados e na conversa sobre teatro, o que torna o filme prato cheio para ataques ignorantes, daqueles que só aceitam cinema brasileiro se tiver quatro patas.
Galanteada pela outra, Soninha nem percebe que sua mãe é amante de Betinho, garotão ressentido da mulher velha e sonhando com a pureza das moças. Três idéias -- o flerte em diversas combinações, a sedução de Nanan e a humilhação de Malena por Betinho, montam um final rancoroso e surpreendente. Percebam que somente em um momento, logo nas primeiras cenas, outro personagem, além dos quatro, é mostrado: o pai de Soninha, vivido pelo próprio Aurélio Teixeira.
Dublado por Mário Petraglia, Carlo Mossy teria rendido melhor com a voz original. Os arroubos machistas, a angústia travestida de impaciência, eram um prato cheio para o ator brilhar sua especialidade: o cafajeste humanizado e perdedor, iniciado em "Copacabana Me Engana" (1968), revisto em "A Penúltima Donzela" (1969), diluído em "Lua de Mel e Amendoim" (1971).
A verdade é que Mossy, Prieto e Hoffman navegam pelo desbunde de interpretação da paulista de Garça, Elsa de Castro. Poucos anos depois, apresentada por Mossy ao policial-bandido Mariel Mariscott de Mattos, Elsa teria uma filha e abandonaria a carreira. Zélia Hoffman também se afastou dos filmes e da tv naquela década, morando no Retiro dos Artistas até morrer, em 2007. Já o diretor-ator Aurélio Teixeira faleceu em 73, deixando este como último longa-metragem, indício do que poderia ter feito na maturidade artística.
Complementando a trilha-sonora do Maestro Erlon Chaves, os adoráveis discos de jazz que os protagonistas ouvem forçam um pouco a barra, já que adolescentes dificilmente apreciariam Louis Amstrong nos momentos de lazer. A repentina proposta de Betinho para um ménage-à-trois com mãe e filha é outro curso improvável, deslize vazio no roteiro, pois não se explora qualquer ligação entre Malena e Soninha. Com a mãe limitada a proteger a menina, tudo que envolve ambas parece artificioso, sem consistência.
Nunca lançado em Vhs, que maravilha "Soninha Toda Pura" um dia voltando ao cinema ou mesmo exibido no Canal Brasil. Incômodo, mal compreendido e esquecido, o filme revelará que a presença do homossexual nas telas brasileiras pode ser bem mais complexa do que imaginamos. Tomado pela delicadeza, Aurélio Teixeira eternizou belas cenas de amor entre iguais, ao mesmo tempo que conduziu o drama teatral com elegância de grande cineasta.
19 comentários:
Querida Andrea,
Sempre fui louco para assistir esse filme.
Bjs
Andrea onde você viu este filme? Puxa, parece ser demais. Sempre gostei muito dos filmes policiais que o Aurélio Teixeira dirigiu. Falei com a Elsa pelo Orkut, ela é muito gente fina. Qualquer hora você tem que entrevistá-la, ela mora aí no Rio.
Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com
Maravilhosa Andrea,
Você seria indispensável à cinematografia há 40 anos atrás. Talvez com sua visão absolutamente circunspeta e equilibradíssima, levaria o rumo das – legítimas- análises de filmes à época, a um outro patamar de críticas construtivas através de uma seriedade intuitiva e incondicional, rara naqueles tempos em que vigorava um jornalismo sectário e imprudente, assinado por tupiniquins pseudo godarianos.
Beijão,
Carlo Mossy
Nem fazia ideia do que tratava esse filme. Parece ser bem interessante, mesmo. Mais um excelente texto, Andréa :)
Bjs!
O jeito é esperar pelo Canal Brasil, que é a nossa salvação. Graças a ele Consegui assistir a Um Homem sem importância outro dia (realmente imperdível). Espero o mesmo do Soninha. Andrea, que bom que vc reclama das dublagens, por que pra mim era o que mais prejudicava o alcance desses filmes ao público. Vi Amada Amante outro dia e fico chocado em ouvir vozes tão diferentes dublando o Luiz Gustavo e a saudosíssima La Bréa. Pelo visto a dublagem do Mossy deixou a desejar de novo no Soninha.
abraços a todos
Vi pouquíssima coisa com a Adriana Prieto, mas, pra mim, ela é uma das atrizes mais lindas a aparecer nas nossas telas...
Cara Andrea percorrendo o Google para lembrar dos nomes dos personagens da Cronica da Casa Assassinada, encontrei Esranho Escuro e, reparei que é só filme brasileiro, parabéns, se me permite vou divulgar as matérias aqui postadas, posso? e olhando a relação de filmes noto a ausencia de um que assisti a tempos em vhs O Menino e o Vento, http://odval.foroblog.uol.com.br Abraço e sucesso.
Pensando bem, você, Andrea, inaugura, com seu método analítico, uma nova abordagem crítica sobre um cinema brasileiro que nunca foi considerado pelos "exegetas" fílmicos de nossa imprensa, mais preocupados com os "temas nobres" em detrimento da compreensão do cinema enquanto manifestação popular - e pessoas que estavam tão aguerridas na "conscientização" e na teor ideológico!
Sua análise de "Soninha toda pura" é um exemplo deste seu talento de procura das significações para uma exata compreensão da obra cinematográfica.
Admiro Aurélio Teixeira desde que fez "Três cabras de Lampião", um "nordestern", na sábia definição de Salvyano Cavalcantti de Paiva, e, principalmente pelo seu sentido de ritmo no 'thrriler' chamado "Mineirinho, vivo ou morto".
Vi "Soninha toda pura" quando do seu lançamento (e ao dizer isso me sinto velho, pois filme de 1971). Mas não me lembrava quase nada dele. Você consegue, com seu escrito, reconstruí-lo na minha memória.
Porque esse site demora tanto pra ser atualizado?
Adilson, filme raro, supreendente. Vc adoraria. Beijos, querido
Matheus, o Carlo Mossy conseguiu o filme. Pena que o dvd está dando erro, não copia. A Elsa é um encanto mesmo. Ainda hoje, pois nos falamos por email depois que este texto foi publicado.
Mossy, obrigada. Vc sabe que as nuances da sua trajetória seriam melhor compreendidas em um estudo sério sobre o cinema brasileiro. Galã, produtor, mocinho, bandido, frágil, cafajeste, diretor de "Ódio". Erros, acertos, tudo isto traz pra vc um lugar cativo no nosso cinema. Um grande beijo
Obrigada, Sergio. Como estava falando com o Adilson, o filme surpreende. Beijos!
Pois é, Daniel, e a dublagem ia pra segundo plano. Às vezes até por conta de outros compromissos, o ator não tinha como ir ao estúdio e colocavam outro no lugar. Abraços
Concordo, Renato, a Prieto era uma diva.
Fique à vontade, Pastorelli, obrigada. O problema é que "O menino e o vento", do Carlos Hugo Christensen, não passa mais no Canal Brasil e não tenho o vhs. Mas a dica está anotada. Abraços
André, escrever sobre um tema multifacetado e delicado como o cinema brasileiro, conversar com os leitores e amigos, como vc, deixa o trabalho ainda mais gratificante. Não me canso de dizer que é preciso deixar os clichês de lado, esta é a senha de todo o esforço. Belo privilégio, ter visto o "Soninha toda pura" no cinema! Na sala escura, ele adquire outra dimensão.
Anônimo, porque é um blog independente, sem patrocínio e os textos exigem bastante atenção e cuidado.
Acabei de assistir esse filme na Tv Cultura do Pará, retransmitindo a TV Brasil.
Valeu a análise do filme, gostei.
Abraço.
Vi esse filme no domingo (14/06) a noite da Rede Brasil com minha namorada. E como não poderia deixar de ser, corri ao seu blog para ler mais sobre o filme. Estranhei o fato de em 1971 Dona Censura não querer cortar esses assuntos tão tabu. A lamentar, apenas os suspiros de minha namorada quando o Mossy aparecia. O cara era casca grossa (no bom sentido) mesmo, hehe. Abraços.
Complemento: que mulher linda a Elsa de Castro! Que plástica! Num primeiro momento cheguei a achar que era filme recente, pois peguei o filme pelo meio na cena em que ela está na praia de biquini com sua barriga sarada, mas isso nem existia naquele tempo, né? Isso sem falar na Adriana, muito linda.
Acabei de assistir a "Soninha toda pura" agora na TV, começo de madrugada de 31/08/2009. Passou na Rede Minas, TV pública de Minas Gerais.
Achei surpreendente o filme, ousado e muito belo. Vim pra internet procurar mais informações sobre ele e cheguei aqui!
Parabéns pelo blog.
Abs,
Ronaldo
Caros, vi este filme em 1973/4? eu era menor de idade e estudava ao lado de um cinema.
Nao gostava de filmes de guerra nem de western mas adorava so nacionais.... e como se passava filme no cine Higienopolis(no bairro de mesmo nome no Rio) Nessa época me lembro de ter ficado apaixonado por Odete Lara, Rossana Ghessa, Adriana Prieto e me surpreendi com Elza de Castro, linda, linda. mas esse filem era meio cabeça. Nao tinha ocm resistir ao charme do Carlo Mossy.
Detlahe: eu noa tinha 13/4 anos....
Um vez assitindo ao Os Paqueras pela terceira vez consecutiva ao sair do cinema encontrei com meu pai...preocupado comigo! Quem imagina de hoje assistir a uma sessao 3 vezes seguidas pagando so um ingresso?
Em nenhum cinema de uma grande cidade do Brasil.
Fernando Venancio
Andrea, é uma felicidade encontrar um espaço como o seu blog. Suas críticas são simples e nem por isso menos inteligentes. Parabéns!
Quanto à crítica Soninha Tôda Pura, eu discordo quando você afirma: "Elsa de Castro fez o dever de casa, e tem a presença de uma atriz da Nouvelle Vague". A Atuação da Elsa é satisfatória, uma ótima atriz. Mas dizer que sua presença é de uma atriz da Nouvelle Vague é um pouco demais, na minha opinião.
Mais uma vez,
parabéns pelo inteligente espaço.
A popularidade do filme foi tanta que acabou até influenciando o Chacrinha a ´batizar´ uma de suas mais famosas chacretes com o nome do filme
Não lembro da Chacrete do Chacrinha com esse nome,Reinaldo Azevedo adora usar a expressão achando que é do Waly Salomão se referindo ao Caetano Veloso.Em tempo,Carlo Mossy está lindo!
Tem um ''Xandão'' por aqui,rs.
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