quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Romance da Empregada


A empregada doméstica é uma instituição brasileira, tanto quanto o samba e o futebol. Verdade que novos tempos politicamente corretos tentaram matar a figura da empregada no imaginário corrente, limitando seu poder de ação e influência a uma simples prestação de serviços. Só quem conviveu -- ou convive -- com o dionisíaco mundo das domésticas, percebe o riquíssimo universo de histórias e possibilidades que se oculta por trás da profissão, onde o conflito amor e ódio é mais do que simples luta de classes, mascarando uma saga freudiana de razões ainda não bem estudadas.

No Rio de Janeiro dos anos 80, tal como a piada dos latinos na Califórnia, se as domésticas desaparecessem a cidade enlouqueceria. Aliando a possibilidade de mão-de-obra descartável -- típica de um país subdesenvolvido -- com informalidade nas relações trabalhistas, famílias da Zona Sul contratavam duas ou três "auxiliares" -- uma tríade babá-cozinheira-arrumadeira era comum -- e a depender do tempo de serviço e temperamento, esses laços se estreitavam, ao ponto de as domésticas controlarem o orçamento da casa e a educação básica das crianças.

Como tudo no Brasil, forjava-se uma relação injusta, sem qualquer segurança ou vínculo empregatício real, e que por isso mesmo criava uma subcultura de leis não-escritas, conceitos e preconceitos.


Pouco explorado pelo cinema brasileiro, este fenômeno paternalista e pitoresco guarda o interessantíssimo "Romance da Empregada" (1987), direção de Bruno Barreto e roteiro do dramaturgo Naum Alves de Souza. Sucedendo o esquisito "Além da Paixão", é certo que Barreto quis fazer um filme popular, de fácil compreensão do público. Para quem esperava uma comédia, é tão engraçado e hilariante quanto "A Servidão Humana" de Somerset Maugham.

Brilhante e simples, o mote publicitário: "Uma história de amor sem amor", sobrevive preciso às intenções do roteiro. Fausta (Betty Faria) é uma doméstica carioca, moradora de Gramacho, distrito de Duque de Caxias, seduzida por homem idoso, Zé da Placa (Brandão Filho), que vive de bicos na Central do Brasil e promete à pobre mulher uma ajuda financeira, em troca de atenção e sexo. Fausta é casada com João (Daniel Filho) e passa a traí-lo com Zé da Placa, embora não ame ninguém, só ela mesma.

De uma época em que os pobres ainda podiam parecer tão maus quantos os ricos no cinema brasileiro, "Romance da Empregada" chegou a ser acusado de carregar nas tintas da vilania de Fausta. Oferecia-se, então, a tese de que o olhar "classe-média" de Barreto era de caricatura e pessimismo. Em defesa do diretor, vale dizer que "Romance da Empregada" é um drama, e como drama deve ser visto. E que com a corda no pescoço, sem emprego, casa e móveis perdidos pela chuva, Fausta e João não poderiam agir propriamente como o casal 20, Jonathan e Jennifer Hart.

Anunciando a tempestade final e simbólica, chove bastante no decorrer das cenas, inclusive em uma visita ao Planetário da Gávea. Fausta às vezes oferece um pouco de carinho ao velho (Brandão Filho tinha na ocasião 77 anos), cuida para que ele não apanhe resfriados; mas, no segundo seguinte, pragueja contra sua dependência e fragilidade. Enquanto isso o marido João tenta atendimento em um hospital público e chora, acometido do mesmo ânimo carente.

O que permeia a vida dos protagonistas é esta certeza intuitiva do desamparo. Não há Estado, não há garantias trabalhistas, não há nada. As idas e vindas de Fausta no trem em direção à "casa da madame" (da qual chega a ser demitida) só ressaltam um abandono anônimo, que ela sublima com idolatria datadíssima à cantora Tina Turner e, em cena preciosa, ao tomar o apartamento, as roupas e o telefone da patroa. "Estou usando até as calcinhas dela!", afirma, no êxtase lésbico de quem capturou um tesouro.

Maltratando a concorrência, o suburbano "Mercado de Móveis Madureira" faz aparição gloriosa, quando Fausta compra cama e colcha ("De chenile!"), novas e à prestação. Nunca permite que o marido estropiado usufrua daquele recém-adquirido bem, e a quase tudo que possui devota egoísmo histriônico. Na esperança de tê-la somente para si, Zé da Placa manipula estas fraquezas e lhe cobre de presentes. O melhor: um par de fones azuis com antena e rádio AM-FM, daqueles que eram contrabandeados do Paraguai. O pior: uma domingada em Paquetá, ilha-bairro do Rio, onde ela se demonstra uma mulher corajosa, quiçá suicida, tomando banho em plena baía da Guanabara.

No avanço do jogo de interesses é que o filme deprime e induz ao imperativo de que, para salvar sua alma, Fausta ofereça ambos -- marido e namorado -- ao sacrifício. Goethe concordaria que o delírio em que João chafurda na lama e chama Satanás só confirma este feminismo atávico, manipulado ao extremo de parecer ridículo, embora ainda verossímil.

6 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Querida Andrea,
Vou tomar esse seu retorno como uma homenagem a mim, ok?
Isso porque você escolheu um dos filmes brasileiros que mais amo. E amo de paixão.
Agora, afora tudo, que bom que está de volta.
Não estamos mais órfãos.
Bjs
Adilson Marcelino

Anônimo disse...

Tb adoro o filme. Betty Faria maravilhosa, Daniel e Brandão Filho idem. Tem ainda Guida Viana, Stella Freitas e Analu Prestes, divertidíssimas cantando Roberto Carlos na barca de volta de Paquetá.

Andrea, gostaria de aproveitar para lembrar que O GOSTO DO PECADO vai passar no próximo dia 13/02/09 às 2h30m, de quinta para sexta, Canal Brasil.

PS: Vc poderia comentar o filme EXCITAÇÃO, do Jean Garret. Passou a pouco tempo no Canal Brasil e gostaria de saber sua opinião. BJS

Anônimo disse...

Belo retorno Andrea! Também sou fã de "Romance da Empregada", um grande acerto (talvez o maior) de Bruno Barreto. O trio protagonista está perfeito. Daniel Filho nunca esteve tão bem.

Fofão disse...

Que bom que você voltou, Andrea. Demorou, hein?
Não vi o filme, tive preguiça (na verdade eu tenho grande má vontade com o Barreto). Vou prestar mais atenção quando passar de novo.

Andrea Ormond disse...

Adilson, querido, homenagem mais do que devida ;) Sempre gostei muito do "Romance da Empregada", o roteiro tem sacadas muito boas, empolga. Obrigada, bjos mil

Daniel, o filme tem cenas hilárias, e no extremo oposto, o "Excitação", que está logo em seguida aqui acima :) Bjs

Oi, Márcio! A atuação do Daniel Filho atingiu em cheio o personagem. Não está caricato, é de um realismo que combina com a intenções do filme. Abraços

Fofão, demorei mas cá estou. Até o final do mês entrevista nova no ar. Entendo essa má vontade com o Barreto, motivos não faltam. Mas veja com calma o filme, é provável que vc goste. Um abraço

Eduardo disse...

Que legal ler sobre este filme aqui no blog. É meu filme brasileiro preferido!