Não sei se os leitores já perceberam, mas o cinema brasileiro atual inventou um novo subgênero fílmico: as sociochanchadas.
As sociochanchadas são muito parecidas entre si, em sua quase totalidade produzidas no Rio de Janeiro, com padronização televisiva e de roteiro esquemático sobre a luta de classes nas favelas cariocas ou algum rocambole nos grotões nordestinos. Percebam que o fenômeno pouco difere de outro mais antigo, aquele das pornochanchadas. Apenas trocou-se o sexo pela mensagem social, pelo engagée politicamente correto.
Uma segunda diferença fundamental é que as pornochanchadas foram feitas com as promissórias de Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios. Caso dessem errado, o produtor falia e tinha que passar uns tempos escondido em Mongaguá. Já as sociochanchadas chegam pagas ao público, não oferecendo o mínimo risco aos realizadores, mesmo que apenas três espectadores as testemunhem.
Nem precisamos citar o título de alguma sociochanchada. Como todo fenômeno bárbaro, elas estão por aí, tomando cada vez mais espaço. Basta consultar a lista dos filmes em cartaz ou ler a sinopse dos projetos que buscam patrocínio.
Podemos dizer, sim, que vozes distoantes são "O Cheiro do Ralo", "Amarelo Manga", "Jogo Subterrâneo", "Crime Delicado", o novo do Mojica; filmes que provam a existência de uma outra maneira de se fazer cinema, longe da indústria oportunista que se criou em volta deste hábito sociochanchadeiro.
Infelizmente, o estrago se faz visível: o cinema nacional hoje vive o paradoxo de mobilizar milhões de reais para produzir resultados artísticos e comerciais pífios. Um discurso de tolerância crescente realimenta o ciclo, fazendo-se de conta que dezenas de tentativas muito parecidas entre si nada guardam em comum.
O antídoto para a sociochanchada, para a gordura demagógica e populista do cinema brasileiro atual, encontra-se em obras-primas como "Perdida" (1975), do cineasta mineiro Carlos Alberto Prates Correia. Aos diretores mauricinhos de classe-média, que tratam o povo (uma idealização perversa do ente popular) como gatinho bebendo leite em pires, o cinema de Prates Correia mostra que a importância de se olhar o povo é descobrí-lo em suas falhas e insensatez. É conhecer ricos ou pobres sem maniqueísmo, sem hipocrisias; apenas humanos, demasiadamente humanos.
Qual novo filme brasileiro consegue a poesia, obtusa em simplicidade, de "Perdida"? Provincianamente universal, Estela (Maria Silvia), agregada em casa de família, não envelhecerá até que o Brasil permaneça de pé. E através das suas sensações mínimas, de seu prazer limítrofe da dor e da humilhação, o íntimo se funde ao redor, a uma anotação pitoresca e reflexiva da terra.
Estela começa sendo despedida pela patroa, porque marido e filho a assediam sexualmente. A partir daí, sai pelas estradas de Minas, conhece Júlio César (Álvaro Freire) que a encanta e faz esquecer a fidelidade atávica ao lar onde trabalhava. Júlio é um caminhoneiro que propõe "Vou te levar pra Zona (...) Lá tem mais alegria, tem música, tem dança". Transforma -- junto com a cafetina Emília (Telma Reston) -- Estela em Janete, no bordel em Rio Verde.
Os afazeres de Estela/Janete são rotineiros: um entra e sai de almas tristes do quarto, até que enamore o poeta Zeca de Oliveira (Hélber Rangel), rendido e redentor, cozido em fogo brando por Estela preferir a força malandra de Júlio. O preço é deixar escapar a chance, talvez única na vida, de ser amada verdadeiramente.
Zeca é um grande personagem, tão bom quanto Estela/Janete. Seu tipo de homem castrado, refém do desejo feminino, permite até que encene uma imitação do rival. Tem ainda função ao declamar poemas, que somam-se à trilha-sonora e ao idioma saboroso do interior ("Dá o pira", "Cê acha?"), na caracterização caipira sudestina. Ao ser assassinado, desfaz a tensão do triângulo, libertando Janete para um fim mais irônico e verossímil.
"Perdida" sofreu cortes importantes na Censura, que nos fazem imaginar o que havia e que nunca foi mostrado. Boates fim de mundo, canções populares da época (a cena de Estela e Zeca, ao som de "Estácio, Holly Estácio", é das melhores do cinema brasileiro), e o mobilizar imóvel da pobreza e da ignorância -- tudo é dito em 80 minutos. Quando o casal visita a família de Estela na roça, ofuscados pelo fusca laranja e pelo silêncio atordoante e sepulcral, o desprezo dos pais é Freud, mas também sociologia sem partido, sem doutrinação ideológica.
Prates Correia tenta largar Estela no mundo com uma ponta de esperança, rumo à metrópole, à Belo Horizonte, naquele movimento formiguinha que modificou a face do país para sempre. Em rara entrevista concedida para o jornalista Marcelo Miranda, no jornal "O Tempo", o autor sugere que sua mineiridade -- conseqüente brasilidade -- era acidental, pois no caso de "Perdida" buscava "transgredir o modelo da ditadura das reconstituições históricas e adaptações literárias". Com certeza foi mais longe, atingindo no estilo desprovido de grande técnica uma linguagem inovadora, eterna, a ser olhada como exemplo de bom cinema.
O final deste artigo explode naturalmente: pelo bem do cinema brasileiro, o leitor não deve engolir mais as sociochanchadas. Até que nossos diretores aprendam em mestres como Carlos Alberto Prates Correia e outros a verdadeira observação da miséria e precariedade humanas. Longe, muito longe da dramaticidade rasteira e do "povo de aluguel" que esvaziam os cinemas hoje em dia.
As sociochanchadas são muito parecidas entre si, em sua quase totalidade produzidas no Rio de Janeiro, com padronização televisiva e de roteiro esquemático sobre a luta de classes nas favelas cariocas ou algum rocambole nos grotões nordestinos. Percebam que o fenômeno pouco difere de outro mais antigo, aquele das pornochanchadas. Apenas trocou-se o sexo pela mensagem social, pelo engagée politicamente correto.
Uma segunda diferença fundamental é que as pornochanchadas foram feitas com as promissórias de Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios. Caso dessem errado, o produtor falia e tinha que passar uns tempos escondido em Mongaguá. Já as sociochanchadas chegam pagas ao público, não oferecendo o mínimo risco aos realizadores, mesmo que apenas três espectadores as testemunhem.
Nem precisamos citar o título de alguma sociochanchada. Como todo fenômeno bárbaro, elas estão por aí, tomando cada vez mais espaço. Basta consultar a lista dos filmes em cartaz ou ler a sinopse dos projetos que buscam patrocínio.
Podemos dizer, sim, que vozes distoantes são "O Cheiro do Ralo", "Amarelo Manga", "Jogo Subterrâneo", "Crime Delicado", o novo do Mojica; filmes que provam a existência de uma outra maneira de se fazer cinema, longe da indústria oportunista que se criou em volta deste hábito sociochanchadeiro.
Infelizmente, o estrago se faz visível: o cinema nacional hoje vive o paradoxo de mobilizar milhões de reais para produzir resultados artísticos e comerciais pífios. Um discurso de tolerância crescente realimenta o ciclo, fazendo-se de conta que dezenas de tentativas muito parecidas entre si nada guardam em comum.
O antídoto para a sociochanchada, para a gordura demagógica e populista do cinema brasileiro atual, encontra-se em obras-primas como "Perdida" (1975), do cineasta mineiro Carlos Alberto Prates Correia. Aos diretores mauricinhos de classe-média, que tratam o povo (uma idealização perversa do ente popular) como gatinho bebendo leite em pires, o cinema de Prates Correia mostra que a importância de se olhar o povo é descobrí-lo em suas falhas e insensatez. É conhecer ricos ou pobres sem maniqueísmo, sem hipocrisias; apenas humanos, demasiadamente humanos.
Qual novo filme brasileiro consegue a poesia, obtusa em simplicidade, de "Perdida"? Provincianamente universal, Estela (Maria Silvia), agregada em casa de família, não envelhecerá até que o Brasil permaneça de pé. E através das suas sensações mínimas, de seu prazer limítrofe da dor e da humilhação, o íntimo se funde ao redor, a uma anotação pitoresca e reflexiva da terra.
Estela começa sendo despedida pela patroa, porque marido e filho a assediam sexualmente. A partir daí, sai pelas estradas de Minas, conhece Júlio César (Álvaro Freire) que a encanta e faz esquecer a fidelidade atávica ao lar onde trabalhava. Júlio é um caminhoneiro que propõe "Vou te levar pra Zona (...) Lá tem mais alegria, tem música, tem dança". Transforma -- junto com a cafetina Emília (Telma Reston) -- Estela em Janete, no bordel em Rio Verde.
Os afazeres de Estela/Janete são rotineiros: um entra e sai de almas tristes do quarto, até que enamore o poeta Zeca de Oliveira (Hélber Rangel), rendido e redentor, cozido em fogo brando por Estela preferir a força malandra de Júlio. O preço é deixar escapar a chance, talvez única na vida, de ser amada verdadeiramente.
Zeca é um grande personagem, tão bom quanto Estela/Janete. Seu tipo de homem castrado, refém do desejo feminino, permite até que encene uma imitação do rival. Tem ainda função ao declamar poemas, que somam-se à trilha-sonora e ao idioma saboroso do interior ("Dá o pira", "Cê acha?"), na caracterização caipira sudestina. Ao ser assassinado, desfaz a tensão do triângulo, libertando Janete para um fim mais irônico e verossímil.
"Perdida" sofreu cortes importantes na Censura, que nos fazem imaginar o que havia e que nunca foi mostrado. Boates fim de mundo, canções populares da época (a cena de Estela e Zeca, ao som de "Estácio, Holly Estácio", é das melhores do cinema brasileiro), e o mobilizar imóvel da pobreza e da ignorância -- tudo é dito em 80 minutos. Quando o casal visita a família de Estela na roça, ofuscados pelo fusca laranja e pelo silêncio atordoante e sepulcral, o desprezo dos pais é Freud, mas também sociologia sem partido, sem doutrinação ideológica.
Prates Correia tenta largar Estela no mundo com uma ponta de esperança, rumo à metrópole, à Belo Horizonte, naquele movimento formiguinha que modificou a face do país para sempre. Em rara entrevista concedida para o jornalista Marcelo Miranda, no jornal "O Tempo", o autor sugere que sua mineiridade -- conseqüente brasilidade -- era acidental, pois no caso de "Perdida" buscava "transgredir o modelo da ditadura das reconstituições históricas e adaptações literárias". Com certeza foi mais longe, atingindo no estilo desprovido de grande técnica uma linguagem inovadora, eterna, a ser olhada como exemplo de bom cinema.
O final deste artigo explode naturalmente: pelo bem do cinema brasileiro, o leitor não deve engolir mais as sociochanchadas. Até que nossos diretores aprendam em mestres como Carlos Alberto Prates Correia e outros a verdadeira observação da miséria e precariedade humanas. Longe, muito longe da dramaticidade rasteira e do "povo de aluguel" que esvaziam os cinemas hoje em dia.
16 comentários:
Como sempre encantadoramente genial.
vou ficar na tocaia de Perdida!
Olha, eu tava conversando ontem com um amigo, somos do piauí, sobre a nossa irritação em ver filmes comerciais produzidos no eixo rio-são paulo sobre a figura do nordestino, sempre tratado de uma forma boba e superficial e para os nordestinos conscientes é extremamente irritante ver seu povo retratado de uma forma tão ridícula, mais precisamente são os filmes produzidos pela TODA PODEROSA rede de televisão, que eu acho que se enquadram nessa categoria de sociochanchada, não?
en-cru-zi-lha-da, atocaie o Perdida. Quando vir, coloca uma rede em cima e leva pra casa!
italo, vc tocou num ponto interessante. As sociochanchadas têm esse problema terrível de esteriotipização. Não que seja uma característica unicamente delas, já que muitos outros filmes e tendências tb usam isso. Rede Globo e filme já deram criações boas, vide p. ex. o Roleta Russa realizado com prata da casa e que comentei aqui no blog: roteiro/direção do Braulio Pedroso, atuação do Daniel Filho. O problema é a repetição e o empobrecimento de conteúdo atuais.
Texto fabuloso Andréa! Gosto de "Perdida" desde o título, irônico e poético, que capta bem o "idioma saboroso do interior" como você observou de maneira feliz. Texto belíssimo, no rol dos melhores que você já publicou neste espaço. Prates Correia merece toda nossa reverência.
Andréa,muito tempo que não passo por aqui,excelente,como sempre, o seu texto.Como alguém disse ai em
cima,infelizmente a maioria desse monte de LIXO que infesta não só os cinemas,mas também a tv é produzido pela Globo,é triste demais ver tantos talentos perdendo tempo e se queimando com textículos que dão vontade de vomitar...Ah,e parabéns pelos 3 anos,continue assim,seu blog é fonte preciosa de informação.Um grande beijo!
Dr Lorax ai em cima
olá, vi seu blog recentemente, e conferi a resenha de "Terror e Extase". Preciso deste filme para trabalho universitário. Poderia me indicar se é possível consegui-lo na Net, via Torrent ou Emule? Agradeço!
Laécio
Oi Andrea. Muito legal este endereço. Consigo ter acesso a muitos filmes que vi muitos anos atrás naqueles verdadeiros salões de cinema. Quando a gente ia sozinho no cinema, e se deparava com um baita filme. Sempre uma experiência excelente. O Brasil tinha grandes cineastas nessa época, nem sempre os medalhões do Cinema Novo e tudo mais. Eu quero mesmo ler aqui algo sobre os filmes do Juan Bajon, do Luiz Gonzaga dos Santoe e do Alex Prado que ainda não encontrei. De resto, excelente. Queria saer de você Andrea: o que achou do "Tropa de Elite"?
Abraço, Hernani Veiga
Excelente artigo. Fala a verdade sobre o momento atual do cinema brasileiro. Diz com todas as letras a verdade. Só pra acrescentar: Prates Correia é poeta. Forte abraço,
Matheus Trunk
www.revistazingu.blogspot.com
Obrigada, Márcio, sempre me senti fascinada pelo "Perdida", desde a primeira vez que o vi, pelo jeito bastante rico e sincero de retratar o interior :)
Lorax, voltaste! A televisão tb serve de fonte de renda para muita gente que estaria à deriva sem ela. O erro está nesse nivelamento por baixo... Beijos e obrigada
Laércio, o "Terror e Êxtase" costumava passar bastante no Canal Brasil. Fica atento, numa dessas ele volta.
Gostei muito do "Tropa de Elite", o tipo de filme que a princípio "deveria" ter uma abordagem sociológica mas que desagüou na polêmica e na eternização de um personagem. O fenômeno fora das telas tb é interessante, mostra que público para o cinema brasileiro existe, não é mera lenda urbana. Um abraço
Matheus, o estado de coisas é este, mas pode ser mudado. Principalmente se levarmos em conta que o cinema digital vem se tornando cada vez mais barato e acessível para novos criadores. Grande abraço
Adoro quando você sobe nas tamancas. Independente de eu concordar ou não. Ah, se tudo que é crítico de cinema fosse independente e destemido assim...
Acabo de conhecer o blog e já gostei!
Curiosamente, lembro-me bem da segunda vez que assisti Perdida, ainda sem visão crítica alguma: estava com mãe e tia (únicas adultas), irmãos e primos no único cinema - poeira - do Farol de São Tomé, em campos-RJ. Não lembro a época, mas até chegar lá o filme já deveria ter rodado muito! Estranho programa em família, não? Mas bastante divertido!
Andrea
De volta ao seu blog, quando pesquisei sobre Maria Sílvia (falecida hoje, 27/07/09, tão jovem, aos 65 anos)... Assisti "Perdida" umas duas vezes no Canal Brasil e achei o filme de grande sensibilidade e bons atores - Maria Sílvia, Helber Rangel e Alvaro Freire (deste, acho que só vi esse filme).
Quando puder, passe pelo meu blog (http://folhas-de-almanaque.blogspot.com/). Abraços, Cíntia
Olá Andréa, ou casada com o Prates há 21 anos e posso lhe dizer, foi uma surpresa muito agradável sua matéria que por acaso encontramos.
Ele é um digno solitário nesse mercado de ilusão e saber que existem pessoas que o admiram com essa categoria encoraja.
Luiz, não consigo elaborar o texto de outra maneira, o discurso e as consequencias dele são estas. Chapa branca não dá rs
Edu Corrêa, obrigada. Eu que já vi "Easy Rider" acompanhada dos meus pais e da minha avó conheço o drama rs Esses programas em família inusitados rendem boas histórias...
Cíntia, pena muito grande o falecimento da Maria Sílvia. Ainda mais quando se coloca em perspectiva o trabalho precioso neste filme. Abraços, vou dar um pulo no seu blog.
Anônimo, transmita ao Prates o meu carinho e sobretudo o entendimento do que imagino que ele pense nestes dias de excesso de artificialismo. Comentários como o seu também me encorajam. Fiquei sem saber o seu nome, mas o meu email é andrea.ormond@uol.com.br, caso queiram bater um papo, será um prazer. Abraços
Uma outra característica legal desse filme é sua trilha sonora, na qual trafegam boleros, música regional mineira, etc. Outro filme que é pouquíssimo exibido e que me parece compor esse painel citado aqui no blog é o Beijo 2348/72 (de 90), com Chiquinho Brandão e um elenco de grandes nomes - assim mesmo, foi relegado quase ao esquecimento.
Há outros filmes sensíveis dos anos 70/80/90, alguns mais badalados como "A Marvada Carne", outros menos, como o "Em Família", que relata a situação de um casal de idosos, jogados de uma casa para outra, com Rodolfo Arena e Iracema de Alencar nos papéis principais.
Postar um comentário