quinta-feira, julho 20, 2006

Os Paqueras



Os créditos cheios de bossa e a ingenuidade do sal, sol e sul – trecho da canção de Ronaldo Bôscoli, bossanovista demais para caber na trilha sonora com Os Mutantes, Rogério Duprat e Roberto Carlos – fazem de “Os Paqueras” (1969) um exemplar célebre da comédia urbana carioca.

Estreante na direção, Reginaldo Faria -- que já trabalhara na assistência de Roberto Farias -- retornou ao filão nos filmes seguintes, “Pra Quem Fica Tchau” (1971), “Os Machões” (1972) e “O Flagrante” (1975), passando à guinada realista em "Barra Pesada", de 1977. Curiosamente, mesmo ano do mesmo fenômeno vivenciado por Carlo Mossy -- também galã, diretor e produtor -- que na linha da ultra-violência fez de "Ódio" um clássico da moderna filmografia brasileira.

Até 1977, porém, muita coisa ainda estava para acontecer. E se em "Os Paqueras" a inexperiência do diretor era uma condição inescapável, por outro lado havia o argumento dividido entre ele, Roberto Farias, André José Adler e Xavier de Oliveira – assistente de direção aqui, diretor em “Jipe sem Capota”, depois rebatizado de “Marcelo Zona Sul” (1970) –, que segura as pontas com tranqüilidade e reaviva o interesse de quem quiser saber mais sobre os tempos em que os carros rodavam pela Guanabara com placas de seis números e os motoristas ainda propunham fotos de nu artístico para levarem as cocotas nas garçonniéres espalhadas por Copacabana.

Interessante perceber, também, que há uma divisão nos holofotes entre dois papéis masculinos principais -- o de 25 anos de idade, Nonô (Reginaldo Faria), e o de quase 50, Toledo (Walter Foster) -- que usam o mesmo matadouro, apesar de viverem realidades sociais completamente diferentes.

Nonô é o garotão da classe média, mora com os pais, é "excedente" -- ou seja, não-convocado -- no vestibular. Toledo flana de carrão, guarda outro na garagem, tira uma de quase-lorde com um cachimbo e tem com o garoto um casamento perfeito nas artes de colocar chifre na cabeça dos outros.

Para azar do coroa, a filhota (Margareth, Irene Stefânia), estudante da PUC, cai de amores por Nonô e o final, apesar de açucarado -- pois o sátiro encontra a felicidade nos braços de Margareth -- não cede de todo ao puritanismo da época. Marga e Nonô transam -- de roupa, vá lá --, desmistificam o tabu da conservação de virgindade entre mocinhas de boa família e Nonô manda na lata: "Fiz com sua filha o que todo homem faz com uma mulher. Ela gostou."

De qualquer forma, evidente que há uma mitigação do conteúdo sexual. Isto apesar de termos o nu frontal rápido de uma das meninas de Nonô/Toledo e o, digamos, dorso descoberto de Reginaldo, aparecendo de relance. Neste sentido, não raro afirmar-se que em "Os Paqueras", assim como no "Cassy Jones", de Luís Sergio Person, existe um estado embrionário da pornochanchada.

Mas a afirmativa deve ser encarada com bastante cuidado, na medida que a "pornochanchada" surgiu em condições e razões históricas bem diferentes daquelas que são vistas neste filme da R. F. F. Produções Cinematográficas, comandada por Roberto Farias -- além dos irmãos Reginaldo e Roberto, trabalham também o caçula Rogério, como operador de som, e Riva, na produção executiva.

Fregolente e Lícia Magna como pais de Nonô; Leila Diniz como a própria – reparem numa cena da novela “Anastácia, A Mulher Sem Destino”, em que Leila participava –; Darlene Glória (Suzy) como esposa do piloto de avião (Ary Fontoura) que, claro, passa tempo demais fora de casa; Adriana Prieto (Fátima), em papel que zomba um pouco da sua aura de mulher indecifrável e primaveril, no golpe aplicado em Nonô, que imaginava deflorar a pobre menina, mestra no 171. Além dessas gags, vemos o homossexual gente boa (Fernando Reski) avisando à dupla de caçadores sobre a chegada do marido que ameaça Toledo e a amante; o edifício número 200 da Rua Barata Ribeiro -- que se tornaria, com os anos, sinônimo de escracho e decadência, bem utilizado por gente como Mozael Silveira, outra cria da R.F.F --, além de uma bacanal envolvendo uma starlet, Nonô e Toledo.

Em suma, um "Rio Babilônia" ingênuo e sessentista, que aproveita-se da paisagística deslumbrante e das piadas colhidas por meio de um trabalho de campo fundamental: os realizadores observaram os verdadeiros paqueras -- como "André José Adler, Ronaldo Brasil, Norman Casari, Zé, Chico e Wilson", creditados no início do filme -- e gravaram depoimentos pelo bairro, em gravadores Nagra, que serviram de suporte à pré-produção.

Ao invés das referências a cocaína e à corrupção política, marcantes no filme de Neville de Almeida, "Os Paqueras" dialoga diretamente com matrizes italianas arquetípicas -- “Viva a vida doce, viva a doce vida!”, exclama Nonô, “Você já viu ‘A Doce Vida’?”, pergunta a menina, "Seis vezes", responde. Ou em características que fervilhavam o humor de botequim -- "Fessora é boa", rabiscado num desenho feito pelo rapaz que quer tentar um teste de sofá para convencer a professora a lhe dar um emprego.

Neste ritmo, “Os Paqueras” é uma espécie de ode à joie de vivre carioca, copacabanense em particular, que se não se perdeu ao longo destes últimos quase quarenta anos, arrefeceu um bocado nas transformações cotidianas da cidade. Poderíamos até mesmo traçar uma pequena filmografia que demonstrasse as feições do Rio de Janeiro ao sabor das décadas, passando por “Rio 40 Graus”; “Os Paqueras”; “Vai Trabalhar Vagabundo”; “Muito Prazer”, de David Neves; “Rio Babilônia”; finalizando com o réquiem sinistro de “Cidade de Deus”.

Igual panorama pode ser montado em relação a São Paulo, o que prova que o cinema sempre esteve próximo da realidade urbana brasileira. Cabe ao público, apenas, decodificá-lo com olhos livres, sem preconceitos ou deslizes de julgamento.

Os créditos cheios de bossa e a ingenuidade do sal, sol e sul – trecho da canção de Ronaldo Bôscoli, bossanovista demais para caber na trilha sonora com Os Mutantes, Rogério Duprat e Roberto Carlos – fazem de “Os Paqueras” (1969) um exemplar célebre da comédia urbana carioca.

Estreante na direção, Reginaldo Faria -- que já trabalhara na assistência de Roberto Farias -- retornou ao filão nos filmes seguintes, “Pra Quem Fica Tchau” (1971), “Os Machões” (1972) e “O Flagrante” (1975), passando à guinada realista em "Barra Pesada", de 1977. Curiosamente, mesmo ano do mesmo fenômeno vivenciado por Carlo Mossy -- também galã, diretor e produtor -- que na linha da ultra-violência fez de "Ódio" um clássico da moderna filmografia brasileira.

Até 1977, porém, muita coisa ainda estava para acontecer. E se em "Os Paqueras" a inexperiência do diretor era uma condição inescapável, por outro lado havia o argumento dividido entre ele, Roberto Farias, André José Adler e Xavier de Oliveira – assistente de direção aqui, diretor em “Jipe sem Capota”, depois rebatizado de “Marcelo Zona Sul” (1970) –, que segura as pontas com tranqüilidade e reaviva o interesse de quem quiser saber mais sobre os tempos em que os carros rodavam pela Guanabara com placas de seis números e os motoristas ainda propunham fotos de nu artístico para levarem as cocotas nas garçonniéres espalhadas por Copacabana.

Interessante perceber, também, que há uma divisão nos holofotes entre dois papéis masculinos principais -- o de 25 anos de idade, Nonô (Reginaldo Faria), e o de quase 50, Toledo (Walter Foster) -- que usam o mesmo matadouro, apesar de viverem realidades sociais completamente diferentes.

Nonô é o garotão da classe média, mora com os pais, é "excedente" -- ou seja, não-convocado -- no vestibular. Toledo flana de carrão, guarda outro na garagem, tira uma de quase-lorde com um cachimbo e tem com o garoto um casamento perfeito nas artes de colocar chifre na cabeça dos outros.

Para azar do coroa, a filhota (Margareth, Irene Stefânia), estudante da PUC, cai de amores por Nonô e o final, apesar de açucarado -- pois o sátiro encontra a felicidade nos braços de Margareth -- não cede de todo ao puritanismo da época. Marga e Nonô transam -- de roupa, vá lá --, desmistificam o tabu da conservação de virgindade entre mocinhas de boa família e Nonô manda na lata: "Fiz com sua filha o que todo homem faz com uma mulher. Ela gostou."

De qualquer forma, evidente que há uma mitigação do conteúdo sexual. Isto apesar de termos o nu frontal rápido de uma das meninas de Nonô/Toledo e o, digamos, dorso descoberto de Reginaldo, aparecendo de relance. Neste sentido, não raro afirmar-se que em "Os Paqueras", assim como no "Cassy Jones", de Luís Sergio Person, existe um estado embrionário da pornochanchada.

Mas a afirmativa deve ser encarada com bastante cuidado, na medida que a "pornochanchada" surgiu em condições e razões históricas bem diferentes daquelas que são vistas neste filme da R. F. F. Produções Cinematográficas, comandada por Roberto Farias -- além dos irmãos Reginaldo e Roberto, trabalham também o caçula Rogério, como operador de som, e Riva, na produção executiva.

Fregolente e Lícia Magna como pais de Nonô; Leila Diniz como a própria – reparem numa cena da novela “Anastácia, A Mulher Sem Destino”, em que Leila participava –; Darlene Glória (Suzy) como esposa do piloto de avião (Ary Fontoura) que, claro, passa tempo demais fora de casa; Adriana Prieto (Fátima), em papel que zomba um pouco da sua aura de mulher indecifrável e primaveril, no golpe aplicado em Nonô, que imaginava deflorar a pobre menina, mestra no 171. Além dessas gags, vemos o homossexual gente boa (Fernando Reski) avisando à dupla de caçadores sobre a chegada do marido que ameaça Toledo e a amante; o edifício número 200 da Rua Barata Ribeiro -- que se tornaria, com os anos, sinônimo de escracho e decadência, bem utilizado por gente como Mozael Silveira, outra cria da R.F.F --, além de uma bacanal envolvendo uma starlet, Nonô e Toledo.

Em suma, um "Rio Babilônia" ingênuo e sessentista, que aproveita-se da paisagística deslumbrante e das piadas colhidas por meio de um trabalho de campo fundamental: os realizadores observaram os verdadeiros paqueras -- como "André José Adler, Ronaldo Brasil, Norman Casari, Zé, Chico e Wilson", creditados no início do filme -- e gravaram depoimentos pelo bairro, em gravadores Nagra, que serviram de suporte à pré-produção.

Ao invés das referências a cocaína e à corrupção política, marcantes no filme de Neville de Almeida, "Os Paqueras" dialoga diretamente com matrizes italianas arquetípicas -- “Viva a vida doce, viva a doce vida!”, exclama Nonô, “Você já viu ‘A Doce Vida’?”, pergunta a menina, "Seis vezes", responde. Ou em características que fervilhavam o humor de botequim -- "Fessora é boa", rabiscado num desenho feito pelo rapaz que quer tentar um teste de sofá para convencer a professora a lhe dar um emprego.

Neste ritmo, “Os Paqueras” é uma espécie de ode à joie de vivre carioca, copacabanense em particular, que se não se perdeu ao longo destes últimos quase quarenta anos, arrefeceu um bocado nas transformações cotidianas da cidade. Poderíamos até mesmo traçar uma pequena filmografia que demonstrasse as feições do Rio de Janeiro ao sabor das décadas, passando por “Rio 40 Graus”; “Os Paqueras”; “Vai Trabalhar Vagabundo”; “Muito Prazer”, de David Neves; “Rio Babilônia”; finalizando com o réquiem sinistro de “Cidade de Deus”.

Igual panorama pode ser montado em relação a São Paulo, o que prova que o cinema sempre esteve próximo da realidade urbana brasileira. Cabe ao público, apenas, decodificá-lo com olhos livres, sem preconceitos ou deslizes de julgamento.

5 comentários:

Anônimo disse...

Oi Andréa, tudo bom ?
Eu nunca vi esse filme do Reginaldo, infelizmente. Ma acho que é tudo que você escreveu mesmo. Eu até gosto dele como diretor, embora tenha coisas que ele tropece. Eu não gosto de "Os Machões", mas tenho simpatia por "O Flagrante" e gosto muito de "Aguenta Coração", um filme dos anos 80, que é 100% anos 80, impressionante. "Barra Pesada", gostei muito quando vi, o Stephan dá um show a parte, como em "Marcelo Zona Sul". Mas preciso rever. A Irene, tmabém foi citada na imensa "Truffaut-Hitchcock" da Boca do Lixo que virou "Matheus Trunk Meet Eduardo Aguilar". Vi no blog do Carrard, que você se interessou e vou te dizer: temos três horas de material gravado, mas iremos marcar mais uma ou outra sessão. Não sabemos no que dará, mas é muito divertido. O Aguilar é uma pessoa gente boa. Depois dele, devo correr atrás do Conrado Sanchez, que é um diretor da Boca que ele trabalhou e gosta muito. A nossa entrevista era sobre a Boca, mas ficou um pouco extensa. Depois te mando por e-mail se te interessar, pq no blog será quase impossível de publicar, bjos, Matheus.

Anônimo disse...

Interessante seu paralelo com a pornochanchada, Andrea. Os indícios pequenos de pornochanchada em "Os Paqueras" realmente são perceptíveis. Mas classificá-lo como comédia urbana carioca é bem mais plausível.
Embora alguns incluam "Os Paqueras" como a primeira pornochanchada brasileira.
Acho divertidíssimo este filme.
Beijos e sigo na leitura!

Andrea Ormond disse...

Oi Matheus, quero muito ler a entrevista que vc fez com o Edu :) Pq depois de finalizada vc não edita algumas partes no Cinéfilos e guarda a maior parte do material para um livro? Beijos!

Oi Carlos, "Os Paqueras" é divertidíssimo mesmo :) Acho que o filme cresce um bocado em importância pelo cuidado de documentar os lugares e as andanças no Rio daquela época. Beijos!

Anônimo disse...

Pode ser sim Andréa, vou fazer assim...Bjos, Matheus.

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu acho que a pornochanchada,mesmo que involuntariamente,nasce aí.