terça-feira, julho 11, 2006

Crueldade Mortal


Maurício do Valle e Jofre Soares são nomes associados à história do Cinema Novo, ainda que os biotipos dos dois – e, conseqüentemente, os estereótipos que representaram na tela – sejam diferentes. Por coincidência, foram parceiros de trabalho em diversas ocasiões, dentre elas “Terra em Transe” (1966), o “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1968) e “A Hora e A Vez de Augusto Matraga” (1965).

Maurício era via de regra o opulento, beberrão, com um alcance vocal admirável, líder ou antagonista do líder, na espera de um momento final para o acerto de contas. Jofre incorporava o retirante nordestino, ou alguém fragilizado por circunstância, forte por natureza.

É assim que os dois também se apresentam em “Crueldade Mortal” (1976), produção executiva de Pedro Carlos Rovái, direção de Luiz Paulino dos Santos – roteirista deste e de “Barravento” (1962), primeiro longa de Glauber Rocha, quando Glauber era ainda um enfant terrible insurgente.

Baseado em fatos reais – 1970, bairro de Morro Agudo, Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense –, “Crueldade Mortal” é um filme completamente obscuro (não obstante ter ganho um prêmio em Gramado), que acompanha os momentos pré e pós-linchamento de Antônio Lopes da Silva (Jofre Soares), um senhor esclerosado que aterroriza o lugar com suas bobagens absolutamente irritantes e indolores.

“Eu quero voltar pra minha casa”, o idoso vai repetindo o bordão em cemitérios, rachas de futebol, rodas de macumba, casebres de pau a pique, somando a história de que aguarda a esposa e os filhos, moradores de Palmeira dos Índios, Alagoas – terra natal de Jofre, locação de sua estréia em Vidas Secas (1963).

Em Morro Agudo, Seu Antônio azucrina a paciência de Tranca-Rua (Maurício do Valle), motoqueiro respeitado, xerife às avessas e dono de um bando em que o melhor amigo, Dão (Haroldo Barbosa), nutre por ele um delírio evidentemente homossexual, obviamente reprimido. Este detalhe curioso e inteligente da narrativa – não se sabe se verídico ou não – revela um pouco da vida real que se esconde por detrás da superfície que os personagens gostam tanto de mostrar.

Outro exemplo é o da mocinha histérica, mal casada (Jurema, Marieta Severo), que não agüenta mais olhar para a cara do marido (Mário, Emmanuel Cavalcanti) e do pai (Seu Gustavo, Jaime Barcellos). Jurema comandará a blitzkrieg sobre Seu Antônio – que, por uma escolha infeliz, havia acabado de flagrá-la no meio do banho.

A favor dele, apenas o boa-praça Deco (Antonio Pitanga, o Firmino de “Barravento”), aspirante à carreira no futebol, e Arlete (Marlene França), filha da fanática religiosa (Josefina, Ilva Niño) por quem Seu Antônio é apaixonado.

Arlete namora Nozinho (Tonico Pereira) e sonham irem “para Copacabana”, dito numa inflexão que faz do bairro um lugar atemporal, refúgio de sonho, no qual provavelmente moram as “estrelas da televisão”. Arlete acaba saindo de Morro Azul, abandona a promessa de levar a irmã cega, mas a repercussão da fuga ficamos sem saber, na medida em que ela é resposta à violência e obsessão que acabaram de assolar o vilarejo.

“Crueldade Mortal” tem como singular e provável atrativo para ainda ser notado nos dias de hoje o estudo da psicologia de massa. A destruição de um algo/alguém (Antonio) por motivos profundamente diferentes, demonstrados como se fossem o mesmo: o de chacinar um ser nocivo que voyeurizava o banho da garota (Jurema). O velho deixa de ser o bobo da corte e se transforma num objeto essencial – quase sexual em virtude da libido, força inconsciente primitiva, que depositam na sua extinção.

Mário – um idiotizado – ataca Antônio por não conseguir conter Jurema, acesa pela masculinidade de Tranca-Rua, o mesmo que adora manter a fama de horroroso e agradar a Dão, assecla fascinado por se fascinar no amigo. A massa aos poucos vai aumentando e lentamente cada qual dá uma estocada, chute, cuspe ou soco qualquer no corpo amarrado a um poste.

Lael Rodrigues – a quem os jovens dos anos 80 se acostumaram a assistir, na trilogia de “Bete Balanço” (1984), “Rock Estrela” (1986) e “Rádio Pirata” (1987) – foi assistente de direção de Luiz Paulino, que contou com a trilha-sonora de Geraldo Azevedo, enxertada por Luiz Gonzaga, que Antonio cantarola desbragado, à moda de arrasta-pé.

O filme se revela cerebral, portanto, ao expor o resultado final que todos já sabiam que iria acontecer, misturado com pinceladas sobre o oculto individual e a combustão de um grupo que se sente à beira do auto-aniquilamento. Mas é claro, que para não se aniquilarem, voltam à fonte mais antiga e prazerosa, imputando que o inferno, como sempre, está nos outros.

8 comentários:

Nirton Venancio disse...

Andrea, tenho acompanhado sempre quando posso este seu blog maravilhoso! Tô no meio da produção de um filme e o tempo é sempre pouco pra tanta coisa.
Conheci o Luiz Paulino na casa do Severino Dadá, montador, no Rio de Janeiro. E conversamos muito sobre os filmes dele, a participação na concepção de "Barravento", e, principalmente "Crueldade mortal", que foi um filme que me impressionou bastante. Que bom você trazê-lo de volta para este "Encontro" aqui.
Abraços.

Anônimo disse...

Acho o Barravento um dos grandes filmes do Glauber, a altura de Deus e O Diabo, e isso se deve ao Luiz Paulino. Não vi esse filme e nem nada dele, mas acho sensacional você Andréa tê-lo trazido de volta.

Oi Andréa, publiquei CHICO BUARQUE CONTRA DOM & RAVEL no outro blog que tenho o Jovem Guarda Brega, www.jovemguardabrega.zip.net

Andrea Ormond disse...

Nirton, não tenho notícias recentes sobre o Luiz Paulino, vc o viu há pouco tempo? No "Crueldade Mortal" um fator que me chamou bastante a atenção foi o fato de todos andarem em rebanho, a questão da psicologia de massa, bem trabalhada por sinal :) Abraços.

Oi Matheus, li o texto no seu outro blog. Como sempre impactante, contrário ao oba oba, seguindo a proposta do seu trabalho. Ainda essa semana vou linká-lo aqui :) Parabéns!

Nirton Venancio disse...

Andrea, o Luiz Paulino é mestre numa comunidade da União Vegetal, no interior de Minas, não sei bem qual cidade. Quem sabe todos os contatos dele é o Severino Dadá, e também o filho dele (Dadá), o André Sampaio, que está fazendo um documentário sobre o Paulino. Querendo, passo-lhe o telefone deles.
Abraços.

MARIA HELENA disse...

GOSTARIA DE SABER COMO CONSEGUI O DVD
OU FITA DO FILME CRUELDADE MORTAL, NÃO SEI SE AQUI É O ESPAÇO CERTO PARA CONSEGUIR O FILME, MAIS VOU TENTAR, POR FAVOR ME AJUDE, DESDE JÁ AGRADEÇO.

Anônimo disse...

Esse é um excelente filme que nos mostra a realidde que acontece ás escuras em comunidades e locais afastados onde os moradores não se atrevem a falar o que vêem.

Jorge Luiz disse...

Por gentoileza, alguém poderia me informar se o Tema da Abertura do Filme "CRUELDADE MORTAL" cuja música intitulada "Mar Baiano em Noite de Gala" de Geraldo Azevedo foi gravada em VINIL na época (1976) ou foi lançada em algum promocional?. Parabéns ao "Luiz Paulino dos Santos" e a todos os que tomaram parte do filme. Assistí a muitos anos na TV e tenho o VHS; pena que não foi lançado em DVD!

ADEMAR AMANCIO disse...

Não vi o filme,ainda.