A persona de Marcelo – criação khouriana fundamental, cujo histórico vem sendo esmiuçado ao longo deste blog – está para “Amor Estranho Amor” (1982) como um vulto, um recorte que complementa a narrativa de Hugo – protagonista do filme. Hugo não é marco zero, um todo com princípio, meio e fim, nem mesmo seria retomado explicitamente, sob esta designação, em obras posteriores do diretor e roteirista Walter Hugo Khouri.
De qualquer modo, a começar pelo nome, há um controle auto-referencial em “Hugo”, impossível de dissociar-se de Marcelo – este sim, o alter-ego constante e mais conhecido do realizador. Um pode ser compreendido como prolongamento do outro, pois ambos abraçam os referenciais oníricos de Khouri, buscando o belo e a anima feminina – estampada, convém relembrarmos, em letras garrafais nas paredes do casarão de “As Deusas” (1972).
Em “Amor Estranho Amor” acompanhamos a visita de Hugo a um palacete quatrocentão – que em muito remete ao cenário de “As Feras”, incompleto até 1997 mas rodado parcialmente no ano de 1981, no mesmo período deste.
Através de dois momentos cronologicamente distintos e intercalados, o Hugo adulto (Walter Forster) projeta seu duplo infantil (Marcelo Ribeiro): o menino que um dia foi. Trazido do Sul pela avó materna, é largado em São Paulo, na entrada da casa. A seguir, vemos que Hugo era filho de Ana (Vera Fischer), prostituta preferencial da cáfila mantida por Laura (Íris Bruzzi), a serviço da família de um “nobre” político paulista (Tarcísio Meira).
O pequeno parágrafo acima lista um grupo de enredos que vale a pena conferirmos em detalhes. O primeiro deles refere-se à força da ambiência, do jogo de luzes entre passado e futuro, tendo Khouri construído no passado a substância para o resgate de um tempo e espaço idealizados. Quanto ao tempo, o final dos anos 30 – confira-se, a respeito, “Eros, o Deus do Amor”, além de, evidentemente, a própria biografia do diretor, nascido em 1929 e garoto durante o varguismo. Quanto ao espaço, a capital, São Paulo, berço de um cinema que poucas vezes excursionou a outras lugares – o episódio de “As Cariocas” (1966), rodado no Rio, é uma das raríssimas exceções.
Note-se, ainda, que à célula-mater do protagonista foi dado o nome de “Ana” – fixação que entremeia sua obra e designa personagens de grande relevância. Ana possui qualidades que dividem o secto do prostíbulo em dois grupos: o das meninas principais – formado por Ana e, posteriormente, por Tamara (Xuxa) – e o das coadjuvantes – dentre estas, Matilde Mastrangi.
Se o negócio comandado por Laura é rentável e baseado na beleza física, no comprometimento total à voracidade dos clientes, a chegada do menino acaba se tornando por um lado inaceitável – afinal, como explicar a presença de uma criança no prostíbulo? – e, por outro, fenomenal – possibilita a vendetta das mulheres. O menino é escolhido, submisso, engolido, e assim vão à forra diante da mãe desconsolada.
O pecado e a imoralidade contrapõem-se à quase-pureza do garoto, um púbere, que aos poucos ganha a dimensão do sexo, vendido aos montes nos quartos. É apresentado a ele por Mastrangi, que se aproxima lentamente, maçã em punho, e, desprezada, retornará mais tarde para a devida complementação.
Não suponha-se que o menino é angelical a ponto de sentir-se agredido ou coisa que o valha. Ele simplesmente preferiria uma vida ao lado da mãe – grita, chora, pede-a, mas é sempre afastado. E se a presença de um alguém alheio frusta o amor – o amor lato, amor filial –, Hugo enxerga a possibilidade de tê-lo em outras mulheres, na idade em que os hormônios fascinam, para muito além de qualquer possibilidade de racionalização do mundo.
Neste furacão, o garoto passeia pela casa. E como adulto, que tudo observa, caminha pelos corredores lembrando-se de cada detalhe, que será trazido às telas, aos olhos do público, na imagem do pequeno menino.
Curioso encontrar aqui uma outra ponte com “As Feras”. Nos dois filmes o recurso do flashback, da fuga ao passado, traz um homem maduro que padeceu de um evento estruturador de sua personalidade quando assediado por mulheres autoritárias. Hugo – em “Amor Estranho Amor” –, Paulo – em “As Feras” –, fogem à rubrica de “Marcelo”, mas preservam a angústia e a tentativa de reesquadrinharem suas vidas.
A Traditional Jazz Band – presença constante na obra de Khouri, ao lado da música de Rogério Duprat, primo do diretor – anima uma festa nos salões da casa. À banda sobrepõe-se um outro caractere recorrente em sua filmografia, a partir do final dos anos 70: o “Quinteto”, de Schubert, pontuando um momento crucial da trama. A música inebria, abre o terreno caudaloso em que mãe e filho se unem e concretizam o desejo que também ela sabia existir, temente ao delírio de retornar o menino ao útero e guardá-lo novamente dentro de si. Forster observa, os olhos marejados, não fala palavra.
As fugas edipianas estavam todas ali, expostas no audiovisual. Enxergar na película um remanchão pornô, em que tudo perde significância e torna-se algo comezinho, ao nível da venda de bananas na feira em dia de sol, é diminuir a experiência fomentada pelo autor.
O filme sofreu ataques, entrou para o anedotário nacional como a fita em que Xuxa, a Rainha dos Baixinhos – e estrela do inenarrável “Fuscão Preto” (1982) – atracava-se aos beijos e abraços com um garotinho. É necessário absorvermos a parte e o todo, não momentos isolados que conduzam a uma edição cretina, a uma visão deturpada de um dos melhores filmes do maior diretor de cinema brasileiro de todos os tempos.
“Amor Estranho Amor” é, portanto, não uma manchete sensacionalista, mas obra delicada de um incansável, do gênio-cineasta que sonhou um mundo criativo que parecia infindo. A então coadjuvante Xuxa passará, ou será lembrada apenas como fenômeno da ignorância das massas. Khouri, este, daqui a duzentos anos ainda nos curvaremos à sua influência.
De qualquer modo, a começar pelo nome, há um controle auto-referencial em “Hugo”, impossível de dissociar-se de Marcelo – este sim, o alter-ego constante e mais conhecido do realizador. Um pode ser compreendido como prolongamento do outro, pois ambos abraçam os referenciais oníricos de Khouri, buscando o belo e a anima feminina – estampada, convém relembrarmos, em letras garrafais nas paredes do casarão de “As Deusas” (1972).
Em “Amor Estranho Amor” acompanhamos a visita de Hugo a um palacete quatrocentão – que em muito remete ao cenário de “As Feras”, incompleto até 1997 mas rodado parcialmente no ano de 1981, no mesmo período deste.
Através de dois momentos cronologicamente distintos e intercalados, o Hugo adulto (Walter Forster) projeta seu duplo infantil (Marcelo Ribeiro): o menino que um dia foi. Trazido do Sul pela avó materna, é largado em São Paulo, na entrada da casa. A seguir, vemos que Hugo era filho de Ana (Vera Fischer), prostituta preferencial da cáfila mantida por Laura (Íris Bruzzi), a serviço da família de um “nobre” político paulista (Tarcísio Meira).
O pequeno parágrafo acima lista um grupo de enredos que vale a pena conferirmos em detalhes. O primeiro deles refere-se à força da ambiência, do jogo de luzes entre passado e futuro, tendo Khouri construído no passado a substância para o resgate de um tempo e espaço idealizados. Quanto ao tempo, o final dos anos 30 – confira-se, a respeito, “Eros, o Deus do Amor”, além de, evidentemente, a própria biografia do diretor, nascido em 1929 e garoto durante o varguismo. Quanto ao espaço, a capital, São Paulo, berço de um cinema que poucas vezes excursionou a outras lugares – o episódio de “As Cariocas” (1966), rodado no Rio, é uma das raríssimas exceções.
Note-se, ainda, que à célula-mater do protagonista foi dado o nome de “Ana” – fixação que entremeia sua obra e designa personagens de grande relevância. Ana possui qualidades que dividem o secto do prostíbulo em dois grupos: o das meninas principais – formado por Ana e, posteriormente, por Tamara (Xuxa) – e o das coadjuvantes – dentre estas, Matilde Mastrangi.
Se o negócio comandado por Laura é rentável e baseado na beleza física, no comprometimento total à voracidade dos clientes, a chegada do menino acaba se tornando por um lado inaceitável – afinal, como explicar a presença de uma criança no prostíbulo? – e, por outro, fenomenal – possibilita a vendetta das mulheres. O menino é escolhido, submisso, engolido, e assim vão à forra diante da mãe desconsolada.
O pecado e a imoralidade contrapõem-se à quase-pureza do garoto, um púbere, que aos poucos ganha a dimensão do sexo, vendido aos montes nos quartos. É apresentado a ele por Mastrangi, que se aproxima lentamente, maçã em punho, e, desprezada, retornará mais tarde para a devida complementação.
Não suponha-se que o menino é angelical a ponto de sentir-se agredido ou coisa que o valha. Ele simplesmente preferiria uma vida ao lado da mãe – grita, chora, pede-a, mas é sempre afastado. E se a presença de um alguém alheio frusta o amor – o amor lato, amor filial –, Hugo enxerga a possibilidade de tê-lo em outras mulheres, na idade em que os hormônios fascinam, para muito além de qualquer possibilidade de racionalização do mundo.
Neste furacão, o garoto passeia pela casa. E como adulto, que tudo observa, caminha pelos corredores lembrando-se de cada detalhe, que será trazido às telas, aos olhos do público, na imagem do pequeno menino.
Curioso encontrar aqui uma outra ponte com “As Feras”. Nos dois filmes o recurso do flashback, da fuga ao passado, traz um homem maduro que padeceu de um evento estruturador de sua personalidade quando assediado por mulheres autoritárias. Hugo – em “Amor Estranho Amor” –, Paulo – em “As Feras” –, fogem à rubrica de “Marcelo”, mas preservam a angústia e a tentativa de reesquadrinharem suas vidas.
A Traditional Jazz Band – presença constante na obra de Khouri, ao lado da música de Rogério Duprat, primo do diretor – anima uma festa nos salões da casa. À banda sobrepõe-se um outro caractere recorrente em sua filmografia, a partir do final dos anos 70: o “Quinteto”, de Schubert, pontuando um momento crucial da trama. A música inebria, abre o terreno caudaloso em que mãe e filho se unem e concretizam o desejo que também ela sabia existir, temente ao delírio de retornar o menino ao útero e guardá-lo novamente dentro de si. Forster observa, os olhos marejados, não fala palavra.
As fugas edipianas estavam todas ali, expostas no audiovisual. Enxergar na película um remanchão pornô, em que tudo perde significância e torna-se algo comezinho, ao nível da venda de bananas na feira em dia de sol, é diminuir a experiência fomentada pelo autor.
O filme sofreu ataques, entrou para o anedotário nacional como a fita em que Xuxa, a Rainha dos Baixinhos – e estrela do inenarrável “Fuscão Preto” (1982) – atracava-se aos beijos e abraços com um garotinho. É necessário absorvermos a parte e o todo, não momentos isolados que conduzam a uma edição cretina, a uma visão deturpada de um dos melhores filmes do maior diretor de cinema brasileiro de todos os tempos.
“Amor Estranho Amor” é, portanto, não uma manchete sensacionalista, mas obra delicada de um incansável, do gênio-cineasta que sonhou um mundo criativo que parecia infindo. A então coadjuvante Xuxa passará, ou será lembrada apenas como fenômeno da ignorância das massas. Khouri, este, daqui a duzentos anos ainda nos curvaremos à sua influência.
18 comentários:
putz,excelente seu texto,vou baixar esse filme já!
Lembrei mesmo do Palacete de "As Feras" qdo vi o começo deste filme! É o mesmo, será? Achei este um filme um tanto triste, mas sendo Khouri, vale a pena ver e rever!!
Adorei o último parágrafo, excelente :-) Disse tudo!!!
Quero parabenizá-la por mais essa pérola de sensibilidade, suas análises são incríveis e esse filme do Khouri, que muitos intitulam, infelizmente, como o "pornô que a Xuxa fez" é um belo trabalho de Khouri (mas o meu preferido ainda é 'Noite Vazia'). E também pela entrevista de Carlo Mossy, sua proposta foi inovadora, um documento fundamental para ser guardado. Abraços.
poxa, não vi ess efilme, mas acho que foi muito bacana vc dizer isso, pois as pessoas precisam saber mesmo as coisas , sem a situação estar envolta em sensacionalismo!
Com certeza é um de seus filmes onde a política está mais presente. O parágrafo final está perfeito, em especial a última frase. Abração!
Oi Dr. Lorax, espero que goste. Khouri nunca é demais :) Abraços!
Oi Carol, o filme tem uma atmosfera melancólica realmente, por conta dessa regressão que o personagem faz :) Um beijo.
Oi Fernando, o Brasil às vezes nos faz perder as esperanças com esses clichês, do tipo o "filme pornô da Xuxa". Mas, por outro lado, a arte me parece vencer tudo, aos poucos ela prevalece :) Obrigada, a idéia das entrevistas é justamente a de preservar nossa memória cinematográfica. Um abraço!
Oi Maitê, a luta é árdua, mas super recompensadora. "Amor Estranho Amor" não merece sensacionalismo, e sim uma análise séria. Beijos.
Oi Sérgio, o último parágrafo foi um desabafo, que bom vc ter gostado. Abraços!
Infelizmente, pelo motivo da "Rainha dos Baixinhos" ter MEDO do seu passado, ficamos privados(povo em geral)de assistir esse belo filme de Walter Hugo Khouri, ou no Canal Brasil, ou em alguma vídeo locadora, embora ainda existam raríssimas cópias em VHS que não foram "confiscadas" por Xuxa. Resta aos mais abastados, baixá-lo na net.
Ah! Parabéns Andrea, esse teu Blog é uma das melhores coisas vindas da internet nos últimos anos!!!
eu so queria entender uma coisa, pq um diretor inventou um filme no qual tem a necessidade de expor uma criança a tais cenas. Por favor se o vc puder me responder, qual foi a finalidade disso e com qual objetivo o diretor quiz fazer tais cenas me responda, por favor me responda....abrigado mesmo!!!
eu so queria entender uma coisa, pq um diretor inventou um filme no qual tem a necessidade de expor uma criança a tais cenas. Por favor se o vc puder me responder, qual foi a finalidade disso e com qual objetivo o diretor quiz fazer tais cenas me responda, por favor me responda....abrigado mesmo!!!
E aí Andréia jóia? Esse seu blog é cabuloso e seu texto é fenomenal. A maneira como vc colhe a essência dos filmes é sublime. Com relação a esse filme, confeço não telo visto mas a forma como ele foi reduzido apenas ao rótulo de "filme pornô da Xuxa", foi a raão da grande maioria das pessoas desconhecerem seu verdadeiro valor.
Depois desse comentário seu creio que terei de assisti-lo com um olhar apurado.
Abraço e parabéns pelo blog.
Achei perfeita sua análise sobre esse filme. De fato é uma obra delicada e bem produzida. Não vi pornografia ou pedofilia - o que atraiu a "ignorância das massas", mas sim um erotismo refinado e desconcertante calcado em nossos complexos edipianos. Aliás, Vera Fischer vale por 10 Xuxas nesse filme!
Este trabalho da xuxa foi o único em sua extensa carreira que tem um certo brilho artístico.
A qualidade da cópia que tenho de Amor estranho amor é de baixa qualidade, muito provavelmente foi ripada de VHS.
No começo a imagem está bem distorcida justamente é onde aparece a mansão tendo a cidade ao fundo.
Saberiam por acaso de dizer em que mansão foi filmado ?
Algumas pessoas ignorantes dizem que esse é o pornô da Xuxa, o que é uma idiotice. O filme não tem nada de pornô, mas claro que é um pouco erótico, mas não com esse intuito em primeiro plano e sim um belo filme que para ser entendido precisa ser acompanhado de outros filmes de Khouri.
Sou fã deste filme, tive a oportunidade de assistí-lo no lançamento no cinema, em 1981 se não me engano. O elenco de estrelas encheu as salas. Depois consegui uma cópia pirata de DVD extraído do video-cassete, e o revejo em casa mostrando a alguma visita, que sempre se surpreende.
Sua resenha faz jus a esse filme sensacional, de cunho erótico, psicológico, histórico e político. A burrice do brasileiro médio infelizmente reduziu seu alcance.
O MELHOR ATUAÇÃO DE XUXA MENEGHEL NO CINEMA. PRIMOROSA TRILHA SONORA.
Revi o filme hoje, aquele menino não foi ''exposto'' coisa nenhuma,o ator simplesmente adorou tudo.A resenha crítica é ótima,como sempre.
Os cantores da velha-guarda fazendo fundo musical é muito bom.
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