“Palácio dos anjos”, de Walter Hugo Khouri, é um encantamento. Procuro cada detalhe, como os expedicionários franceses, que varriam a superfície do deserto e encontravam a glória. O diferencial, porém, está em que nada existe de desértico ou inanimado na obra. Ela é arte, preciosa, de magnitude que devemos sempre rever e escavucar um pouco mais, encontrando detalhes a cada nova leitura, a cada novo quilômetro sob a superfície, no intuito de ter decifrada a esfinge.
“O filme que estremeceu o Festival de Cannes de 1970”, diziam as capas dos vhs da Globo Filmes, lançados nos anos 80. Quando o assisti pela primeira vez, numa mostra da Cinemateca do MAM-RJ -- e o ambiente lotado de almas do passado, na sala mítica e atemporal --, pensei comigo mesma: “preciso rever.” Revi muitas vezes.
Geneviève Grad é a moça de 22 anos de idade, secretária de um banco, assediada pelas constantes investidas de Ricardo (Luc Merenda). Divide um apartamento com uma amiga, Maria (Rossana Ghessa). Grad é autoritária, dominante, de traços físicos absurdamente perfeitos, das coisas mais bonitas a atingirem as telas de cinema.
Quando falei acima de um “encantamento”, muito dele se deve ao fato de a personagem de Grad mesclar esse ideal de beleza helênica a uma postura forte, prepotente, segura. A inteligência e erudição. Esta é Bárbara. Administradora de um negócio de luxo, concebido entre as paredes do apartamento residencial, também dividido com a terceira integrante da turba, Ana Lúcia (Adriana Prieto).
Vamos colocar desta forma os arquétipos das três meninas de “Palácio”: Grad, fria -- viril --; Ghessa tola -- renitente --; Prieto dinâmica -- empreendedora. São prostitutas, recebem visitas preferenciais, subvertem o conselho de uma agenciadora (Joana Fomm) que pretendia fazer delas meros “objetos em exposição” na casa que dirige.
Grad pensa, acertadamente, que poderia ser rufiã e meretriz, usando o fichário de informações confidenciais juntadas pelo banco em que trabalhava com as amigas. Estas roubam-no e assim conseguem o crème de la crème nacional. Os homens podres de ricos, cuidadosamente vigiados nos arquivos, com todos os dados possíveis -- financeiros e de atividades em geral. As três, então, armam a meta de em um ano estarem ricas para largarem tudo, viajarem de navio, viverem de renda.
No meio tempo é visível que existe um clima de côrte -- explícita em algumas cenas, implícita em outras -- entre Grad, Prieto e Ghesa. Mas côrte talvez não seja palavra. Há, na verdade, fuga, caça e domínio. Fuga, na personagem de Ghessa -- mocinha que em primeiro momento chegou a defender a tese de ter saído virgem da cidade de origem, para receber, em seguida, a gargalhada triunfal, das outras. Há caça por parte de Prieto -- ela é o animal domesticado por Grad, que lhe estabelece completo domínio. Domínio literal, convém dizer, em pelo menos uma cena, em que agarra os braços de Prieto, deita-a, beija-a, e recebe o sorriso pleno da outra.
Entretanto, esse domínio de Grad não se restringe às meninas, sendo exercido, igualmente, sobre os maridos infiéis que entopem o apartamento. Mais: chega a envolver-se com a esposa de um deles (Norma Bengell), que sente por ela um amor cego, doentio, pensando que assim pudesse reviver um relacionamento do passado. Não contava ela com a crueldade de Bárbara, que impede qualquer via de mão dupla. Bárbara é livre, como as moças que iluminam os quadros de Gustav Klimt -- um deles, “O Beijo”, mostrado diversas vezes pelas lentes de Khouri. Bengell é abandonada, entendendo o quanto aquele território é infrutífero, o corpo de uma personagem absolutamente gananciosa, que não conhece fronteiras.
Voltando ao aspecto icônico em “Palácio dos Anjos” -- citado na obra de Klimt --, lembro-me ainda da sensação de arrebatamento que senti desde as primeiras imagens na tela. É bem sabido que Khouri preocupava-se com a direção de arte, cercando-se de objetos meticulosamente dipostos em cena. Gravuras, esculturas, quadros -- Magritte era recorrente. No início de “Palácio dos Anjos”, vemos uma sucessão de rostos femininos, pintados por Sonia Grassman, tendo ao fundo a música de Rogério Duprat, no mais bem acabado casamento de todas as aberturas dos filmes de Khouri, creio eu. Começa ali uma sessão de transe, que encerra-se 96 minutos depois, com a impressão de ter-se visto algo único.
“Palácio dos Anjos” tem uma detalhe curioso. O produtor é “William Khouri”, o cameraman “Rupert Khouri”. A princípio, parece um feudo cinematográfico, uma obra gerada em família. Mas se William era irmão de Khouri, quem seria Rupert? A resposta é saborosa.
Assim como o “Alfred Stin” de Carlos Reinchenbach -- nome criado pelo diretor para esconder os trabalhos de fotografia que realizava em determinados filmes e considerava ruins --; “Rupert Khouri” também é uma criação, nunca existiu. Era o próprio Walter Hugo Khouri, na tentativa de iludir o espectador, levando-o a crer que o diretor e roteirista dividia os louros com mais alguém.
Como vêem, este realizador brasileiro, um prestidigitador das imagens em movimento, construiu uma obra com muitos sulcos, muitos ruas, muitas obsessões e desejos. Triste constatar que pessoas deste tipo um dia fecham os olhos e adormecem para sempre. A ele dizemos, “boa noite, doce príncipe”. E o resto é silêncio.
“O filme que estremeceu o Festival de Cannes de 1970”, diziam as capas dos vhs da Globo Filmes, lançados nos anos 80. Quando o assisti pela primeira vez, numa mostra da Cinemateca do MAM-RJ -- e o ambiente lotado de almas do passado, na sala mítica e atemporal --, pensei comigo mesma: “preciso rever.” Revi muitas vezes.
Geneviève Grad é a moça de 22 anos de idade, secretária de um banco, assediada pelas constantes investidas de Ricardo (Luc Merenda). Divide um apartamento com uma amiga, Maria (Rossana Ghessa). Grad é autoritária, dominante, de traços físicos absurdamente perfeitos, das coisas mais bonitas a atingirem as telas de cinema.
Quando falei acima de um “encantamento”, muito dele se deve ao fato de a personagem de Grad mesclar esse ideal de beleza helênica a uma postura forte, prepotente, segura. A inteligência e erudição. Esta é Bárbara. Administradora de um negócio de luxo, concebido entre as paredes do apartamento residencial, também dividido com a terceira integrante da turba, Ana Lúcia (Adriana Prieto).
Vamos colocar desta forma os arquétipos das três meninas de “Palácio”: Grad, fria -- viril --; Ghessa tola -- renitente --; Prieto dinâmica -- empreendedora. São prostitutas, recebem visitas preferenciais, subvertem o conselho de uma agenciadora (Joana Fomm) que pretendia fazer delas meros “objetos em exposição” na casa que dirige.
Grad pensa, acertadamente, que poderia ser rufiã e meretriz, usando o fichário de informações confidenciais juntadas pelo banco em que trabalhava com as amigas. Estas roubam-no e assim conseguem o crème de la crème nacional. Os homens podres de ricos, cuidadosamente vigiados nos arquivos, com todos os dados possíveis -- financeiros e de atividades em geral. As três, então, armam a meta de em um ano estarem ricas para largarem tudo, viajarem de navio, viverem de renda.
No meio tempo é visível que existe um clima de côrte -- explícita em algumas cenas, implícita em outras -- entre Grad, Prieto e Ghesa. Mas côrte talvez não seja palavra. Há, na verdade, fuga, caça e domínio. Fuga, na personagem de Ghessa -- mocinha que em primeiro momento chegou a defender a tese de ter saído virgem da cidade de origem, para receber, em seguida, a gargalhada triunfal, das outras. Há caça por parte de Prieto -- ela é o animal domesticado por Grad, que lhe estabelece completo domínio. Domínio literal, convém dizer, em pelo menos uma cena, em que agarra os braços de Prieto, deita-a, beija-a, e recebe o sorriso pleno da outra.
Entretanto, esse domínio de Grad não se restringe às meninas, sendo exercido, igualmente, sobre os maridos infiéis que entopem o apartamento. Mais: chega a envolver-se com a esposa de um deles (Norma Bengell), que sente por ela um amor cego, doentio, pensando que assim pudesse reviver um relacionamento do passado. Não contava ela com a crueldade de Bárbara, que impede qualquer via de mão dupla. Bárbara é livre, como as moças que iluminam os quadros de Gustav Klimt -- um deles, “O Beijo”, mostrado diversas vezes pelas lentes de Khouri. Bengell é abandonada, entendendo o quanto aquele território é infrutífero, o corpo de uma personagem absolutamente gananciosa, que não conhece fronteiras.
Voltando ao aspecto icônico em “Palácio dos Anjos” -- citado na obra de Klimt --, lembro-me ainda da sensação de arrebatamento que senti desde as primeiras imagens na tela. É bem sabido que Khouri preocupava-se com a direção de arte, cercando-se de objetos meticulosamente dipostos em cena. Gravuras, esculturas, quadros -- Magritte era recorrente. No início de “Palácio dos Anjos”, vemos uma sucessão de rostos femininos, pintados por Sonia Grassman, tendo ao fundo a música de Rogério Duprat, no mais bem acabado casamento de todas as aberturas dos filmes de Khouri, creio eu. Começa ali uma sessão de transe, que encerra-se 96 minutos depois, com a impressão de ter-se visto algo único.
“Palácio dos Anjos” tem uma detalhe curioso. O produtor é “William Khouri”, o cameraman “Rupert Khouri”. A princípio, parece um feudo cinematográfico, uma obra gerada em família. Mas se William era irmão de Khouri, quem seria Rupert? A resposta é saborosa.
Assim como o “Alfred Stin” de Carlos Reinchenbach -- nome criado pelo diretor para esconder os trabalhos de fotografia que realizava em determinados filmes e considerava ruins --; “Rupert Khouri” também é uma criação, nunca existiu. Era o próprio Walter Hugo Khouri, na tentativa de iludir o espectador, levando-o a crer que o diretor e roteirista dividia os louros com mais alguém.
Como vêem, este realizador brasileiro, um prestidigitador das imagens em movimento, construiu uma obra com muitos sulcos, muitos ruas, muitas obsessões e desejos. Triste constatar que pessoas deste tipo um dia fecham os olhos e adormecem para sempre. A ele dizemos, “boa noite, doce príncipe”. E o resto é silêncio.
7 comentários:
Pelo visto e nem preciso dizer é um filme delicioso e um dos melhores de Khouri, ansiosíssima para conferir, gostei muito da descrição em detalhes das atrizes e seus personagens. Um elenco nota mil em um filme maravilhoso. Tem todo aquele clima que me faz ainda mais amar este grande cineasta que foi Walter Hugo Khouri! Nem preciso dizer que sua resenha está nota mil, lendo foi como se o filme estivesse passando em minha mente!
Beijos
Esse é o meu Khouri predileto!! São tantas coisas, q. realmente, é muito difícil falar de tudo q. está nele, mas vc. como sp., mandou super bem!!! Qdo falará sobre "As Filhas do Fogo"?????
carol, vc vai amar, tenho certeza, esse filme é uma maravilha ;) Não dá para saber o que é melhor, a perfeição estética ou o roteiro impecável.
oi eduardo, esse tb é meu khouri preferido :) Vou dar um tempo de khouri agora por aqui e abordar outros diretores com o mesmo cuidado, mas com certeza uma hora "As Filhas do Fogo" entra rs
EU ERA ÚM GRANDE FÃ DE ADRIANA PRIETO. EU IA AO CINEMA POR CAUSA DELA. UM DIA FUI ASSISTIR EM BELO HORIZONTE, NO CINE ACAIACA, O FILME "PALACIO DOS ANJOS" E NÃO APAGO DE MINHAS RETINAS, HOJE CANSADAS, A CENA EM QUE ADRIANA (ESPERO QUE EU ESTEJA CERTO, DIANTE DE MINHA IDADE JÁ AVANÇADA) VAI CORTAR UM QUADRO DE PINTURA DE ALGUM ARTISTA FAMOSO (KHOURY SEMPRE FOI EXISTENCIALISTA COM MARCAS BURGUESAS).
ADRIANA ESTAVA LINDA E ALI EU DECIDI QUE SERIA, CASO CONSEGUISSE, UM PSICÓLOGO EXISTENCIALISTA (SE BEM QUE O EXISTENCIALISMO VINHA INTELECTUALMENTE DE KHOURY).
ERA ADRIANA A "CARA" (CLOSE UP) DO EXISTENCIALISMO, UMA BURGUESA QUE RETORNAVA À ALMA DO POVO E NELE SE MISTURAVA DE MODO HÍBRIDO, NUMA ESPÉCIA DE SEGUNDO SARTRE E DECIDINDO UM DEFINITIVO COMPROMISSO COM AS MASSAS (ELA PODIA, POIS ERA LINDISSÍMA E ANGELICAL).
DEPOIS A VI NUMA TELENOVEA, NÃO ME LEMBRO MAIS O NOME (AVHO QUE ERA NA TV TUPI), E DISSE À MINHA MÃE DE MODO ESPETACULAR " - ESSA É A ESTRELA DE CINEMA QUE MAIS AMO".
ELA (MAMÃE) OLHOU PARA A ATRIZ, OLHOU PARA MIM E VIROU DE COSTAS. ELA ERA LINDISSÍMA!
- ONDE VOCE VAI MÃE? INGENUAMENTE INTERROGUEI.
- EU ES-TA-FA-DA - REPETIU UM TRECHO DE UMA CONTO DE CLARICE LISPECTOR, COM UM TOM ESNOBE, MAS LEVANDO A SÉRIO!
NUM INSIGHT DESCOBRI ESSE AMOR POR ADRIANA E PELAS ESTRELAS DE CINEMA E DA TV! EU TINHA UMA ESTRELA DENTRO DE CASA! TÃO BURGUESA E QUE ÍA GRADUALMENTE SE INTEGRANDO AO POVO E NELE SE MISTURANDO COMPONDO GENEROSAMENTE A MASSA.
DEPOIS DEFENDI MINHA TESE DE DOUTORADO EM PSICOLOGIA NO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, E DEDIQUEI-A A ADRIANA PRIETO E À MINHA MÃE.
ESTRELAS FAZEM FALTA NA VIDA DE TODOS, ESPECIALMENTE DOS HOMENS, LOUCOS POR FICÇÃO (DE ESCAPAR DE SUA DOR IMPOTENTE)
Andréa, boa noite.
Ontem 23/09/2009, no canal Brasil, foi exibido não este Palácio dos Anjos - que assisti na época do lançamento - mas o Palácio de Vênus, do Ody Fraga. Procurei no E.E. a análise desse filme e como nada achei, penso que você poderia dar uma opinião. Para mim, as mesmas taras familiares que em texto do Nelson Rodrigues teriam leitura intelectual e até sofisticada, como são apresentadas por e à Ody Fraga, são totalmente extravagantes e até escatológicas. Valeu o aspecto plástico do filme, bem realizado, com ótima trilha sonora e a Helena Ramos - sempre ela, fantástica e linda - em cena hilariante com um corola da TFP.
É isso. Boa noite e viele danke.
http://f.marchini.blog.uol.com.br/
Filme lindo; uma apreciação perfeita - que toca nossos sentimentos mais profundos; nos provoca e evoca memórias. Não me canso de elogiar - o filme e o texto de Andrea. Narih Lenip
SEMPRE GOSTEI DOS FILMES DE WALTER HUGO KHOURI, PORÉM O QUE ME LEVOU ATÉ ELES FOI SEM DÚVIDA O FATO DE ENTENDER À ANÁLISE DO DESEJO MASCULINO, ENCRAVADA NO FILME VERTIGO, EUA 1958 ALFRED HITCHCOCK. ASSIM COMEÇEI A ADMIRAR, FILMES COMO, MULHER OBJETO, O FILÓSO - FILME ALEMÃO, INIMIGOS UMA HISTÓRIA DE AMOR, TBÉM ESTRANGEIRO, LA FEMME DA COTÈ, A BELLE DEJOUR, PERDAS E DANOS (DAMAGE), CLOSER - PERTO DEMAIS (FILME MODERNO), ESPOSA AMANTE - MOGLIAMANTE DE 1977 E MALIZIA DE 1973, AMBOS COM LAURA ANTONELLI (FILMES ITALIANO), BELEZA AMERICA ENTRE OUTROS.
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