Entrevisto João Carlos Rodrigues e aparece o outro João, o do Rio, a quem damos um alô. Paulo Barreto/João do Rio não se materializa em carne e osso, nem eu sou testemunha de um circo místico. Acontece que o imortal da ABL é parte integrante do universo de Rodrigues: biógrafo, pesquisador e crítico de cinema.
Filho de militantes do Partido Comunista, João Carlos bebeu o licor de todo flâneur, em todo bulevar. Conheceu Antonio Moniz Vianna e José Celso Martinez Correa. Ouviu “Lucy In The Sky With Diamonds” em um elevador do FBI. Participou do lançamento de “A Dama do Lotação”, na Embrafilme.
Pelo final dos 70, entra para o “Lampião da Esquina”: o delicioso almanaque de Aguinaldo Silva, João Silvério Trevisan e outros bambas. Como não era bobo nem nada, aproveitou o gosto da Lapa, efervescente até os céus, no bas fond habitado por Laura de Vison e Hélio Oiticica.
Ao assinar o contrato de um livro, João Carlos volta ao escritório da Embra e espia, da janela, o cadáver de Mariel Mariscott. Riscado de balas e sangrando, no meio da rua, de frente ao prédio. Também roteirista, escreve “Rio Babilônia”, ao lado de Ezequiel Neves e Neville de Almeida. Nascia o clássico da minha e de várias gerações, curtido nas infinitas reprises da televisão.
Primeiro pesquisador e crítico a ser entrevistado no “Estranho Encontro”, João Carlos fala. Sente-se à vontade nos prazeres da leitura, das artes e no arrepio ao autoritarismo. Concorde-se ou não com ele, João Carlos Rodrigues é um indivíduo na massa disforme das coletividades. Politicamente incorreto, se precisar.
ESTRANHO ENCONTRO – João Carlos, o João do Rio, seu biografado, nasceu na antiga Freguesia do Santana. Rio de Janeiro, 1881. Você, que também é carioca, nasceu em que parte da cidade?
JCR – Nasci na Casa de Saúde Santa Lúcia, bairro de Botafogo, em 1949. Minha família morava na [rua] Barata Ribeiro, em Copacabana, perto da esquina da [rua] Santa Clara, em uma casa que não existe mais. Toda a família era de membros do Partido Comunista, àquela altura de novo na ilegalidade.
EE – Então eram contemporâneos do Agildo Barata, pai do Agildo Ribeiro.
JCR – Meu pai saiu do partido em 56, depois da invasão da Hungria, no “racha dos intelectuais”, chefiado pelo Agildo Barata. Participavam o Osvaldo Peralva, o Paulo Mercadante, o Antonio Paim. Em suma: um grupo de intelectuais que achou que o partido estava se metendo demais em muitas coisas. Sou o filho mais velho. Na verdade, o terceiro, porque outros dois nasceram mortos. Além de mim, outros três, vivos. Tirando meu pai, todos do lado dele foram diplomatas e as mulheres casaram-se com diplomatas. Meu pai, Newton Rodrigues, foi diretor da revista “Senhor”, do “Correio da Manhã”, colunista político, muitos anos na “Folha”. Não sei por quê, sempre tive uma ligação maior com o lado paterno e também com as tias maternas. Para você ter uma ideia, são sessenta primos-irmãos. Agora não mais, porque alguns morreram. Mas veja a brincadeira: de cada lado, uns trinta. Cada avó pariu mais de dez filhos. Meu lado materno é bem diferente, são pessoas mais lúdicas, a atriz Gracinda Freire era uma das minhas tias. Também mais práticos, mais de bem com a vida.
EE – Imagino que era difícil manter uma individualidade, no meio deles todos.
JCR – Dificílimo, mas acabei mantendo. É preciso ter um quarto, com uma boa chave, e você mantém [risos] Ninguém usa sua roupa, ninguém mexe com as suas coisas. Consegui manter.
EE – O que você lembra da infância, nessa época? Os aromas, os lugares...
JCR – Lembro do cheiro da maresia. A Avenida Atlântica não era duplicada. Houve uma grande ressaca e descobriu-se que por baixo da areia havia outro calçadão. Hoje em dia deve estar no meio do mar, sei lá onde, porque ampliaram tanto. Também no Leme, aonde depois nós fomos morar, me lembro da [Cantina] Fiorentina. Do cinema Danúbio, o famoso cinema Danúbio. Funcionava no prédio do Bar Alpino, um bar alemão, tipo o Zeppelin, digamos. O Danúbio era um cinema poeira de bairro, com programa duplo, e ali fiz a minha vida de cinéfilo.
EE – E os colégios, você estudou aonde?
JCR – Primeiro no São Fernando, na rua Marquês de Olinda. Nesse colégio estudaram também o Luiz Carlos Lacerda, vulgo “Bigode”, e o Ivan Cardoso. Depois, o Colégio Pedro II. Cheguei a entrar na faculdade de História do Pedro II, passei acho que em primeiro ou segundo lugar, e parei. Por que parei? Ganhava mais estando fora. Comecei na parte técnica de teatro, na iluminação, meio como auxiliar. O meu primeiro salário veio da peça “Roda Viva”, do José Celso [Martinez Corrêa]. Fazia Teatro Jovem também, então eu recebia um dinheiro e a vida me parecia mais interessante fora da faculdade do que dentro. No primário, a convivência foi mais ou menos tranquila. Já no Pedro II, acho que poderia entrar com onze anos e entrei um pouquinho antes. Por volta de 1960, por aí. Sofri bullying no Pedro II, mas no primário, não. No primário estava numa boa. Aconteceu uma coisa interessante: no São Fernando davam aulas de religião e os meus pais eram comunistas, já quase ex-comunistas.
EE – Sua mãe também?
JCR – Minha mãe é que levou a família do meu pai. Depois foram envolvidos em um escândalo em 1952, denunciados pelo Carlos Lacerda como espiões soviéticos. Seis pessoas acabaram expulsas do Itamaraty: Antonio Houaiss, João Cabral de Melo Neto e os outros todos eram meus parentes [risos] Chegaram a voltar por ordem do STF, mas em 64 alguns foram de novos perseguidos e cassados. Havia essa maldição. Pois bem, no Colégio São Fernando meus pais proibiram as aulas de religião para mim e lembro que a professora não tinha nenhuma didática, algo que na época nem existia. Dona Esterzinha, o nome. Uma mulher com voz de maritaca. Sei que ela entrou na sala e gritou: “Que saiam os hereges!” E eu, com oito anos, ficava no recreio com outro garoto, judeu...
EE – … Bem, temos aí o comunista e o judeu. Faltou o português, para completar a piada... [risos]
JCR – [risos] E havia um terceiro, talvez protestante. Ali eu já comecei a me achar diferente.
EE – Foram dar a ideia...
JCR – Já que me acharam, então vamos ser... [risos] Eu era bom aluno. Não era caxias, mas bom aluno. No Pedro II, passei em uma ótima colocação, mas repeti o primeiro ano. Entrei antes do tempo, me sentia em outro mundo. Cinco mil alunos, todas as raças, classes, me assustou um pouco. Era uma loucura. O bullying não acontecia apenas comigo. Gritavam, vaiavam. Hoje em dia me admiro de ter tido a cabeça fria. Não foi mole, mas também não cedi. Não chorava, nem arrancava os cabelos. Fiquei na minha, impávido, fingindo que não era comigo.
EE – Chegava a comentar em casa?
JCR – Não. Nunca dei muita chance, muita intimidade. Basta ser família, não precisa de intimidade [risos] Acho que o bullying tem muito a ver com a atração sexual de quem pratica. Reprime e passa a agredir. É aquela coisa do Freud, quando “A” fala de “B”, você aprende muito mais sobre o “A” do que sobre o “B”. Quando fazem, se mostram mais do que a vítima do bullying. Não foi mole, mas sobrevivi.
EE – O teatro também era uma válvula de escape.
JCR – E lá por volta de 1966 ou 67 fiz um curso de crítica, no Museu de Arte Moderna, com o Ronald Monteiro. Um bom crítico que, melhor do que crítico, era ótimo professor. O Ronald Monteiro me disciplinou. Ensinou a fazer crítica, a não ser muito pessoal mas também não deixar de ser porque, afinal, é você quem está escrevendo. Li o livro “Deus e o Diabo na Terra do Sol” antes de ver o filme, que era proibido para menores. Fui com a minha mãe, numa reprise da reprise, no cinema Alvorada, no final do Posto 6. Era muito garoto, tivemos que subornar o porteiro para eu poder entrar [risos]
EE – [risos]
JCR – Meu pai, que era diretor do “Correio da Manhã”, me levou para falar com o Moniz Vianna, o crítico principal. Eu não quis. Na conversa, o Moniz Vianna mostrou que não gostava de Glauber Rocha, de Cinema Novo. Disse uma frase que nunca esqueci e pode parecer da Idade da Pedra: a língua portuguesa talvez não se adaptasse bem ao cinema. Eu, com quinze anos, achei aquilo esquisito, pulei fora. Como disse antes, trabalhei no “Roda Viva”, também no Teatro Jovem. Chegou 68, participei de tudo aquilo, de todas as passeatas. Uma hora acabou, veio o desbunde. Eu era bom no desbunde. Sempre achei cocaína uma caretice, por incrível que pareça. Já maconha acho bom, para pensar. Apareceram os LSDs puros, que hoje não existem mais e eu não tomaria. Quando tomei, meus amigos iam para Londres, trocavam, faziam sucesso em Ipanema. Eu morava em uma casa, o quarto em cima de uma garagem. Até o Living Theatre andou por lá, era uma casa animada.
EE – O Living Theatre na sua casa?
JCR – Pois é, eles viajaram com o [Teatro] Oficina para São Paulo, brigaram e vieram para o Rio. Moravam no Jardim de Alah e eu, na [rua] Aníbal de Mendonça. Acho que por causa do Flávio Império, não sei, mas eles iam à minha casa. E eram muito loucos. Entravam, conversavam com meu pai, que estava sem trabalhar por causa do AI-5. Perto da casa da gente também morava a Zuzu Angel. Então o lado guerrilheiro rondava próximo.
EE – Você participou efetivamente da guerrilha?
JCR – Não, sempre fui contra. Nesse ponto, embora eu tenha nascido no Partidão e seja contra o Partidão, acho que o leninismo é uma coisa de direita. Não o marxismo, mas o leninismo. Em algumas coisas, o Partido tinha razão: foram contra a luta armada e sofreram a repressão como se tivessem sido a favor. Evidentemente, se você vai lutar contra um inimigo muito maior, está destinado a fracassar, a perder. Participei de assembleias, fui muito ligado às pessoas do Colégio de Aplicação. Alguns ficaram famosos, como o Franklin Martins e o Ricardo Vilas, trocado por um embaixador. Outro, da Arquitetura, morreu no Araguaia, o Guilherme Lund. Lembro que votei contra a luta armada mas, engraçado, nunca me discriminaram. Eram filhos de classe média, até alta, e arriscaram a vida por um ideal, digamos, furado. Agiram com toda dignidade, com toda seriedade, merecem respeito enquanto pessoas, embora eu ache que a coisa estava errada.
EE – Mas você não via sectarismo? Um cair do viaduto em nome do pai maior...
JCR – Completamente. Eram burgueses, de certa maneira, e acho que na verdade a briga era contra os pais, transferida para o resto. No lado dos costumes, poucos eram abertos, a maioria não era. O Partido Comunista era muito conservador. Meu pai dizia que o PCB era vitoriano. Na Rússia eram vitorianos, aqui tentavam ser. Acontece que a extrema esquerda, depois do desbunde, recebeu as influências do Timothy Leary e do Jean Genet: as minhas influências. Timothy Leary e Jean Genet fizeram a minha cabeça politicamente, em uma dimensão muito maior. Também acho que a guerrilha se ferrou por não conseguir nenhum apoio da sociedade, em nenhum canto. Existe um livro do José Carlos de Oliveira, cronista, boêmio, chamado “Um Novo Animal na Floresta”. Adoro esse livro e gostaria que o Saraceni tivesse filmado. Na história, os boêmios, que nem eram a favor da luta armada, davam guarida para o guerrilheiro. Nem o próprio partido deu guarida, na hora do pega pra capar. Tive contato com as pessoas e havia a confiança de me contarem coisas. Se tivesse contado para alguém, nem sei o que poderia ter acontecido. Hoje em dia ainda tenho as divergências com eles, mas existe um respeito que considero legal.
EE – Particularmente, acho muito mais complexo do que o pegar em armas. Como o próprio José Carlos de Oliveira, que contava no livro sobre ir e voltar do Antonio's, paranoico, com medo de ser perseguido...
JCR – Criança aprende desde cedo o que é mesa, cadeira, essas coisas. O primeiro objeto diferente que eu, com uns seis anos de idade, entrei em um lugar e pensei “o que é isso?”, foi uma impressora. Estava na garagem aonde se imprimia clandestinamente “A Voz Operária”, do Partido, na rua Barata Ribeiro. Para você ver que aconteceu muito perto de mim. Não segui porque não quis, superei. Sempre digo que sou um baby boomer, parte de um grupo de pessoas que apareceu naquela época e, agora, só daqui a cem anos. Não que sejam melhores nem piores, elas foram diferentes. Ali a caixinha de Pandora se abriu, na Califórnia, provavelmente no final dos anos 50, e ficou aberta até os anos 70. Tudo que é bicho saiu e ainda tem uns soltos por aí. Para botar dentro da caixa de novo, demora. Acho até impossível [risos]...
EE – [risos] E Nova Iorque te deu uma outra demão nisso tudo?
JCR – Deu, totalmente. Viajei para Nova Iorque na maluquice, queria sair daqui, estava com vinte e um anos. Quem havia se mudado era o Fabiano Canosa, programador de cinema, da geração Paissandu. Eu conhecia o Fabiano dos bares de teatro, embora ele não fosse de teatro, andava no meio. Ele se mudou para Nova Iorque, me escreveu uma carta dizendo “quando aparecer, venha aqui, fique aqui e tal”. Bem, resolvi ir. Só que não avisei nada, nem fui direto para a casa dele. Apenas umas semanas, depois San Francisco durante um ano, aí voltei pra casa dele, mais um ano...
EE – Você escolheu a hora certa para conhecer Nova Iorque, por sinal. 71, 72...
JCR – Ficamos eu, o Fabiano e o Nildo Parente. Antes de eu chegar moravam o Fabiano, o Glauber Rocha e o Naná Vasconcelos. Quando saí, entrou o Kenneth Anger. Veja que apartamento era esse, que existe até hoje, na Rua 99 West. No início, eu não tinha emprego em Nova Iorque. Arrumei um, do tipo subgerente de cinema. Lá presenciei um assalto a mão armada, fui testemunhar no FBI, no elevador tocava “Lucy In The Sky With Diamonds”. Via filmes. Já gostava, conhecia razoavelmente, mas passei a conhecer de um modo aprofundado. Assisti ao “F For Fake” do Orson Welles, na primeira versão: uma montagem diferente, com nada filmado de novo, mas montado em outra ordem, o “About Fake”. Passaram às nove horas da manhã para algum distribuidor e nós tínhamos acesso. Quando voltei ao Brasil, comecei a escrever em um jornal desses marginais, que infelizmente é difícil de achar.
EE – Você começa a escrever profissionalmente. Qual o nome do jornal?
JCR – “Crítica”. Deve ter sido em 74, 75. Os exemplares estão no Arquivo da Cidade, na coleção chamada “Imprensa Alternativa”. Só tem lá. Merece ser pesquisado. Fui a primeira pessoa a falar de Kenneth Anger no Brasil, de Fassbinder, Fred Wiseman, de não sei o quê. Eu tinha pleno domínio, era uma página. Nesse jornal também escrevia de vez em quando o Orlando Senna e o Alberto Silva, crítico baiano. Em seguida, migrei para o “Última Hora”, o José Louzeiro era o editor. Nisso, o Fabiano me pergunta: “Você não gostaria de ir para o festival de Cannes? Vai em tal lugar, na Maison de France, fala com fulano de tal, você leva uma carta do seu jornal e eles arranjam um crachá de 'imprensa cotidiana', que é o mais quente”. “Imprensa cotidiana” entra nas sessões primeiro. Isto porque, a priori, você tem que editar no dia seguinte.
EE – Você foi a Cannes pela “Última Hora”, então.
JCR – Fui pela “Última Hora”. Mas o jornal não pagou a passagem, eu paguei. Chegando lá, também não tinha aonde ficar. Por outro lado, o Fabiano e o David Neves estavam em uma suíte da Embrafilme, durante a gestão do Roberto Farias. Aí aconteceu uma situação engraçada, que contei outro dia no Facebook: nos hospedamos eu e a Scarlet Moon de clandestinos no quarto. Ninguém entendia nada. Uma mulher com três homens...
EE – [risos]
JCR – Ainda foram ver o nome da mulher: Scarlet Moon de Chevalier. Acharam que era um travesti...
EE – [risos]
JCR – [risos] Olha, uma verdadeira loucura... Depois viajei até Paris. Nessa diáspora da família, meu irmão foi estudar com uma tia, diplomata. Ele havia se formado, morava em Paris. Fiquei nessa casa durante um ano e voltei. Cheguei a me matricular na Universidade de Vincennes, na faculdade de História, com meu dinheiro, mas não tive o suficiente para ficar. Os professores eram Foucault, Roland Barthes, Fernando Henrique Cardoso. Eu teria virado outro, não sei se foi bom ou mal. Também nunca me desfiz do lado do teatro. Sou fascinado pelo trabalho do José Celso. De todos dessa geração, incluindo o Cinema Novo, Caetano etc., o maior é o José Celso. Foi o único que conseguiu levar até as últimas consequências aquilo que quis fazer. Pode-se até não gostar, mas fez o que quis. Quem assistiu às cinco partes de “Os Sertões” sabe disso. É a melhor coisa feita nesse gênero épico, brasileiro. Mais do que o Glauber, mais do que a Tropicália.
EE – Ainda na “Última Hora” você lança a primeira versão do seu livro “O Negro Brasileiro e o Cinema”, com textos escritos em partes, durante 1976.
JCR – Deu uma confusão. Viraram para mim e disseram: “Você não é negro. Por que escrever tanto sobre esse assunto?” Nunca me esqueci. E isso fez o quê? Eu insistir mais, não desistir. Acho que a visão meio distante pode contribuir de um modo que a outra não contribuiria. Não traz o lado emocional. No caso dos negros, eles nunca conseguiram ter uma visão objetiva sobre a participação deles no cinema brasileiro. A primeira edição do livro foi publicada em 1988 e, até hoje, não escreveram uma versão deles. Concordando ou discordando, tendo outras opiniões. A visão é absolutamente emocional.
EE – E por que aconteceu esse hiato, João? Entre 1976 e 1988.
JCR – Escrevi as partes no “Última Hora” e parei. Em 88 eu estava na Embrafilme e seriam celebrados os cem anos da Abolição. Não me lembro se fui eu que tive a ideia ou se alguém da Embrafilme, sobre a possibilidade de uma co-edição comemorativa. Perguntaram se eu queria fazer, me deram um prazo pequeno. A primeira edição saiu pela Globo e é fraca, ruim. Tanto que em 2000 eu refiz com a Pallas. Um crítico comentou: “ele tem um bom texto, interessante, mas fala de filmes que não são importantes”. Claro. Os filmes que não são os grandes, quando vistos em grupo é que darão uma noção da realidade. Os filmes de exceção, muito bons ou muito ruins, não formam uma média. Reclamaram, mas o livro fez muito sucesso entre os negros. Está na terceira edição. Na verdade, eu me dirigi a eles. Puxei coisas como “os negros têm que passar para detrás das câmeras”, é preciso haver diretores, roteiristas. Ninguém nem pensava nessa possibilidade. Você vê que não havia no Cinema Novo, no Cinema Marginal e até mesmo na Boca do Lixo. O Cinema Novo não tem diretor mulher. O Cinema Marginal não tem uma diretora. Tudo homem e branco.
EE – Aproveitando o assunto, me lembrei de uma frase sua, na biografia do João do Rio. Quando ele morre, você escreve: “uma crioula gritou: 'João do Rio morreu!'”. Não atribui à palavra “crioulo” uma dimensão pejorativa. Sabendo que nós vivemos em tempos politicamente corretos e idiotizantes, como você vê isso?
JCR – Não acho pejorativo. “Crioulo”, do ponto de vista cultural, é o negro nascido no Brasil. Para diferenciar do escravo africano. Na América Latina é o contrário: é o branco nascido na América. A Imperatriz Josefina, mulher do Napoleão, era uma creole da Martinica. Não quer dizer que ela era mulata. Era uma branca nascida na Martinica. Acho tudo isto uma bobagem. O Haroldo Costa, negro, participante do Teatro Experimental do Negro, um “negro de respeito”, digamos assim, lançou o livro “Fala, Crioulo”. E não é um livro pejorativo, muito pelo contrário. São depoimentos de pessoas, mostrando como vencer. Em Portugal não se usa “negro”, usa-se “preto”. A pele é negra, pode ser chamada de “preta”, e “crioulo” não é pejorativo. Eu não acho.
EE – Saindo da “Última Hora”, você passa a escrever no “Lampião da Esquina”, um jornal histórico e bastante querido, voltado inteiramente ao público gay.
JCR – No meio tempo, entrei para a Embrafilme. Em 78, se não me engano. Porque tem o seguinte: a mãe do Gustavo Dahl era irmã da mulher de um dos meus tios paternos. Ou seja, não temos parentesco sanguíneo, porém temos de afinidade. Nunca contei isso a ninguém, mas vou contar agora aqui. Minha tia veio visitar o Brasil, eu já estava com vinte e tantos, e me disse: “Não quer trabalhar?” “Quero, mas não consigo saber aonde”. Muito bem. Passaram-se dois, três anos, ela teve câncer, estava morrendo em Londres. Por acaso, o Gustavo Dahl estava lá, e, no leito de morte, essa minha tia pediu por mim. Olha que coisa... Era alguém que eu vi quatro vezes na vida, se tanto. O Gustavo então me convidou para a Embrafilme.
EE – E o que você fez na Embrafilme, quando chegou?
JCR – Meu primeiro trabalho foi no gabinete dele, na área comercial. Passei pela parte de divulgação, atuei no lançamento do “A Dama do Lotação”. Depois, na revista “Filme Cultura”. Também trabalhei na Ancine com o Dahl, mas ele lá e eu aqui. Havia confiança no trabalho, mas não proximidade. No fim, já no CTAV, é que nos tornamos próximos. Era uma pessoa muito interessante, culto, sempre se cercou de pessoas muito boas. Conseguiu fazer uma distribuidora desse tamaninho virar a principal, no Brasil inteiro. Até as majors ficaram apavoradas. Estava eu na Embrafilme e aparece um dos membros do “Lampião”, o jornalista Adão Acosta. Mostrou o número zero do jornal. Como eu já havia morado em São Francisco, conhecia o “Gay Sunshine Press”, o primeiro jornal gay do mundo ou dessa nova fase do mundo. Achei o “Lampião” interessante, mas só passei a colaborar depois.
EE – Na edição 11, de abril de 79.
JCR – E fiquei até o fim. Ali me tornei amigo do Aguinaldo [Silva]. Não quer dizer que eu concorde com ele em tudo, às vezes até discordo. Mas, como se dizia antigamente, ele é um self made man mesmo. Nasceu paupérrimo, veio para cá, quis ser escritor, foi jornalista de polícia. Um dia cismou que não ganhava dinheiro com aquilo, quis ser roteirista. Entrou em um curso no Museu de Arte Moderna, estudou com o Leopoldo Serran, que o indicou para a TV Globo e daí nunca mais saiu.
EE – O “Lampião” tinha umas sacadas ótimas, puxava todo mundo do armário. Lembro de uma clássica: “aquele abraço para o Zacarias!” [risos]
JCR – [risos] O Zacarias, dos Trapalhões... Ali havia um lado de humor e o jornal permaneceu desconhecido durante anos...
EE – Hoje existe até online. É um marco no registro antropológico e cultural do mundo gay. Lendo o expediente, a redação funcionava na rua Joaquim Silva 11, sala 707. Em plena Lapa. Como era conviver no meio do bas-fond da época?
JCR – Maravilhoso. Estava decadente enquanto bas-fond, o que o deixava mais interessante ainda. Os cabarés eram qualquer coisa. As bichas feias, tudo meio Almodóvar, antes do tempo. Muito Genet. Era fascinante e a grande vantagem para mim é que não havia quase ninguém da Zona Sul. Só os atrevidos. Eu saía do Posto 9, ia até lá, para as pessoas acharem que eu era louco. “Você vai pra lá? De ônibus? Volta de ônibus, de madrugada?” “Claro!” Tudo muito divertido. A Praça Tiradentes, o Cabaré Casanova, o Teatro São José e a “Gayfieira” gigantesca, com três mil pessoas. Tudo underground, não havia empresário. Os números musicais eram sensacionais. Estavam construindo o metrô, então de repente a luz se acendia, aparecia um operário. De capacete, macacão, comendo a marmitinha. Tocava “Luzes da Cidade”, acho. O cara se levantava, fazia um striptease e saía uma bicha nua. Outra bicha, mais velha, a Lee Ribancheira, fugiu de Cuba a nado, logo que o Fidel chegou. Além dela, a famosa Marisa Caveira, maquiadora da Tv Tupi. Marisa Caveira recitava um famoso monólogo do Teatro de Revista, com uma rosa na mão. “Eu já fui como essa rosa. Linda, perfumada. Hoje sou assim decadente etc etc... e é por culpa sua!” Escolhia alguém na plateia e jogava a rosa em cima, a pessoa ficava apavorada. Também a Laura de Vison, realmente inacreditável. Em um número ela cantava uma música das Frenéticas, “Vingativa”...
EE – ... Composta pelo Wagner Ribeiro, dos Dzi Croquettes.
JCR – A Laura cantava com uma garrafa de cerveja enfiada na bunda. E depois tirava uma faca, avançava na mesa mais careta e a cravava na mesa. Sempre o último número, o sol já raiando. Saía todo mundo correndo e então acabava [risos]... No meio de tudo, os hotéis de entra e sai. Olha, era muito divertido. A coisa mais interessante estava na diferença entre classes, bairros, raças.
EE – E ali você pontificava. Não tinha mais gente da Zona Sul, você era o bendito fruto?
JCR – Não era o único, não. O Hélio Oiticica também. E outros. Aliás, fui modelo do Hélio Oiticica em Nova Iorque, para uma instalação nunca montada no Brasil. O nome original era “The Golden Boys of Babylon”, depois “Nyrotica”. Nunca foi montada aqui porque eram três pessoas, slides. Ninguém está nu, são seminus, pedaços de corpos projetados. Primeiro, a pessoa inteira, e ia misturando. Pé de um com não sei o quê de outro, as músicas e tal. Os caras morreram e ninguém se responsabiliza pelos direitos de imagem. A Ivana Bentes viu na Alemanha, o Silviano Santiago em Nova York, mas eu mesmo, nunca. Aqui eu continuei a ver o Hélio, que também não era mole. Nós tínhamos uma espécie de “Tratado de Tordesilhas”, passando pelo meio da Praça Tiradentes, por uma árvore [risos]...
EE – [risos]
JCR – Dessa árvore até a [avenida] Presidente Vargas, era território do Hélio. E dessa árvore até a [rua] Mem de Sá era o meu território. Às vezes nos encontrávamos embaixo da tal árvore, de madrugada, para rir. O Hélio era uma pessoa sensacional. A obra é importante, vale uma grana, mas muito melhor do que a obra, era o próprio. Divertidíssimo, debochadíssimo, nota dez. Depois veio a AIDS e ninguém ficaria nessa. Aliás, o “Lampião” foi o primeiro lugar em língua portuguesa, e acho normal que tenha sido mesmo, a falar na AIDS. Ninguém acreditou. Nós mesmos aqui do Rio achávamos que poderia ser um exagero do Grupo SOMOS.
EE – O João Silvério Trevisan, um dos fundadores do “Lampião”, comenta bastante sobre o Grupo SOMOS no livro dele, o “Devassos no Paraíso”. Como era essa convivência entre vocês, na redação do jornal? As entranhas.
JCR – Uma equipe atuava aqui, uma em São Paulo. Em São Paulo, eram o Trevisan, o Darcy Penteado. O [Peter] Fry e o [Jean-Claude] Bernardet chegaram a ser processados no início do jornal, mas quase nem escreveram. Bernardet tem dois artigos e o Fry acho que dois ou três, pelo menos a partir do número em que eu entrei. Havia reuniões de pauta, com o Alceste Pinheiro, hoje professor aposentado da UFF; o Antônio Carlos Moreira, ainda hoje na UFRJ. O Aguinaldo é quem mandava na sede, aqui no Rio. Em determinado momento, aconteceu o racha entre o pessoal de São Paulo e do Rio. O Trevisan ficou muito ligado ao SOMOS, fundado por um americano, o James Green. O Aguinaldo preferia jornalismo independente. Com o tempo, surgiram problemas financeiros, o Aguinaldo botou muito dinheiro do próprio bolso.
EE – Também apareceram fotos de nus. Foi por conta disso, para aumentar as vendas?
JCR – Sim, já foi uma tentativa. Inclusive eram modelos feios, não funcionou. Depois, aconteceu outro caso mais grave: o Antônio Chrysóstomo.
EE – É uma boa hora de falarmos sobre este assunto, João. Nem todos sabem, mas o Antônio Chrysóstomo era um crítico de prestígio, gay assumido, e foi envolvido em um escândalo dantesco. Acabou acusado por pedofilia, após adotar uma garota de rua.
JCR – Para mim, uma farsa. O Aguinaldo aproveitou aquela confusão, e o Trevisan também, para acabarem com o jornal. Estavam com medo de o “Lampião” ser responsabilizado, ser tachado de conivente com pedofilia. O Antônio Chrysóstomo foi um crítico de música, bastante importante, da “Veja” e do “Jornal do Brasil”. Dirigiu shows, era amigo das cantoras. Entre elas, a Carmen Costa. A Carmen fazia shows maravilhosos em igrejas, cantando aquelas músicas sacras, tipo Mahalia Jackson, com o Paulo Moura. O Chrysóstomo dirigia. Chrysóstomo começou a ficar alcoólatra, lembro que o Aguinaldo falou: “não pegue essa menina para criar”. Tinha essa mendiga, com uma menina na porta do “Lampião” e o Chrysóstomo resolveu adotar a garota. Essa menina é quem levou à confusão inteira. Como já morreu, posso dizer o nome de uma das envolvidas: uma cantora chamada Aline, que morava no mesmo edifício. Foi depor na justiça e tudo. Um apadrinhado do Chrysóstomo não depôs contra mas fez o seguinte: quando o Chrysóstomo foi preso, a grande coleção de discos dele desapareceu. Toda. Esse rapaz sumiu para a Europa e nunca mais voltou. Está lá até hoje.
EE – Que coisa...
JCR – O Chrysóstomo dirigia shows na Funarte. Todo mundo que queria ser compositor, se aproximava, claro. Sempre achei todo esse caso uma mentira, mas o Chrysóstomo acabou condenado e preso, por vários anos. Quando saiu da prisão, encontrei com ele umas duas ou três vezes. Mudou-se para São Paulo, recomeçou a vida profissional, mas teve um infarto e morreu, dormindo. O Aguinaldo escreveu muito sobre o assunto na “Veja”. Ele e o Trevisan é que enfrentaram bem a barra.
EE – Acho esse caso do Chrysóstomo um negócio assustador, o lado mais escuro do preconceito. Horripilante... Bem, ainda no “Lampião” surge o germe de você escrever sobre o João do Rio...
JCR – Foi. O “Lampião” ia lançar uma editora e de fato lançou. Sugeri uma antologia do João do Rio, fiquei elaborando mas, como o João do Rio não era publicado, tive que ir à Biblioteca Nacional para ler os livros. Não havia xerox, eu copiava os contos à mão. Quando estava quase terminando, o jornal acabou. Perguntei para o Aguinaldo sobre a situação. “Faça e leve para outra editora”. Parece história da carochinha, mas comigo às vezes funciona. Percebi que eram os cem anos do nascimento do João do Rio, em 1981. Batizei o livro de “Histórias da Gente Alegre”, coloquei dentro de um envelope, enviei para a editora José Olympio. Perguntei se queriam, me responderam que sim. Fui lá, assinei o contrato e olha que coisa curiosa: no dia em que assinei o contrato, voltei para a Embrafilme e, debaixo da minha janela, na rua Mayrink Veiga, estava o corpo do Mariel Maryscott. Assassinado, por ordem de um bicheiro. “Piruinha”, acho que era o nome.
EE – Na porta da Embrafilme?!... O Mariel havia matado outro bicheiro, na Ponte Rio-Niterói. Foi retaliação...
JCR – Era um monstro. O Aguinaldo ficou fascinado por ele quando morava na Lapa e viu, ou ouviu, matarem o cara que era guardador de carros e amante da hoje travesti Eloína. Mariel era bonito e não tinha problema de sexo, de cores. Transava com a Rogéria, Eloína, Darlene Glória. Em suma, com quem fosse. O Aguinaldo ficou muito fascinado com essa figura, uma coisa meio síndrome de Estocolmo. Você se apaixona por quem vai lhe matar. Muita influência de Genet. Aí, em relação ao João do Rio, eu parei. Conhecia o autor porque meu pai tinha me dado de presente um livro, um dos mais raros dele: “Cinematographo”. Meu pai me deu por causa do nome, mas o livro não é sobre cinema, era uma coluna homônima, sobre variedades. O cinematógrafo, na época, passava filminhos pequenos, de vários temas e tal. Depois conheci “As Religiões no Rio”. Percebi que o João do Rio era gay pelo estilo, não pelo tema. Eu lia aquilo e pensava: “Isso aqui é um gay. Não é possível que a pessoa use aqueles adjetivos e não seja. Tem que ser”. Durante a pesquisa para a biografia, eu vi mesmo que era. No início, era só um instinto.
EE – Em 96 você retoma o João do Rio, agora com a biografia propriamente dita.
JCR – Em 95, se não me engano, pedi uma Bolsa Vitae para fazer a bibliografia. Não me deram. Mas sou tinhoso, fiz a bibliografia eu mesmo. Fiquei dois anos na Biblioteca Nacional. Nessa época eu trabalhava na Fundação Rio, aonde havia dirigido vídeos sobre as cantoras do Rádio. Mudou a direção, vi que não iriam me dar nada para fazer e pedi uma licença para essa pesquisa na Biblioteca Nacional. Eu lia os jornais, procurava, procurava, nada havia sido levantado ainda sobre o João do Rio. Levantei dois mil e quinhentos artigos. Em 96, quando concorri de novo à Bolsa Vitae, já havia esse levantamento bibliográfico e percebi que a biografia anterior, do Raimundo Magalhães Júnior, não utilizava uma cronologia certa e faltavam coisas. Pensei: “bom, dá para fazer uma nova biografia”. Propus à Fundação Vitae e coloquei, como exemplo, uns pedaços da bibliografia. Acabei ganhando a bolsa e a biografia saiu pela Editora Topbooks, mas com muitos erros de impressão. Por isso refiz, em 2010, com o título “João do Rio: Vida, Paixão e Obra”.
EE – Foi tormentosa, essa segunda etapa do processo?
JCR – Bem, teve um problema: precisei digitar tudo de novo. Digitando, a gente vai mudando. Tirei as notas de pé de página, que acho importantíssimas, mas a maioria do público não gosta. Incorporei quase todas no texto. Enquanto digitava, algumas coisas eu mudava de lugar, outras corrigia e outras incluía, porque não parei de ler sobre o João do Rio. Não paro, até hoje.
EE – Algum tópico que você acha não ter sido esgotado sobre ele?
JCR – Acabei de propor, e não ganhar, nas bolsas de música da Funarte, uma pesquisa sobre a música popular na obra do João do Rio. É possível estudar João do Rio por temas, usando o catálogo bibliográfico: política, música. Às vezes penso em escrever uma peça de teatro. Já me sugeriram contrapor o João do Rio ao Lima Barreto. Nasceram no mesmo ano, aliás. Não quis porque o Lima Barreto é tido como mais progressista do que o João do Rio, o que é falso. Mas como o Lima Barreto teve uma vida muito infeliz e a do João do Rio, aparentemente, muito fútil, na dinâmica teatral o meu medo é que um fique como o fútil e outro como o sofredor. Não é por aí. Nunca fiz, mas também nunca saiu da minha cabeça. Volta e meia eu penso em fazer. João do Rio daria um belo seriado na TV Globo.
EE – Na Embrafilme, você partiu para uma atuação estatal, mais burocrática.
JCR – Na Embrafilme de 78 o maior lançamento era “A Dama do Lotação”. O primeiro filme brasileiro lançado no Brasil inteiro ao mesmo tempo, no grande circuito. Acabou sendo aquele sucesso. Não havia computador na época, e eu olhava umas listas desse tamanho, com todos os cinemas do Brasil. Tive que levantar os cinemas de maior média de público, para tentar armar um circuito nacional de cinemas populares. Criei a frase de venda do filme que, se não me engano, era: “Ela se entrega a todos para continuar amando o marido”, algo assim, bem provocativo. Escolhi as fotos etc. Comecei ali, e mudei para o departamento de divulgação, durante um ano, dois anos. Aprendi muito. Em seguida, fui convidado para a “Filme Cultura”, aonde no início era secretário de redação. Havia o Conselho, com o José Carlos Avellar, o Bernardet, o Sérgio Santeiro, o Ismail Xavier. Uma hora, o Conselho brigou e perguntei ao [Carlos Augusto] Calil [então diretor da Embrafilme]: “E aí?” Resposta: “Faça você”. Eu fiz.
EE – Por quanto tempo?
JCR – O tempo foi bastante, as edições é que foram poucas. Cinco números entre 1981 e 83. Sem dinheiro, sem nada. Dois números só existiram porque eu mesmo catei os artigos. Depois tive um problema com o Calil, fui embora. Recebi o dinheiro do Fundo de Garantia e fiz o vídeo “Punk Molotov”. Li uma matéria sobre os punks no “Jornal do Brasil”, escrita pelo Jamari França. O Circo Voador fez um festival e, como eu era ligado ao anarquismo, pensei sobre esses caras de dezenove anos, do subúrbio, falando em Bakunin. Não gosto de música punk, mas fiquei fascinado por esse conjunto, o “Coquetel Molotov”, o único no Rio. Resolvi dirigir o vídeo, ganhou prêmio, é um clássico, está no Youtube. Uma cópia meio ruim, tirada do VHS. Participamos só eu e o filho do J. B. Tanko. Equipe de duas pessoas. Carregávamos tudo, filmamos em U-matic. “Punk Molotov” é a última coisa proibida pela censura no Brasil. Havia uma mostra de vídeo militante da “Folha de São Paulo” em maio de 1984 e eu o inscrevi: dois vídeos foram proibidos, o meu e mais um sobre a CUT/Conclat. Por causa disso o jornal resolveu cancelar o festival: não aceitavam a censura. Você vê, ainda teve isso. É a maldição. Tudo assim, aos solavancos, mas eu vou também aos solavancos [risos]
EE – [risos] Passando agora para o “Rio Babilônia”, um solavanco dos grandes e uma ponte com o showbiz. Você escreveu o roteiro ao lado do Ezequiel Neves. Como vocês se conheceram?
JCR – Na praia, no Posto 9, por volta de 78. Conheci o Ezequiel Neves e, no mesmo minuto, um olhou para a cara do outro e nos tornamos amigos de infância. Fomos apresentados pelo Paulo Villaça, acho. Tirando o Barão Vermelho, quem ia visitá-lo no hospital era eu, até o dia em que ele fez um gesto, para eu não ir mais. Morreu dois dias depois. Fui muito amigo dele, era uma pessoa que eu adorava e que tem todo um lado oculto. O pessoal do pop achava que era só aquilo.
EE – A “Rolling Stone”, o Barão Vermelho...
JCR – E ele trabalhou com o Antunes Filho. Saiu de Belo Horizonte, trazido pela Maria Bonomi, que foi casada com o Antunes Filho. O Zeca também atuou no “Bandido da Luz Vermelha”. Era nota dez. Ainda não sei se o Neville [de Almeida] me convidou para escrever o roteiro porque me conhecia ou porque o Zeca me indicou. Os dois eram amigos, desde Belo Horizonte. Em suma, o roteiro foi escrito de uma maneira sui generis, acho que nenhum roteiro foi escrito assim, na história do mundo.
EE – [risos] Como?
JCR – [risos] Os três se reuniam, ficavam delirando e um deles, que era eu, escrevia as sequencias. O Neville, talvez com medo de corrermos e registrarmos antes, não deixava que levássemos para casa. Um pedaço não foi escrito por nós: a parte final da personagem da Christiane Torloni, quando ela morre. O Neville sempre disse que queria encontrar um poema do Pablo Neruda e nunca aparecia o diabo do poema. Até que nós demos por acabado o roteiro e, depois, ele colocou o poema. O objetivo do “Rio Babilônia” era fazer um “La Dolce Vita” brasileiro. O roteiro, inclusive, é maior do que o filme. Tem cenas que foram cortadas: o início e o fim. Todo personagem da Cláudia Ohana desapareceu. Era uma vizinha, um pouco daquela menina do final da “Dolce Vita”, inocentezinha. Clac! Foi cortado. Também a jornalista fofoqueira, quem fazia era a Creusa de Carvalho, e tinha uma cena importante para entender a trama, sumiu.
EE – Mexeram pesado na estrutura do roteiro, então.
JCR – Houve problemas no elenco também. A Norma Bengell queria o papel da Christiane Torloni, o politizado. O Neville não quis, talvez por conta da idade, mas poderia ser de qualquer idade. Eu queria que o personagem da Norma ficasse com a Meiry Vieira, por quem eu sou fascinado, até hoje. A Meiry Vieira chegou a ir ao escritório, conversou, mas tudo desmontou. O protagonista foi um drama, ninguém aceitava. O Neville era amigo do Robert De Niro. Convidou o De Niro, mas ele não aceitou. Olha os que recusaram: Nuno Leal Maia, Fábio Júnior, Edson Celulari. De repente nós tivemos a ideia do Joel [Barcelos], que estava fora da idade, mas esteve no primeiro filme do Neville. Por isto, usamos o mesmo nome [Marciano]. A princípio, podia ser a mesma pessoa, não sei quantos anos depois. Um detalhe: eu e o Ezequiel fomos cortados da filmagem.
EE – Com tantas mudanças, o filme é o que você imaginava enquanto escrevia?
JCR – O Ezequiel falava uma coisa engraçada. Quando ele trabalhou na Som Livre, uma secretária de lá viu uma dessas reprises, de noite, e perguntou: “Ezequiel, é comédia, não é?” E é uma comédia. Na verdade, é uma sátira. Agora, a crítica não entendeu nada. Alguns críticos disseram que “o Rio de Janeiro não é assim”. Ora, nós conhecíamos festas, Neville também. Claro que o “Rio Babilônia” era uma farsa exagerada, mas um exagero a partir da realidade. Acho que hoje virou um clássico. Eu tenho a minha cópia do roteiro e a do Zeca, que antes de morrer me deu, com as anotações dele. Ali estão os pedaços que foram tirados. Um aspecto atrapalhou o filme. Como era produzido pela Embrafilme e havia, mais do que uma possibilidade, um desejo de competir com a Boca do Lixo, o Neville cismou que precisaria colocar trepadas demais. Cismou. Eu falei “Neville, mas dura vinte e quatro horas. Com nove trepadas, o personagem vai morrer tuberculoso”...
EE – [risos]
JCR – [risos] Mas aí tivemos que inventar as nove trepadas. Em uma cena, muito bonita, o Marciano sai com duas meninas de patins. Aquilo é fora da história do filme. Era para ser pequeno e ficou grande, porque ele gostou da cena. Por causa disso, precisou tirar outras coisas. Eu não participava da montagem, mas ouvi falar que o Neville deu uma pane, não sabia o que fazer. Botaram na mão do Marco Antonio Cury e da Liège Monteiro, com quem o Neville era casado. Eu teria cortado a cena dos patins e mantido a cena da Ohana, no início e no fim. Outro defeito que vejo no filme é que, para mim, os personagens do Paulo Villaça e do Jardel Filho poderiam ser o mesmo. O Ezequiel também achava. Acontece que nenhum ator sério aceitaria dar a bunda para um travesti, só o Jardel Filho topou. Você vê que os críticos não prestavam atenção. Um deles disse: “É filme de pau mole”. E não é. Na cena da piscina, apareceu um pau duro do Joel. A censura deixou passar porque não viu. Aparece um monstro do Loch Ness, plóft! [risos] Vendo o filme hoje em dia, redescobri a cena. Eu sabia que havia, mas pensei que fosse menor. A americana também é feia e chata, a Kate Lyra teria feito bem melhor.
EE – Na hora do roteiro, você e o Ezequiel Neves tinham a mesma visão de cinema do Neville? Foi fácil ou difícil?
JCR – Não foi difícil. Todos fizeram de tudo, mas se formos dividir o roteiro, eu diria que a participação do Ezequiel foi mais nos diálogos. A minha, na decupagem, e a do Neville, no geral. Foi o primeiro roteiro a aparecer na Embrafilme depois do [Alberto] Cavalcanti, mil anos atrás, a ter duas colunas. A coluna da imagem e a coluna do som. O roteiro criou um bochicho: quem não gostava do filme, dizia que gostava do roteiro.
EE – Depois do “Rio Babilônia” você não voltou ao cinema.
JCR – Esse é um dos fenômenos do mercado brasileiro. O filme deu muitos espectadores, por volta de um milhão, talvez mais. É o único caso de roteirista de blockbuster que não é chamado para um segundo filme. Nunca ouvi falar nisso.
EE – Nessa área de roteiro, como foi a experiência na TV Globo?
JCR – Na primeira vez o Aguinaldo me indicou. Havia um programa chamado “Quarta Nobre”, supervisionado pelo Paulo Afonso Grisolli. Deve ter sido 1982. O programa era de adaptações de obras literárias e caiu para mim “O Médico e o Monstro”, do Robert Luis Stevenson. Escrevi uma paródia do “O Homem dos Olhos de Raio-X”, do Roger Corman. Inventei uma seita de cogumelos, em Santa Tereza. O protagonista se transformava, voltava ao normal, até que uma hora não voltava mais. Igual ao livro. Mas fiz uma besteira: coloquei uma anotação de que não poderia se parecer com o Hulk. Na minha cabeça, existe uma versão do Jean Renoir, chamada “O Testamento do Dr. Cordelier”, em que o ator, o Jean-Louis Barrault, não se transforma. Só fica diferente. Eu quis insinuar isso. Nunca foi para o ar. O Boni descobriu: “Isto é uma apologia às drogas, este autor está querendo nos engabelar!” E era isso mesmo, só que já havia passado por todo mundo, antes de chegar no Boni. Veja só: proibido no vídeo militante e proibido na tv comercial. Então me jogaram para “O Tempo e o Vento”, a minissérie. Viajei para o Rio Grande do Sul com o Doc Comparato e a Regina Braga. Começamos, pararam, dois anos depois continuaram com outras pessoas. Mas o terceiro capítulo fui eu quem escrevi, mantiveram. É a visita de Bento Gonçalves à Ana Terra. Tanto que faço parte dos créditos, colaboração no roteiro.
EE – Você falou em “primeira vez”. Houve, então, uma segunda vez na Globo?
JCR – Nos anos 90 participei de um concurso e entrei de novo. Passei, me colocaram no “Você Decide”. Escrevi cinco episódios, três foram para o ar e um é bem bom, almodóvariano. Chama-se “Mulambo de Gente”, com o Tuca Andrada e a Maria Zilda, dirigido pelo Ary Coslov. Eu já conhecia o Ary Coslov, ele entendeu tudo. É a história de um homem careta, que trabalha em uma loja, se apaixona pela funcionária que é alcoólatra e ele não sabe. No primeiro dia em que ele vai à casa dela, a mulher entra no banho, para transarem. Os óculos do cara caem no chão, ele se abaixa para pegar e, debaixo da cama, estão trinta garrafas vazias de vodca [risos]... A história é verídica, não posso revelar as identidades. Então o “Você Decide” era o seguinte: fica com a doida ou dispensa a doida? O público é romântico, ele ficou com a doida.
EE – Antes disso, em 88, você dirigiu a série “As Cantoras do Rádio”.
JCR – Na Fundação Rio. O Gerardo Mourão me chamou, sugeri esse projeto. As cantoras eram muito boas, ainda com sessenta e poucos anos. A princípio, só coordenaria e dirigiria um programa, o da Carmem Costa. Escalei o Orlando Senna para o da Marlene; o Ivan Cardoso para o da Emilinha; o Guilherme de Almeida Prado para o da Aracy de Almeida. O dinheiro acabou, passou à metade, quis devolver o projeto. Não podia devolver. “Como vou fazer sem diretor?” “Você vai dirigir”. Acabou que eu dirigi todos. Já havia dirigido o “Punk Molotov”, peguei o [fotógrafo] Hélio Silva, através do filho do J. B. Tanko. A Aracy de Almeida desistiu, escalei a Isaurinha Garcia. Consegui também a Ademilde Fonseca. Coloquei no Youtube três números de cada programa. Tem coisa boa, e rara, bem fotografada, bom som.
EE – E a produção intelectual na crítica, nesses anos 80?
JCR – Uma coisa que alcancei de importante é o seguinte: que a “Filme Cultura”, ainda no tempo em que eu era secretário, antes mesmo de ser editor, falasse de filmes que não fossem apenas da Embrafilme. Representou uma abertura para os filmes da Boca. Carlão Reichenbach começou a ser considerado arte, fora de São Paulo, através da “Filme Cultura” e, indiretamente, de mim. Tenho um irmão que mora na Europa e trabalha na Cinemateca Portuguesa. Na época, ele estava em Paris e era secretário da Mary Meerson, viúva do [Henri] Langlois. A Mary tinha muita influência em festivais, principalmente no de Rotterdam. Escrevi uma carta, propus esse diretor e o filme, “Amor Palavra Prostituta”. Lembro que a única pergunta que ela fez: “Mas com esse nome não é pornográfico, é?”
EE – Com uma visão mais generosa, além do Paulo Emílio havia o Rubem Biáfora.
JCR – O Biáfora era um crítico muito interessante, um cineasta muito interessante. Você viu “A Casa das Tentações”?
EE – Vi, gosto bastante do filme.
JCR – Também, consegui revê-lo agora. Nessa linha, é por isto que quero escrever sobre o Watson Macedo. Não sobre a vida, mas é claro que a vida entra em pouco. Quero escrever principalmente sobre a obra. Considero “O Petróleo é Nosso” uma obra-prima. Existe uma cópia em dezesseis milímetros, de onde retiraram a única versão que corre por aí. Peguei uns pedaços da Violeta Ferraz e joguei no Youtube. É um sucesso. Já foi visto até na Malásia. Marlene cantando “Cocaína”, do Sinhô, naquele meu vídeo das “Cantoras do Rádio”: duzentos e tantos acessos, em países estranhíssimos. Alguns países a gente pensa logo que é brasileiro, mas outros não. Cinco pessoas da Ilha de Malta assistindo à Dercy Gonçalves no “A Grande Vedete”? Não pode haver cinco brasileiros na Ilha de Malta, naquele dia. Agora, o por quê, não sei.
EE – O seu último livro foi lançado agora, em 2012, pela Coleção Aplauso. “Johnny Alf: Duas ou Três Coisas Que Você Não Sabe”. Novamente, a pesquisa musical.
JCR – O Johnny Alf me lembra o João do Rio. Veio da classe baixa, mas tem uma obra muito sofisticada, que você não espera. Além disso, mulato, gay, um carioca diferente e meio menosprezado. Conheci o Johnny Alf em um sebo na cidade, era um grande cinéfilo. A primeira frase dele para mim foi uma pegadinha. “Você conhece a versão integral do 'Solaris' do Tarkovsky?” Isso era para destruir a pessoa. Eu não só conhecia como tinha visto: “Claro, tem uma hora e meia a mais” etc., contei tudo. Ficamos amigos para o resto da vida, no mesmo minuto. Ganhei uma bolsa da Rockfeller Foundation para realizar um vídeo sobre ele. Gravei no Vinícius Bar, em Ipanema. O lugar era muito pequeno, tornava difícil a câmera andar. Percebi que o vídeo não sairia como eu queria. Resultado: fui esperto, contratei uma mesa de som, de doze canais, botei na rua. Veja que louco.
EE – Vida real... É preciso se virar mesmo...
JCR – Coloquei no meio da rua, da calçada, de onde se puxava também o som. Assim gravei dois discos e dois vídeos, no mesmo show. Os discos lancei comercialmente, os vídeos, não. Uns trechos estão no Youtube também. Como os meus vídeos não repercutiram da maneira que eu quis, desenvolvi uma enorme rejeição com eles. Fiquei uns quinze, vinte anos, para ver de novo. Ultimamente, voltei a revê-los e não são nada ruins. Em relação ao livro, o empresário dele me ligou. Perguntou se eu queria escrever a biografia, eu disse que sim. Entrei em contato com a Aplauso, dirigida pelo Rubens Ewald Filho. Ele topou e, no meio da história, o Johnny Alf morre. Continuei a levantar esse personagem, que ninguém conhecia. Complexo, diferente, desconhecido até mesmo para mim que era próximo. Havia todo um sofrimento, que ele não deixava transparecer. Mas, se você prestasse atenção, aquilo o atingia. Sempre posto de lado, esquecido. Até quem elogiava não gravava as músicas.
EE – Sempre tratado como um coadjuvante.
JCR – Sempre coadjuvante quando, na verdade, foi o primeiro. Terminei o livro, mas acho que ainda pode ser completado, aos poucos. O Johnny Alf foi educado por uma família que era patroa da mãe dele. Aos dezoito anos, quando resolveu ser pianista profissional, foi expulso da casa. Há um mistério aqui. Aquela história do César Camargo Mariano também é muito louca: o Johnny viveu nove anos na casa dos pais do César Camargo Mariano! Em toda a vida, ele nunca teve casa, é um dos traumas que descobri. Sempre morou em hotel ou nas casas dos outros. O César tinha onze anos quando o Johnny chegou e vinte quando saiu. Era uma espécie de babá do César, dava livros para ler, levava ao cinema. Nas memórias, o César Camargo Mariano comenta sobre isso numa boa. São coisas que descobri. O personagem que não tinha aonde morar, que não tinha família, que não tinha nada e fazia aquele tipo de música sofisticadíssima. Nunca se entregou ao comercialismo. Poderia fazer jingle, quando todo mundo migrou para a Jovem Guarda. Não. Ficou na dele, impávido.
EE – João, nós percorremos a sua trajetória de cabo a rabo, falamos bastante coisa. Gostaria de entender, agora, como você avalia a sua própria produção crítica e de pesquisa.
JCR – Vamos primeiro a uma, depois à outra. Em relação à crítica, eu cato as pérolas que caíram pelo caminho. O que é bom e ninguém prestou atenção. Talvez porque eu espere que, um dia, eu seja uma dessas pérolas catadas. O que é bom e não é percebido no momento não deixa de ser bom, precisa ser trazido. Johnny Alf, João do Rio, Carlão há tempos atrás. Hoje em dia, raramente falo mal de um filme. Quando não gosto, não faço. Não mudei a opinião sobre duas obras, mas acho que fui extremamente grosseiro em duas vezes na minha vida. Um filme do Artur Omar, outro do Gustavo Dahl. Duas vezes em que não gostei, mas falei de um jeito que não precisava. Hoje evito, procuro puxar o lado que considero bom e, quando é muito ruim, se não for racista, não falo nada. Agora, é claro: se houver um filme nazista, vou fazer a crítica e meter o pau.
EE – Importante o posicionamento, sobretudo na crítica.
JCR – Em relação à pesquisa, o negócio é que eu tenho uma memória danada. Sou a antítese dos que dizem que maconha tira a memória. Fico impressionado. Penso até em doar meu cérebro para pesquisa. Então isso também tem a ver com trazer coisas que ficaram de lado. Por exemplo: as chanchadas. Adoro chanchada. Acho a Violeta Ferraz mil vezes melhor do que a Dercy Gonçalves. É preciso que se mostre Violeta Ferraz para que as pessoas vejam que é melhor do que a Dercy Gonçalves. Acho Watson Macedo melhor do que Carlos Manga. É preciso que se mostre Watson Macedo para se ver que é melhor do que o Carlos Manga.
EE – Quais as suas maiores influências na crítica?
JCR – Dos críticos, o Bernardet me influenciou muito, o Paulo Emílio tem um estilo maravilhoso. O que tento, nas minhas críticas e pesquisas, é ter o pensamento rigoroso e não o estilo rigoroso. O estilo tem que ir envolvendo você, ir num crescendo. Uma coisa engraçada: quando conheci Glauber Rocha em 71, nos tornamos bastante amigos e a correspondência, inclusive, consta no livro da Ivana Bentes. Eu estava em Paris e em um momento o Glauber quis ajudar. Na época eu não percebi direito, mas hoje entendo o que ele quis dizer. Ele me entregou duas cartas de indicação. Uma para o Cahiers [du Cinéma], uma para a Positif. “Eu acho que o seu perfil é mais Positif”. Ele tinha razão. A Positif era política, mas também surrealista. O Cahiers, tirando o Godard, era de meninos de burguesia, de direita até. O Truffaut, por exemplo. O Rohmer, então! A crítica militante não precisa ser quadrada.
EE – Nem enfadonha...
JCR – Enfadonha, nunca.
EE – Chama a atenção alguém da sua geração e ligado à Embrafilme ter esse tipo de atitude. O bloqueio da intelligentsia foi terrível ao longo do tempo, um desserviço...
JCR – É uma coisa abominável. Eu releio algumas críticas e, conhecendo os filmes, posso dizer que não viram o filme. Não viam, davam o boneco dormindo, diziam duas ou três linhas e não existia aquilo no filme. Eram críticas feitas para destruir. A Motion Pictures usava um grande representante no Brasil, que ficou aqui por muitos anos. Harry Stone. Um homem muito inteligente, frequentava a sociedade. Quando chegavam os novos efeitos, como os setenta milímetros, dois ou três críticos eram levados para Los Angeles, para assisti-los. Isso é uma troca de favores, que depois se refletia na crítica.
EE – Sim, sim... É difícil encontrar um espírito de independência. São pouquíssimos.
JCR – A geração antes de mim é muito americanizada. Às vezes um mau crítico, um crítico exagerado, consegue dar uma dica mais inteligente. Como cheguei no Carlão? Eu não tinha gostado muito de “Liliam M.”, mas abri “O Globo” e li uma crítica do Salvyano Cavalcanti de Paiva, um irascível daqueles. Falava de “A Ilha dos Prazeres Proibidos”, falava bem, e a crítica deu vontade de ver. Fui ver, e adorei.
EE – O fato de você não ter uma formação acadêmica incomoda ou incomodou você? Já houve o rótulo de “fã” ou de “intuitivo”, algum tipo de preconceito?
JCR – Não, de fã não tem. Intuitivo talvez. Sou bem mais culto que a maioria. Li até os clássicos, Homero, Eurípedes, Suetônio, Cervantes, “Mil e uma noites”, Rabelais, Shakespeare, Molière, o chato do Racine, alguns até no original. O que percebo é um certo preconceito. Do ponto de vista da leis, por eu não ter podido concorrer a certos empregos, que exigiram, a partir de um certo momento, o diploma. Mas tenho o registro de jornalista e, na época, não era preciso o diploma. Foi criada uma categoria de segunda classe, algo contra a lei. Como eu já estou perto de me aposentar e pular fora, não fui brigar. Quando estive na “Filme Cultura”, em que havia aquele Conselho, no início me olharam meio torto. Tanto que me colocaram de secretário. Mas logo depois da terceira reunião, acho que o Bernardet e o Avellar pediram e eu passei a ter direito a voto. Porque eu sabia, digamos assim. Nas novas gerações, existe sempre um pé atrás no início. Depois, acho que não. “Quem é ele?” Quando eu era adolescente, as famílias, principalmente de Minas Gerais, você ia na casa da pessoa e perguntavam: “Meu nome é João Carlos”. “João Carlos de quê?” Isso depois foi substituído por “daonde”, ou seja, daonde você estudou. Eu sou autodidata: como Glauber, Humberto Mauro, Mário Peixoto. Gustavo Dahl, José Medeiros, João do Rio, Hélio Oiticica. Estou bastante confortável na companhia deles. Mas me sinto quase tão maldito quanto Genet e mais isolado que a Ilha da Páscoa. Há momentos em que o dinheiro fica curto.
EE – Vejo colegas às vezes citados como “fãs” e não são. A pessoa tem uma tremenda de uma produção, faz uma diferença gritante para o cenário cultural. No meu caso, isto não ocorre, até porque eu tive a formação acadêmica, mas misturo com a formação humanística, muito mais abrangente...
JCR – O meu currículo na parte escolar é pequeno, mas na parte de trabalho é bem grandinho. Eu tenho livro, tenho vídeo, tenho não sei o quê. Se a pessoa julga certo, equilibra uma parte pela outra. Isso não tem mais jeito. Não vou fazer um curso superior com sessenta anos de idade. Poderia dar aulas e repassar a experiência, mas a legislação proíbe. O Brasil existe para dificultar.
EE – A última pergunta, João. Comenta um pouco sobre o que você acha do panorama atual do cinema brasileiro e previsões para o futuro.
JCR – Acho o seguinte: o cinema brasileiro está em um nó. Passou-se a desprezar o público. Enquanto continuar centrado no governo, a tendência é se tornar cada vez mais burocrático. Se tudo é do governo, daqui a pouco o governo começará a exigir: que fale bem, que não fale mal. “Terra em Transe” talvez não fosse produzido hoje...
EE – … E foi produzido, aliás, com a ajuda do Moniz Vianna, na CAIC do Carlos Lacerda. Apesar de não gostar do filme, teve essa hombridade.
JCR – A CAIC tinha uma coisa aberta. Produziram todo tipo de filme. A Embrafilme do Roberto Farias também, que produziu de Júlio Bressane a Lulu de Barros. Procurava-se fazer uma indústria. Hoje em dia, o cara ganha antes. É um nó. Como é que você vai fazer? Estava lendo um artigo no Estadão. Dos anos 90 para cá, não existiu um cineasta, e já se passaram vinte e três anos, que tenha conhecido o cinema sem o auxílio estatal. Não entra na cabeça da nova geração que é possível. Acham até indesejável. E com o número de pessoas que são formadas nas escolas, o mercado não tem como absorver. O que acontecerá? Na maioria dos casos, o público não quer nem mesmo ver os filmes. São lançados, mas o público se desinteressou. Parece uma obrigação do governo: produzir. Tornou-se uma comodidade, pegar financiamento. Isso se reflete na qualidade dos filmes. Se não se refletisse na qualidade, tudo seria válido. Agora, outros tentam.
EE – Por exemplo?
JCR – Por exemplo, o Canal Brasil exibe filmes nunca lançados no cinema. A maioria deles, você acha que teriam condição? Que alguém iria ver? Alguns até são engraçadinhos, mas porque você está ali sem pagar nada. Há os cineastas vindos do mundo da publicidade: Fernando Meirelles e outros. Como a publicidade é realizada com muitos recursos, eles têm domínio sobre fazer uma boa grua, um bom carrinho etc. Do ponto de vista do mercado, os filmes se dão melhor do que os filmes feitos pelas pessoas que saem do mundo acadêmico por si só. É uma coisa que inventei anteontem: o “Cinema Chuchu”. Inodoro, antisséptico. Vejo filmes que são sobre nada. “Ah, mas Robert Bresson...”. Sim, mas Robert Bresson era Robert Bresson. “Sobre a angústia da juventude...” Ora! Angústia de filhinho de papai. Vão subir a Mantiqueira de fuzil na mão, vão se ralar nas ostras, mas parem de reclamar sem fazer nada! Muitos dos filmes estão na Internet. Os da Alumbramento, por exemplo. Claro que, como iniciativa, são válidos. Mas precisam chegar a um ponto. Não são interessantes, não têm vida: é isso o que eu quero dizer. Não que eles não sejam interessantes como pessoas, mas não têm vidas que suportem obras autobiográficas que interessem a alguém além deles mesmos. Neste caso, até fazem sem dinheiro do governo, tem toda essa qualidade. A tentativa de realizar, de distribuir. Tudo bem, nota dez. Mas quem é que vai querer ver os filmes? São tiros na água. Os outros, que seriam, a princípio, os maus cineastas do mundo publicitário, fazem uma indústria. Pegam um roteiro, com uma história que crêem que interesse a alguém, e vão fazendo. A Tallulah Bankhead, muito viperina, estava certa vez com um produtor que se queixava de ter pago uma fortuna por um bom roteiro, o melhor ator, a melhor atriz, isso, aquilo, não sei mais o quê, e mesmo assim o público ingrato não compareceu. Ela: “Darrrling, reconheça. Se o público não foi, é porque você errou em algum lugar”.
EE – Este divórcio entre público e cinema não é, para você, um detalhe acessório.
JCR – O Pasolini falava sobre o cinema-poesia e o cinema-romance. O cinema industrial viria de Charles Dickens, envolve você. O cinema-poesia, não, teria vindo dos dadaístas. São dois enfoques diferentes. No cinema de vanguarda, o diretor quer aparecer demais, propositalmente. Tanto que existe um gênero, ultimamente: o cinema de festival. O Bernardet comentou sobre isso. Antigamente, os festivais pinçavam, nos países, os melhores filmes daqueles países. Já hoje em dia são produzidos pelo Canal 5 francês e outros, para irem a festivais. Criou-se um novo tipo de filme. Não existe a vontade, a intenção primordial de se comunicar com a plateia do país de onde veio. Procura uma plateia de gatos pingados, no mundo inteiro, que crie um número suficiente para aquele tipo de produção andar. É diferente dos que eram feitos para se pagarem ou repercutirem no próprio local. Representavam alguma coisa. Hoje em dia, representam apenas o triunfo da vontade do diretor. É um desperdício.
Filho de militantes do Partido Comunista, João Carlos bebeu o licor de todo flâneur, em todo bulevar. Conheceu Antonio Moniz Vianna e José Celso Martinez Correa. Ouviu “Lucy In The Sky With Diamonds” em um elevador do FBI. Participou do lançamento de “A Dama do Lotação”, na Embrafilme.
Pelo final dos 70, entra para o “Lampião da Esquina”: o delicioso almanaque de Aguinaldo Silva, João Silvério Trevisan e outros bambas. Como não era bobo nem nada, aproveitou o gosto da Lapa, efervescente até os céus, no bas fond habitado por Laura de Vison e Hélio Oiticica.
Ao assinar o contrato de um livro, João Carlos volta ao escritório da Embra e espia, da janela, o cadáver de Mariel Mariscott. Riscado de balas e sangrando, no meio da rua, de frente ao prédio. Também roteirista, escreve “Rio Babilônia”, ao lado de Ezequiel Neves e Neville de Almeida. Nascia o clássico da minha e de várias gerações, curtido nas infinitas reprises da televisão.
Primeiro pesquisador e crítico a ser entrevistado no “Estranho Encontro”, João Carlos fala. Sente-se à vontade nos prazeres da leitura, das artes e no arrepio ao autoritarismo. Concorde-se ou não com ele, João Carlos Rodrigues é um indivíduo na massa disforme das coletividades. Politicamente incorreto, se precisar.
ESTRANHO ENCONTRO – João Carlos, o João do Rio, seu biografado, nasceu na antiga Freguesia do Santana. Rio de Janeiro, 1881. Você, que também é carioca, nasceu em que parte da cidade?
JCR – Nasci na Casa de Saúde Santa Lúcia, bairro de Botafogo, em 1949. Minha família morava na [rua] Barata Ribeiro, em Copacabana, perto da esquina da [rua] Santa Clara, em uma casa que não existe mais. Toda a família era de membros do Partido Comunista, àquela altura de novo na ilegalidade.
EE – Então eram contemporâneos do Agildo Barata, pai do Agildo Ribeiro.
JCR – Meu pai saiu do partido em 56, depois da invasão da Hungria, no “racha dos intelectuais”, chefiado pelo Agildo Barata. Participavam o Osvaldo Peralva, o Paulo Mercadante, o Antonio Paim. Em suma: um grupo de intelectuais que achou que o partido estava se metendo demais em muitas coisas. Sou o filho mais velho. Na verdade, o terceiro, porque outros dois nasceram mortos. Além de mim, outros três, vivos. Tirando meu pai, todos do lado dele foram diplomatas e as mulheres casaram-se com diplomatas. Meu pai, Newton Rodrigues, foi diretor da revista “Senhor”, do “Correio da Manhã”, colunista político, muitos anos na “Folha”. Não sei por quê, sempre tive uma ligação maior com o lado paterno e também com as tias maternas. Para você ter uma ideia, são sessenta primos-irmãos. Agora não mais, porque alguns morreram. Mas veja a brincadeira: de cada lado, uns trinta. Cada avó pariu mais de dez filhos. Meu lado materno é bem diferente, são pessoas mais lúdicas, a atriz Gracinda Freire era uma das minhas tias. Também mais práticos, mais de bem com a vida.
EE – Imagino que era difícil manter uma individualidade, no meio deles todos.
JCR – Dificílimo, mas acabei mantendo. É preciso ter um quarto, com uma boa chave, e você mantém [risos] Ninguém usa sua roupa, ninguém mexe com as suas coisas. Consegui manter.
EE – O que você lembra da infância, nessa época? Os aromas, os lugares...
JCR – Lembro do cheiro da maresia. A Avenida Atlântica não era duplicada. Houve uma grande ressaca e descobriu-se que por baixo da areia havia outro calçadão. Hoje em dia deve estar no meio do mar, sei lá onde, porque ampliaram tanto. Também no Leme, aonde depois nós fomos morar, me lembro da [Cantina] Fiorentina. Do cinema Danúbio, o famoso cinema Danúbio. Funcionava no prédio do Bar Alpino, um bar alemão, tipo o Zeppelin, digamos. O Danúbio era um cinema poeira de bairro, com programa duplo, e ali fiz a minha vida de cinéfilo.
EE – E os colégios, você estudou aonde?
JCR – Primeiro no São Fernando, na rua Marquês de Olinda. Nesse colégio estudaram também o Luiz Carlos Lacerda, vulgo “Bigode”, e o Ivan Cardoso. Depois, o Colégio Pedro II. Cheguei a entrar na faculdade de História do Pedro II, passei acho que em primeiro ou segundo lugar, e parei. Por que parei? Ganhava mais estando fora. Comecei na parte técnica de teatro, na iluminação, meio como auxiliar. O meu primeiro salário veio da peça “Roda Viva”, do José Celso [Martinez Corrêa]. Fazia Teatro Jovem também, então eu recebia um dinheiro e a vida me parecia mais interessante fora da faculdade do que dentro. No primário, a convivência foi mais ou menos tranquila. Já no Pedro II, acho que poderia entrar com onze anos e entrei um pouquinho antes. Por volta de 1960, por aí. Sofri bullying no Pedro II, mas no primário, não. No primário estava numa boa. Aconteceu uma coisa interessante: no São Fernando davam aulas de religião e os meus pais eram comunistas, já quase ex-comunistas.
EE – Sua mãe também?
JCR – Minha mãe é que levou a família do meu pai. Depois foram envolvidos em um escândalo em 1952, denunciados pelo Carlos Lacerda como espiões soviéticos. Seis pessoas acabaram expulsas do Itamaraty: Antonio Houaiss, João Cabral de Melo Neto e os outros todos eram meus parentes [risos] Chegaram a voltar por ordem do STF, mas em 64 alguns foram de novos perseguidos e cassados. Havia essa maldição. Pois bem, no Colégio São Fernando meus pais proibiram as aulas de religião para mim e lembro que a professora não tinha nenhuma didática, algo que na época nem existia. Dona Esterzinha, o nome. Uma mulher com voz de maritaca. Sei que ela entrou na sala e gritou: “Que saiam os hereges!” E eu, com oito anos, ficava no recreio com outro garoto, judeu...
EE – … Bem, temos aí o comunista e o judeu. Faltou o português, para completar a piada... [risos]
JCR – [risos] E havia um terceiro, talvez protestante. Ali eu já comecei a me achar diferente.
EE – Foram dar a ideia...
JCR – Já que me acharam, então vamos ser... [risos] Eu era bom aluno. Não era caxias, mas bom aluno. No Pedro II, passei em uma ótima colocação, mas repeti o primeiro ano. Entrei antes do tempo, me sentia em outro mundo. Cinco mil alunos, todas as raças, classes, me assustou um pouco. Era uma loucura. O bullying não acontecia apenas comigo. Gritavam, vaiavam. Hoje em dia me admiro de ter tido a cabeça fria. Não foi mole, mas também não cedi. Não chorava, nem arrancava os cabelos. Fiquei na minha, impávido, fingindo que não era comigo.
EE – Chegava a comentar em casa?
JCR – Não. Nunca dei muita chance, muita intimidade. Basta ser família, não precisa de intimidade [risos] Acho que o bullying tem muito a ver com a atração sexual de quem pratica. Reprime e passa a agredir. É aquela coisa do Freud, quando “A” fala de “B”, você aprende muito mais sobre o “A” do que sobre o “B”. Quando fazem, se mostram mais do que a vítima do bullying. Não foi mole, mas sobrevivi.
EE – O teatro também era uma válvula de escape.
JCR – E lá por volta de 1966 ou 67 fiz um curso de crítica, no Museu de Arte Moderna, com o Ronald Monteiro. Um bom crítico que, melhor do que crítico, era ótimo professor. O Ronald Monteiro me disciplinou. Ensinou a fazer crítica, a não ser muito pessoal mas também não deixar de ser porque, afinal, é você quem está escrevendo. Li o livro “Deus e o Diabo na Terra do Sol” antes de ver o filme, que era proibido para menores. Fui com a minha mãe, numa reprise da reprise, no cinema Alvorada, no final do Posto 6. Era muito garoto, tivemos que subornar o porteiro para eu poder entrar [risos]
EE – [risos]
JCR – Meu pai, que era diretor do “Correio da Manhã”, me levou para falar com o Moniz Vianna, o crítico principal. Eu não quis. Na conversa, o Moniz Vianna mostrou que não gostava de Glauber Rocha, de Cinema Novo. Disse uma frase que nunca esqueci e pode parecer da Idade da Pedra: a língua portuguesa talvez não se adaptasse bem ao cinema. Eu, com quinze anos, achei aquilo esquisito, pulei fora. Como disse antes, trabalhei no “Roda Viva”, também no Teatro Jovem. Chegou 68, participei de tudo aquilo, de todas as passeatas. Uma hora acabou, veio o desbunde. Eu era bom no desbunde. Sempre achei cocaína uma caretice, por incrível que pareça. Já maconha acho bom, para pensar. Apareceram os LSDs puros, que hoje não existem mais e eu não tomaria. Quando tomei, meus amigos iam para Londres, trocavam, faziam sucesso em Ipanema. Eu morava em uma casa, o quarto em cima de uma garagem. Até o Living Theatre andou por lá, era uma casa animada.
EE – O Living Theatre na sua casa?
JCR – Pois é, eles viajaram com o [Teatro] Oficina para São Paulo, brigaram e vieram para o Rio. Moravam no Jardim de Alah e eu, na [rua] Aníbal de Mendonça. Acho que por causa do Flávio Império, não sei, mas eles iam à minha casa. E eram muito loucos. Entravam, conversavam com meu pai, que estava sem trabalhar por causa do AI-5. Perto da casa da gente também morava a Zuzu Angel. Então o lado guerrilheiro rondava próximo.
EE – Você participou efetivamente da guerrilha?
JCR – Não, sempre fui contra. Nesse ponto, embora eu tenha nascido no Partidão e seja contra o Partidão, acho que o leninismo é uma coisa de direita. Não o marxismo, mas o leninismo. Em algumas coisas, o Partido tinha razão: foram contra a luta armada e sofreram a repressão como se tivessem sido a favor. Evidentemente, se você vai lutar contra um inimigo muito maior, está destinado a fracassar, a perder. Participei de assembleias, fui muito ligado às pessoas do Colégio de Aplicação. Alguns ficaram famosos, como o Franklin Martins e o Ricardo Vilas, trocado por um embaixador. Outro, da Arquitetura, morreu no Araguaia, o Guilherme Lund. Lembro que votei contra a luta armada mas, engraçado, nunca me discriminaram. Eram filhos de classe média, até alta, e arriscaram a vida por um ideal, digamos, furado. Agiram com toda dignidade, com toda seriedade, merecem respeito enquanto pessoas, embora eu ache que a coisa estava errada.
EE – Mas você não via sectarismo? Um cair do viaduto em nome do pai maior...
JCR – Completamente. Eram burgueses, de certa maneira, e acho que na verdade a briga era contra os pais, transferida para o resto. No lado dos costumes, poucos eram abertos, a maioria não era. O Partido Comunista era muito conservador. Meu pai dizia que o PCB era vitoriano. Na Rússia eram vitorianos, aqui tentavam ser. Acontece que a extrema esquerda, depois do desbunde, recebeu as influências do Timothy Leary e do Jean Genet: as minhas influências. Timothy Leary e Jean Genet fizeram a minha cabeça politicamente, em uma dimensão muito maior. Também acho que a guerrilha se ferrou por não conseguir nenhum apoio da sociedade, em nenhum canto. Existe um livro do José Carlos de Oliveira, cronista, boêmio, chamado “Um Novo Animal na Floresta”. Adoro esse livro e gostaria que o Saraceni tivesse filmado. Na história, os boêmios, que nem eram a favor da luta armada, davam guarida para o guerrilheiro. Nem o próprio partido deu guarida, na hora do pega pra capar. Tive contato com as pessoas e havia a confiança de me contarem coisas. Se tivesse contado para alguém, nem sei o que poderia ter acontecido. Hoje em dia ainda tenho as divergências com eles, mas existe um respeito que considero legal.
EE – Particularmente, acho muito mais complexo do que o pegar em armas. Como o próprio José Carlos de Oliveira, que contava no livro sobre ir e voltar do Antonio's, paranoico, com medo de ser perseguido...
JCR – Criança aprende desde cedo o que é mesa, cadeira, essas coisas. O primeiro objeto diferente que eu, com uns seis anos de idade, entrei em um lugar e pensei “o que é isso?”, foi uma impressora. Estava na garagem aonde se imprimia clandestinamente “A Voz Operária”, do Partido, na rua Barata Ribeiro. Para você ver que aconteceu muito perto de mim. Não segui porque não quis, superei. Sempre digo que sou um baby boomer, parte de um grupo de pessoas que apareceu naquela época e, agora, só daqui a cem anos. Não que sejam melhores nem piores, elas foram diferentes. Ali a caixinha de Pandora se abriu, na Califórnia, provavelmente no final dos anos 50, e ficou aberta até os anos 70. Tudo que é bicho saiu e ainda tem uns soltos por aí. Para botar dentro da caixa de novo, demora. Acho até impossível [risos]...
EE – [risos] E Nova Iorque te deu uma outra demão nisso tudo?
JCR – Deu, totalmente. Viajei para Nova Iorque na maluquice, queria sair daqui, estava com vinte e um anos. Quem havia se mudado era o Fabiano Canosa, programador de cinema, da geração Paissandu. Eu conhecia o Fabiano dos bares de teatro, embora ele não fosse de teatro, andava no meio. Ele se mudou para Nova Iorque, me escreveu uma carta dizendo “quando aparecer, venha aqui, fique aqui e tal”. Bem, resolvi ir. Só que não avisei nada, nem fui direto para a casa dele. Apenas umas semanas, depois San Francisco durante um ano, aí voltei pra casa dele, mais um ano...
EE – Você escolheu a hora certa para conhecer Nova Iorque, por sinal. 71, 72...
JCR – Ficamos eu, o Fabiano e o Nildo Parente. Antes de eu chegar moravam o Fabiano, o Glauber Rocha e o Naná Vasconcelos. Quando saí, entrou o Kenneth Anger. Veja que apartamento era esse, que existe até hoje, na Rua 99 West. No início, eu não tinha emprego em Nova Iorque. Arrumei um, do tipo subgerente de cinema. Lá presenciei um assalto a mão armada, fui testemunhar no FBI, no elevador tocava “Lucy In The Sky With Diamonds”. Via filmes. Já gostava, conhecia razoavelmente, mas passei a conhecer de um modo aprofundado. Assisti ao “F For Fake” do Orson Welles, na primeira versão: uma montagem diferente, com nada filmado de novo, mas montado em outra ordem, o “About Fake”. Passaram às nove horas da manhã para algum distribuidor e nós tínhamos acesso. Quando voltei ao Brasil, comecei a escrever em um jornal desses marginais, que infelizmente é difícil de achar.
EE – Você começa a escrever profissionalmente. Qual o nome do jornal?
JCR – “Crítica”. Deve ter sido em 74, 75. Os exemplares estão no Arquivo da Cidade, na coleção chamada “Imprensa Alternativa”. Só tem lá. Merece ser pesquisado. Fui a primeira pessoa a falar de Kenneth Anger no Brasil, de Fassbinder, Fred Wiseman, de não sei o quê. Eu tinha pleno domínio, era uma página. Nesse jornal também escrevia de vez em quando o Orlando Senna e o Alberto Silva, crítico baiano. Em seguida, migrei para o “Última Hora”, o José Louzeiro era o editor. Nisso, o Fabiano me pergunta: “Você não gostaria de ir para o festival de Cannes? Vai em tal lugar, na Maison de France, fala com fulano de tal, você leva uma carta do seu jornal e eles arranjam um crachá de 'imprensa cotidiana', que é o mais quente”. “Imprensa cotidiana” entra nas sessões primeiro. Isto porque, a priori, você tem que editar no dia seguinte.
EE – Você foi a Cannes pela “Última Hora”, então.
JCR – Fui pela “Última Hora”. Mas o jornal não pagou a passagem, eu paguei. Chegando lá, também não tinha aonde ficar. Por outro lado, o Fabiano e o David Neves estavam em uma suíte da Embrafilme, durante a gestão do Roberto Farias. Aí aconteceu uma situação engraçada, que contei outro dia no Facebook: nos hospedamos eu e a Scarlet Moon de clandestinos no quarto. Ninguém entendia nada. Uma mulher com três homens...
EE – [risos]
JCR – Ainda foram ver o nome da mulher: Scarlet Moon de Chevalier. Acharam que era um travesti...
EE – [risos]
JCR – [risos] Olha, uma verdadeira loucura... Depois viajei até Paris. Nessa diáspora da família, meu irmão foi estudar com uma tia, diplomata. Ele havia se formado, morava em Paris. Fiquei nessa casa durante um ano e voltei. Cheguei a me matricular na Universidade de Vincennes, na faculdade de História, com meu dinheiro, mas não tive o suficiente para ficar. Os professores eram Foucault, Roland Barthes, Fernando Henrique Cardoso. Eu teria virado outro, não sei se foi bom ou mal. Também nunca me desfiz do lado do teatro. Sou fascinado pelo trabalho do José Celso. De todos dessa geração, incluindo o Cinema Novo, Caetano etc., o maior é o José Celso. Foi o único que conseguiu levar até as últimas consequências aquilo que quis fazer. Pode-se até não gostar, mas fez o que quis. Quem assistiu às cinco partes de “Os Sertões” sabe disso. É a melhor coisa feita nesse gênero épico, brasileiro. Mais do que o Glauber, mais do que a Tropicália.
EE – Ainda na “Última Hora” você lança a primeira versão do seu livro “O Negro Brasileiro e o Cinema”, com textos escritos em partes, durante 1976.
JCR – Deu uma confusão. Viraram para mim e disseram: “Você não é negro. Por que escrever tanto sobre esse assunto?” Nunca me esqueci. E isso fez o quê? Eu insistir mais, não desistir. Acho que a visão meio distante pode contribuir de um modo que a outra não contribuiria. Não traz o lado emocional. No caso dos negros, eles nunca conseguiram ter uma visão objetiva sobre a participação deles no cinema brasileiro. A primeira edição do livro foi publicada em 1988 e, até hoje, não escreveram uma versão deles. Concordando ou discordando, tendo outras opiniões. A visão é absolutamente emocional.
EE – E por que aconteceu esse hiato, João? Entre 1976 e 1988.
JCR – Escrevi as partes no “Última Hora” e parei. Em 88 eu estava na Embrafilme e seriam celebrados os cem anos da Abolição. Não me lembro se fui eu que tive a ideia ou se alguém da Embrafilme, sobre a possibilidade de uma co-edição comemorativa. Perguntaram se eu queria fazer, me deram um prazo pequeno. A primeira edição saiu pela Globo e é fraca, ruim. Tanto que em 2000 eu refiz com a Pallas. Um crítico comentou: “ele tem um bom texto, interessante, mas fala de filmes que não são importantes”. Claro. Os filmes que não são os grandes, quando vistos em grupo é que darão uma noção da realidade. Os filmes de exceção, muito bons ou muito ruins, não formam uma média. Reclamaram, mas o livro fez muito sucesso entre os negros. Está na terceira edição. Na verdade, eu me dirigi a eles. Puxei coisas como “os negros têm que passar para detrás das câmeras”, é preciso haver diretores, roteiristas. Ninguém nem pensava nessa possibilidade. Você vê que não havia no Cinema Novo, no Cinema Marginal e até mesmo na Boca do Lixo. O Cinema Novo não tem diretor mulher. O Cinema Marginal não tem uma diretora. Tudo homem e branco.
EE – Aproveitando o assunto, me lembrei de uma frase sua, na biografia do João do Rio. Quando ele morre, você escreve: “uma crioula gritou: 'João do Rio morreu!'”. Não atribui à palavra “crioulo” uma dimensão pejorativa. Sabendo que nós vivemos em tempos politicamente corretos e idiotizantes, como você vê isso?
JCR – Não acho pejorativo. “Crioulo”, do ponto de vista cultural, é o negro nascido no Brasil. Para diferenciar do escravo africano. Na América Latina é o contrário: é o branco nascido na América. A Imperatriz Josefina, mulher do Napoleão, era uma creole da Martinica. Não quer dizer que ela era mulata. Era uma branca nascida na Martinica. Acho tudo isto uma bobagem. O Haroldo Costa, negro, participante do Teatro Experimental do Negro, um “negro de respeito”, digamos assim, lançou o livro “Fala, Crioulo”. E não é um livro pejorativo, muito pelo contrário. São depoimentos de pessoas, mostrando como vencer. Em Portugal não se usa “negro”, usa-se “preto”. A pele é negra, pode ser chamada de “preta”, e “crioulo” não é pejorativo. Eu não acho.
EE – Saindo da “Última Hora”, você passa a escrever no “Lampião da Esquina”, um jornal histórico e bastante querido, voltado inteiramente ao público gay.
JCR – No meio tempo, entrei para a Embrafilme. Em 78, se não me engano. Porque tem o seguinte: a mãe do Gustavo Dahl era irmã da mulher de um dos meus tios paternos. Ou seja, não temos parentesco sanguíneo, porém temos de afinidade. Nunca contei isso a ninguém, mas vou contar agora aqui. Minha tia veio visitar o Brasil, eu já estava com vinte e tantos, e me disse: “Não quer trabalhar?” “Quero, mas não consigo saber aonde”. Muito bem. Passaram-se dois, três anos, ela teve câncer, estava morrendo em Londres. Por acaso, o Gustavo Dahl estava lá, e, no leito de morte, essa minha tia pediu por mim. Olha que coisa... Era alguém que eu vi quatro vezes na vida, se tanto. O Gustavo então me convidou para a Embrafilme.
EE – E o que você fez na Embrafilme, quando chegou?
JCR – Meu primeiro trabalho foi no gabinete dele, na área comercial. Passei pela parte de divulgação, atuei no lançamento do “A Dama do Lotação”. Depois, na revista “Filme Cultura”. Também trabalhei na Ancine com o Dahl, mas ele lá e eu aqui. Havia confiança no trabalho, mas não proximidade. No fim, já no CTAV, é que nos tornamos próximos. Era uma pessoa muito interessante, culto, sempre se cercou de pessoas muito boas. Conseguiu fazer uma distribuidora desse tamaninho virar a principal, no Brasil inteiro. Até as majors ficaram apavoradas. Estava eu na Embrafilme e aparece um dos membros do “Lampião”, o jornalista Adão Acosta. Mostrou o número zero do jornal. Como eu já havia morado em São Francisco, conhecia o “Gay Sunshine Press”, o primeiro jornal gay do mundo ou dessa nova fase do mundo. Achei o “Lampião” interessante, mas só passei a colaborar depois.
EE – Na edição 11, de abril de 79.
JCR – E fiquei até o fim. Ali me tornei amigo do Aguinaldo [Silva]. Não quer dizer que eu concorde com ele em tudo, às vezes até discordo. Mas, como se dizia antigamente, ele é um self made man mesmo. Nasceu paupérrimo, veio para cá, quis ser escritor, foi jornalista de polícia. Um dia cismou que não ganhava dinheiro com aquilo, quis ser roteirista. Entrou em um curso no Museu de Arte Moderna, estudou com o Leopoldo Serran, que o indicou para a TV Globo e daí nunca mais saiu.
EE – O “Lampião” tinha umas sacadas ótimas, puxava todo mundo do armário. Lembro de uma clássica: “aquele abraço para o Zacarias!” [risos]
JCR – [risos] O Zacarias, dos Trapalhões... Ali havia um lado de humor e o jornal permaneceu desconhecido durante anos...
EE – Hoje existe até online. É um marco no registro antropológico e cultural do mundo gay. Lendo o expediente, a redação funcionava na rua Joaquim Silva 11, sala 707. Em plena Lapa. Como era conviver no meio do bas-fond da época?
JCR – Maravilhoso. Estava decadente enquanto bas-fond, o que o deixava mais interessante ainda. Os cabarés eram qualquer coisa. As bichas feias, tudo meio Almodóvar, antes do tempo. Muito Genet. Era fascinante e a grande vantagem para mim é que não havia quase ninguém da Zona Sul. Só os atrevidos. Eu saía do Posto 9, ia até lá, para as pessoas acharem que eu era louco. “Você vai pra lá? De ônibus? Volta de ônibus, de madrugada?” “Claro!” Tudo muito divertido. A Praça Tiradentes, o Cabaré Casanova, o Teatro São José e a “Gayfieira” gigantesca, com três mil pessoas. Tudo underground, não havia empresário. Os números musicais eram sensacionais. Estavam construindo o metrô, então de repente a luz se acendia, aparecia um operário. De capacete, macacão, comendo a marmitinha. Tocava “Luzes da Cidade”, acho. O cara se levantava, fazia um striptease e saía uma bicha nua. Outra bicha, mais velha, a Lee Ribancheira, fugiu de Cuba a nado, logo que o Fidel chegou. Além dela, a famosa Marisa Caveira, maquiadora da Tv Tupi. Marisa Caveira recitava um famoso monólogo do Teatro de Revista, com uma rosa na mão. “Eu já fui como essa rosa. Linda, perfumada. Hoje sou assim decadente etc etc... e é por culpa sua!” Escolhia alguém na plateia e jogava a rosa em cima, a pessoa ficava apavorada. Também a Laura de Vison, realmente inacreditável. Em um número ela cantava uma música das Frenéticas, “Vingativa”...
EE – ... Composta pelo Wagner Ribeiro, dos Dzi Croquettes.
JCR – A Laura cantava com uma garrafa de cerveja enfiada na bunda. E depois tirava uma faca, avançava na mesa mais careta e a cravava na mesa. Sempre o último número, o sol já raiando. Saía todo mundo correndo e então acabava [risos]... No meio de tudo, os hotéis de entra e sai. Olha, era muito divertido. A coisa mais interessante estava na diferença entre classes, bairros, raças.
EE – E ali você pontificava. Não tinha mais gente da Zona Sul, você era o bendito fruto?
JCR – Não era o único, não. O Hélio Oiticica também. E outros. Aliás, fui modelo do Hélio Oiticica em Nova Iorque, para uma instalação nunca montada no Brasil. O nome original era “The Golden Boys of Babylon”, depois “Nyrotica”. Nunca foi montada aqui porque eram três pessoas, slides. Ninguém está nu, são seminus, pedaços de corpos projetados. Primeiro, a pessoa inteira, e ia misturando. Pé de um com não sei o quê de outro, as músicas e tal. Os caras morreram e ninguém se responsabiliza pelos direitos de imagem. A Ivana Bentes viu na Alemanha, o Silviano Santiago em Nova York, mas eu mesmo, nunca. Aqui eu continuei a ver o Hélio, que também não era mole. Nós tínhamos uma espécie de “Tratado de Tordesilhas”, passando pelo meio da Praça Tiradentes, por uma árvore [risos]...
EE – [risos]
JCR – Dessa árvore até a [avenida] Presidente Vargas, era território do Hélio. E dessa árvore até a [rua] Mem de Sá era o meu território. Às vezes nos encontrávamos embaixo da tal árvore, de madrugada, para rir. O Hélio era uma pessoa sensacional. A obra é importante, vale uma grana, mas muito melhor do que a obra, era o próprio. Divertidíssimo, debochadíssimo, nota dez. Depois veio a AIDS e ninguém ficaria nessa. Aliás, o “Lampião” foi o primeiro lugar em língua portuguesa, e acho normal que tenha sido mesmo, a falar na AIDS. Ninguém acreditou. Nós mesmos aqui do Rio achávamos que poderia ser um exagero do Grupo SOMOS.
EE – O João Silvério Trevisan, um dos fundadores do “Lampião”, comenta bastante sobre o Grupo SOMOS no livro dele, o “Devassos no Paraíso”. Como era essa convivência entre vocês, na redação do jornal? As entranhas.
JCR – Uma equipe atuava aqui, uma em São Paulo. Em São Paulo, eram o Trevisan, o Darcy Penteado. O [Peter] Fry e o [Jean-Claude] Bernardet chegaram a ser processados no início do jornal, mas quase nem escreveram. Bernardet tem dois artigos e o Fry acho que dois ou três, pelo menos a partir do número em que eu entrei. Havia reuniões de pauta, com o Alceste Pinheiro, hoje professor aposentado da UFF; o Antônio Carlos Moreira, ainda hoje na UFRJ. O Aguinaldo é quem mandava na sede, aqui no Rio. Em determinado momento, aconteceu o racha entre o pessoal de São Paulo e do Rio. O Trevisan ficou muito ligado ao SOMOS, fundado por um americano, o James Green. O Aguinaldo preferia jornalismo independente. Com o tempo, surgiram problemas financeiros, o Aguinaldo botou muito dinheiro do próprio bolso.
EE – Também apareceram fotos de nus. Foi por conta disso, para aumentar as vendas?
JCR – Sim, já foi uma tentativa. Inclusive eram modelos feios, não funcionou. Depois, aconteceu outro caso mais grave: o Antônio Chrysóstomo.
EE – É uma boa hora de falarmos sobre este assunto, João. Nem todos sabem, mas o Antônio Chrysóstomo era um crítico de prestígio, gay assumido, e foi envolvido em um escândalo dantesco. Acabou acusado por pedofilia, após adotar uma garota de rua.
JCR – Para mim, uma farsa. O Aguinaldo aproveitou aquela confusão, e o Trevisan também, para acabarem com o jornal. Estavam com medo de o “Lampião” ser responsabilizado, ser tachado de conivente com pedofilia. O Antônio Chrysóstomo foi um crítico de música, bastante importante, da “Veja” e do “Jornal do Brasil”. Dirigiu shows, era amigo das cantoras. Entre elas, a Carmen Costa. A Carmen fazia shows maravilhosos em igrejas, cantando aquelas músicas sacras, tipo Mahalia Jackson, com o Paulo Moura. O Chrysóstomo dirigia. Chrysóstomo começou a ficar alcoólatra, lembro que o Aguinaldo falou: “não pegue essa menina para criar”. Tinha essa mendiga, com uma menina na porta do “Lampião” e o Chrysóstomo resolveu adotar a garota. Essa menina é quem levou à confusão inteira. Como já morreu, posso dizer o nome de uma das envolvidas: uma cantora chamada Aline, que morava no mesmo edifício. Foi depor na justiça e tudo. Um apadrinhado do Chrysóstomo não depôs contra mas fez o seguinte: quando o Chrysóstomo foi preso, a grande coleção de discos dele desapareceu. Toda. Esse rapaz sumiu para a Europa e nunca mais voltou. Está lá até hoje.
EE – Que coisa...
JCR – O Chrysóstomo dirigia shows na Funarte. Todo mundo que queria ser compositor, se aproximava, claro. Sempre achei todo esse caso uma mentira, mas o Chrysóstomo acabou condenado e preso, por vários anos. Quando saiu da prisão, encontrei com ele umas duas ou três vezes. Mudou-se para São Paulo, recomeçou a vida profissional, mas teve um infarto e morreu, dormindo. O Aguinaldo escreveu muito sobre o assunto na “Veja”. Ele e o Trevisan é que enfrentaram bem a barra.
EE – Acho esse caso do Chrysóstomo um negócio assustador, o lado mais escuro do preconceito. Horripilante... Bem, ainda no “Lampião” surge o germe de você escrever sobre o João do Rio...
JCR – Foi. O “Lampião” ia lançar uma editora e de fato lançou. Sugeri uma antologia do João do Rio, fiquei elaborando mas, como o João do Rio não era publicado, tive que ir à Biblioteca Nacional para ler os livros. Não havia xerox, eu copiava os contos à mão. Quando estava quase terminando, o jornal acabou. Perguntei para o Aguinaldo sobre a situação. “Faça e leve para outra editora”. Parece história da carochinha, mas comigo às vezes funciona. Percebi que eram os cem anos do nascimento do João do Rio, em 1981. Batizei o livro de “Histórias da Gente Alegre”, coloquei dentro de um envelope, enviei para a editora José Olympio. Perguntei se queriam, me responderam que sim. Fui lá, assinei o contrato e olha que coisa curiosa: no dia em que assinei o contrato, voltei para a Embrafilme e, debaixo da minha janela, na rua Mayrink Veiga, estava o corpo do Mariel Maryscott. Assassinado, por ordem de um bicheiro. “Piruinha”, acho que era o nome.
EE – Na porta da Embrafilme?!... O Mariel havia matado outro bicheiro, na Ponte Rio-Niterói. Foi retaliação...
JCR – Era um monstro. O Aguinaldo ficou fascinado por ele quando morava na Lapa e viu, ou ouviu, matarem o cara que era guardador de carros e amante da hoje travesti Eloína. Mariel era bonito e não tinha problema de sexo, de cores. Transava com a Rogéria, Eloína, Darlene Glória. Em suma, com quem fosse. O Aguinaldo ficou muito fascinado com essa figura, uma coisa meio síndrome de Estocolmo. Você se apaixona por quem vai lhe matar. Muita influência de Genet. Aí, em relação ao João do Rio, eu parei. Conhecia o autor porque meu pai tinha me dado de presente um livro, um dos mais raros dele: “Cinematographo”. Meu pai me deu por causa do nome, mas o livro não é sobre cinema, era uma coluna homônima, sobre variedades. O cinematógrafo, na época, passava filminhos pequenos, de vários temas e tal. Depois conheci “As Religiões no Rio”. Percebi que o João do Rio era gay pelo estilo, não pelo tema. Eu lia aquilo e pensava: “Isso aqui é um gay. Não é possível que a pessoa use aqueles adjetivos e não seja. Tem que ser”. Durante a pesquisa para a biografia, eu vi mesmo que era. No início, era só um instinto.
EE – Em 96 você retoma o João do Rio, agora com a biografia propriamente dita.
JCR – Em 95, se não me engano, pedi uma Bolsa Vitae para fazer a bibliografia. Não me deram. Mas sou tinhoso, fiz a bibliografia eu mesmo. Fiquei dois anos na Biblioteca Nacional. Nessa época eu trabalhava na Fundação Rio, aonde havia dirigido vídeos sobre as cantoras do Rádio. Mudou a direção, vi que não iriam me dar nada para fazer e pedi uma licença para essa pesquisa na Biblioteca Nacional. Eu lia os jornais, procurava, procurava, nada havia sido levantado ainda sobre o João do Rio. Levantei dois mil e quinhentos artigos. Em 96, quando concorri de novo à Bolsa Vitae, já havia esse levantamento bibliográfico e percebi que a biografia anterior, do Raimundo Magalhães Júnior, não utilizava uma cronologia certa e faltavam coisas. Pensei: “bom, dá para fazer uma nova biografia”. Propus à Fundação Vitae e coloquei, como exemplo, uns pedaços da bibliografia. Acabei ganhando a bolsa e a biografia saiu pela Editora Topbooks, mas com muitos erros de impressão. Por isso refiz, em 2010, com o título “João do Rio: Vida, Paixão e Obra”.
EE – Foi tormentosa, essa segunda etapa do processo?
JCR – Bem, teve um problema: precisei digitar tudo de novo. Digitando, a gente vai mudando. Tirei as notas de pé de página, que acho importantíssimas, mas a maioria do público não gosta. Incorporei quase todas no texto. Enquanto digitava, algumas coisas eu mudava de lugar, outras corrigia e outras incluía, porque não parei de ler sobre o João do Rio. Não paro, até hoje.
EE – Algum tópico que você acha não ter sido esgotado sobre ele?
JCR – Acabei de propor, e não ganhar, nas bolsas de música da Funarte, uma pesquisa sobre a música popular na obra do João do Rio. É possível estudar João do Rio por temas, usando o catálogo bibliográfico: política, música. Às vezes penso em escrever uma peça de teatro. Já me sugeriram contrapor o João do Rio ao Lima Barreto. Nasceram no mesmo ano, aliás. Não quis porque o Lima Barreto é tido como mais progressista do que o João do Rio, o que é falso. Mas como o Lima Barreto teve uma vida muito infeliz e a do João do Rio, aparentemente, muito fútil, na dinâmica teatral o meu medo é que um fique como o fútil e outro como o sofredor. Não é por aí. Nunca fiz, mas também nunca saiu da minha cabeça. Volta e meia eu penso em fazer. João do Rio daria um belo seriado na TV Globo.
EE – Na Embrafilme, você partiu para uma atuação estatal, mais burocrática.
JCR – Na Embrafilme de 78 o maior lançamento era “A Dama do Lotação”. O primeiro filme brasileiro lançado no Brasil inteiro ao mesmo tempo, no grande circuito. Acabou sendo aquele sucesso. Não havia computador na época, e eu olhava umas listas desse tamanho, com todos os cinemas do Brasil. Tive que levantar os cinemas de maior média de público, para tentar armar um circuito nacional de cinemas populares. Criei a frase de venda do filme que, se não me engano, era: “Ela se entrega a todos para continuar amando o marido”, algo assim, bem provocativo. Escolhi as fotos etc. Comecei ali, e mudei para o departamento de divulgação, durante um ano, dois anos. Aprendi muito. Em seguida, fui convidado para a “Filme Cultura”, aonde no início era secretário de redação. Havia o Conselho, com o José Carlos Avellar, o Bernardet, o Sérgio Santeiro, o Ismail Xavier. Uma hora, o Conselho brigou e perguntei ao [Carlos Augusto] Calil [então diretor da Embrafilme]: “E aí?” Resposta: “Faça você”. Eu fiz.
EE – Por quanto tempo?
JCR – O tempo foi bastante, as edições é que foram poucas. Cinco números entre 1981 e 83. Sem dinheiro, sem nada. Dois números só existiram porque eu mesmo catei os artigos. Depois tive um problema com o Calil, fui embora. Recebi o dinheiro do Fundo de Garantia e fiz o vídeo “Punk Molotov”. Li uma matéria sobre os punks no “Jornal do Brasil”, escrita pelo Jamari França. O Circo Voador fez um festival e, como eu era ligado ao anarquismo, pensei sobre esses caras de dezenove anos, do subúrbio, falando em Bakunin. Não gosto de música punk, mas fiquei fascinado por esse conjunto, o “Coquetel Molotov”, o único no Rio. Resolvi dirigir o vídeo, ganhou prêmio, é um clássico, está no Youtube. Uma cópia meio ruim, tirada do VHS. Participamos só eu e o filho do J. B. Tanko. Equipe de duas pessoas. Carregávamos tudo, filmamos em U-matic. “Punk Molotov” é a última coisa proibida pela censura no Brasil. Havia uma mostra de vídeo militante da “Folha de São Paulo” em maio de 1984 e eu o inscrevi: dois vídeos foram proibidos, o meu e mais um sobre a CUT/Conclat. Por causa disso o jornal resolveu cancelar o festival: não aceitavam a censura. Você vê, ainda teve isso. É a maldição. Tudo assim, aos solavancos, mas eu vou também aos solavancos [risos]
EE – [risos] Passando agora para o “Rio Babilônia”, um solavanco dos grandes e uma ponte com o showbiz. Você escreveu o roteiro ao lado do Ezequiel Neves. Como vocês se conheceram?
JCR – Na praia, no Posto 9, por volta de 78. Conheci o Ezequiel Neves e, no mesmo minuto, um olhou para a cara do outro e nos tornamos amigos de infância. Fomos apresentados pelo Paulo Villaça, acho. Tirando o Barão Vermelho, quem ia visitá-lo no hospital era eu, até o dia em que ele fez um gesto, para eu não ir mais. Morreu dois dias depois. Fui muito amigo dele, era uma pessoa que eu adorava e que tem todo um lado oculto. O pessoal do pop achava que era só aquilo.
EE – A “Rolling Stone”, o Barão Vermelho...
JCR – E ele trabalhou com o Antunes Filho. Saiu de Belo Horizonte, trazido pela Maria Bonomi, que foi casada com o Antunes Filho. O Zeca também atuou no “Bandido da Luz Vermelha”. Era nota dez. Ainda não sei se o Neville [de Almeida] me convidou para escrever o roteiro porque me conhecia ou porque o Zeca me indicou. Os dois eram amigos, desde Belo Horizonte. Em suma, o roteiro foi escrito de uma maneira sui generis, acho que nenhum roteiro foi escrito assim, na história do mundo.
EE – [risos] Como?
JCR – [risos] Os três se reuniam, ficavam delirando e um deles, que era eu, escrevia as sequencias. O Neville, talvez com medo de corrermos e registrarmos antes, não deixava que levássemos para casa. Um pedaço não foi escrito por nós: a parte final da personagem da Christiane Torloni, quando ela morre. O Neville sempre disse que queria encontrar um poema do Pablo Neruda e nunca aparecia o diabo do poema. Até que nós demos por acabado o roteiro e, depois, ele colocou o poema. O objetivo do “Rio Babilônia” era fazer um “La Dolce Vita” brasileiro. O roteiro, inclusive, é maior do que o filme. Tem cenas que foram cortadas: o início e o fim. Todo personagem da Cláudia Ohana desapareceu. Era uma vizinha, um pouco daquela menina do final da “Dolce Vita”, inocentezinha. Clac! Foi cortado. Também a jornalista fofoqueira, quem fazia era a Creusa de Carvalho, e tinha uma cena importante para entender a trama, sumiu.
EE – Mexeram pesado na estrutura do roteiro, então.
JCR – Houve problemas no elenco também. A Norma Bengell queria o papel da Christiane Torloni, o politizado. O Neville não quis, talvez por conta da idade, mas poderia ser de qualquer idade. Eu queria que o personagem da Norma ficasse com a Meiry Vieira, por quem eu sou fascinado, até hoje. A Meiry Vieira chegou a ir ao escritório, conversou, mas tudo desmontou. O protagonista foi um drama, ninguém aceitava. O Neville era amigo do Robert De Niro. Convidou o De Niro, mas ele não aceitou. Olha os que recusaram: Nuno Leal Maia, Fábio Júnior, Edson Celulari. De repente nós tivemos a ideia do Joel [Barcelos], que estava fora da idade, mas esteve no primeiro filme do Neville. Por isto, usamos o mesmo nome [Marciano]. A princípio, podia ser a mesma pessoa, não sei quantos anos depois. Um detalhe: eu e o Ezequiel fomos cortados da filmagem.
EE – Com tantas mudanças, o filme é o que você imaginava enquanto escrevia?
JCR – O Ezequiel falava uma coisa engraçada. Quando ele trabalhou na Som Livre, uma secretária de lá viu uma dessas reprises, de noite, e perguntou: “Ezequiel, é comédia, não é?” E é uma comédia. Na verdade, é uma sátira. Agora, a crítica não entendeu nada. Alguns críticos disseram que “o Rio de Janeiro não é assim”. Ora, nós conhecíamos festas, Neville também. Claro que o “Rio Babilônia” era uma farsa exagerada, mas um exagero a partir da realidade. Acho que hoje virou um clássico. Eu tenho a minha cópia do roteiro e a do Zeca, que antes de morrer me deu, com as anotações dele. Ali estão os pedaços que foram tirados. Um aspecto atrapalhou o filme. Como era produzido pela Embrafilme e havia, mais do que uma possibilidade, um desejo de competir com a Boca do Lixo, o Neville cismou que precisaria colocar trepadas demais. Cismou. Eu falei “Neville, mas dura vinte e quatro horas. Com nove trepadas, o personagem vai morrer tuberculoso”...
EE – [risos]
JCR – [risos] Mas aí tivemos que inventar as nove trepadas. Em uma cena, muito bonita, o Marciano sai com duas meninas de patins. Aquilo é fora da história do filme. Era para ser pequeno e ficou grande, porque ele gostou da cena. Por causa disso, precisou tirar outras coisas. Eu não participava da montagem, mas ouvi falar que o Neville deu uma pane, não sabia o que fazer. Botaram na mão do Marco Antonio Cury e da Liège Monteiro, com quem o Neville era casado. Eu teria cortado a cena dos patins e mantido a cena da Ohana, no início e no fim. Outro defeito que vejo no filme é que, para mim, os personagens do Paulo Villaça e do Jardel Filho poderiam ser o mesmo. O Ezequiel também achava. Acontece que nenhum ator sério aceitaria dar a bunda para um travesti, só o Jardel Filho topou. Você vê que os críticos não prestavam atenção. Um deles disse: “É filme de pau mole”. E não é. Na cena da piscina, apareceu um pau duro do Joel. A censura deixou passar porque não viu. Aparece um monstro do Loch Ness, plóft! [risos] Vendo o filme hoje em dia, redescobri a cena. Eu sabia que havia, mas pensei que fosse menor. A americana também é feia e chata, a Kate Lyra teria feito bem melhor.
EE – Na hora do roteiro, você e o Ezequiel Neves tinham a mesma visão de cinema do Neville? Foi fácil ou difícil?
JCR – Não foi difícil. Todos fizeram de tudo, mas se formos dividir o roteiro, eu diria que a participação do Ezequiel foi mais nos diálogos. A minha, na decupagem, e a do Neville, no geral. Foi o primeiro roteiro a aparecer na Embrafilme depois do [Alberto] Cavalcanti, mil anos atrás, a ter duas colunas. A coluna da imagem e a coluna do som. O roteiro criou um bochicho: quem não gostava do filme, dizia que gostava do roteiro.
EE – Depois do “Rio Babilônia” você não voltou ao cinema.
JCR – Esse é um dos fenômenos do mercado brasileiro. O filme deu muitos espectadores, por volta de um milhão, talvez mais. É o único caso de roteirista de blockbuster que não é chamado para um segundo filme. Nunca ouvi falar nisso.
EE – Nessa área de roteiro, como foi a experiência na TV Globo?
JCR – Na primeira vez o Aguinaldo me indicou. Havia um programa chamado “Quarta Nobre”, supervisionado pelo Paulo Afonso Grisolli. Deve ter sido 1982. O programa era de adaptações de obras literárias e caiu para mim “O Médico e o Monstro”, do Robert Luis Stevenson. Escrevi uma paródia do “O Homem dos Olhos de Raio-X”, do Roger Corman. Inventei uma seita de cogumelos, em Santa Tereza. O protagonista se transformava, voltava ao normal, até que uma hora não voltava mais. Igual ao livro. Mas fiz uma besteira: coloquei uma anotação de que não poderia se parecer com o Hulk. Na minha cabeça, existe uma versão do Jean Renoir, chamada “O Testamento do Dr. Cordelier”, em que o ator, o Jean-Louis Barrault, não se transforma. Só fica diferente. Eu quis insinuar isso. Nunca foi para o ar. O Boni descobriu: “Isto é uma apologia às drogas, este autor está querendo nos engabelar!” E era isso mesmo, só que já havia passado por todo mundo, antes de chegar no Boni. Veja só: proibido no vídeo militante e proibido na tv comercial. Então me jogaram para “O Tempo e o Vento”, a minissérie. Viajei para o Rio Grande do Sul com o Doc Comparato e a Regina Braga. Começamos, pararam, dois anos depois continuaram com outras pessoas. Mas o terceiro capítulo fui eu quem escrevi, mantiveram. É a visita de Bento Gonçalves à Ana Terra. Tanto que faço parte dos créditos, colaboração no roteiro.
EE – Você falou em “primeira vez”. Houve, então, uma segunda vez na Globo?
JCR – Nos anos 90 participei de um concurso e entrei de novo. Passei, me colocaram no “Você Decide”. Escrevi cinco episódios, três foram para o ar e um é bem bom, almodóvariano. Chama-se “Mulambo de Gente”, com o Tuca Andrada e a Maria Zilda, dirigido pelo Ary Coslov. Eu já conhecia o Ary Coslov, ele entendeu tudo. É a história de um homem careta, que trabalha em uma loja, se apaixona pela funcionária que é alcoólatra e ele não sabe. No primeiro dia em que ele vai à casa dela, a mulher entra no banho, para transarem. Os óculos do cara caem no chão, ele se abaixa para pegar e, debaixo da cama, estão trinta garrafas vazias de vodca [risos]... A história é verídica, não posso revelar as identidades. Então o “Você Decide” era o seguinte: fica com a doida ou dispensa a doida? O público é romântico, ele ficou com a doida.
EE – Antes disso, em 88, você dirigiu a série “As Cantoras do Rádio”.
JCR – Na Fundação Rio. O Gerardo Mourão me chamou, sugeri esse projeto. As cantoras eram muito boas, ainda com sessenta e poucos anos. A princípio, só coordenaria e dirigiria um programa, o da Carmem Costa. Escalei o Orlando Senna para o da Marlene; o Ivan Cardoso para o da Emilinha; o Guilherme de Almeida Prado para o da Aracy de Almeida. O dinheiro acabou, passou à metade, quis devolver o projeto. Não podia devolver. “Como vou fazer sem diretor?” “Você vai dirigir”. Acabou que eu dirigi todos. Já havia dirigido o “Punk Molotov”, peguei o [fotógrafo] Hélio Silva, através do filho do J. B. Tanko. A Aracy de Almeida desistiu, escalei a Isaurinha Garcia. Consegui também a Ademilde Fonseca. Coloquei no Youtube três números de cada programa. Tem coisa boa, e rara, bem fotografada, bom som.
EE – E a produção intelectual na crítica, nesses anos 80?
JCR – Uma coisa que alcancei de importante é o seguinte: que a “Filme Cultura”, ainda no tempo em que eu era secretário, antes mesmo de ser editor, falasse de filmes que não fossem apenas da Embrafilme. Representou uma abertura para os filmes da Boca. Carlão Reichenbach começou a ser considerado arte, fora de São Paulo, através da “Filme Cultura” e, indiretamente, de mim. Tenho um irmão que mora na Europa e trabalha na Cinemateca Portuguesa. Na época, ele estava em Paris e era secretário da Mary Meerson, viúva do [Henri] Langlois. A Mary tinha muita influência em festivais, principalmente no de Rotterdam. Escrevi uma carta, propus esse diretor e o filme, “Amor Palavra Prostituta”. Lembro que a única pergunta que ela fez: “Mas com esse nome não é pornográfico, é?”
EE – Com uma visão mais generosa, além do Paulo Emílio havia o Rubem Biáfora.
JCR – O Biáfora era um crítico muito interessante, um cineasta muito interessante. Você viu “A Casa das Tentações”?
EE – Vi, gosto bastante do filme.
JCR – Também, consegui revê-lo agora. Nessa linha, é por isto que quero escrever sobre o Watson Macedo. Não sobre a vida, mas é claro que a vida entra em pouco. Quero escrever principalmente sobre a obra. Considero “O Petróleo é Nosso” uma obra-prima. Existe uma cópia em dezesseis milímetros, de onde retiraram a única versão que corre por aí. Peguei uns pedaços da Violeta Ferraz e joguei no Youtube. É um sucesso. Já foi visto até na Malásia. Marlene cantando “Cocaína”, do Sinhô, naquele meu vídeo das “Cantoras do Rádio”: duzentos e tantos acessos, em países estranhíssimos. Alguns países a gente pensa logo que é brasileiro, mas outros não. Cinco pessoas da Ilha de Malta assistindo à Dercy Gonçalves no “A Grande Vedete”? Não pode haver cinco brasileiros na Ilha de Malta, naquele dia. Agora, o por quê, não sei.
EE – O seu último livro foi lançado agora, em 2012, pela Coleção Aplauso. “Johnny Alf: Duas ou Três Coisas Que Você Não Sabe”. Novamente, a pesquisa musical.
JCR – O Johnny Alf me lembra o João do Rio. Veio da classe baixa, mas tem uma obra muito sofisticada, que você não espera. Além disso, mulato, gay, um carioca diferente e meio menosprezado. Conheci o Johnny Alf em um sebo na cidade, era um grande cinéfilo. A primeira frase dele para mim foi uma pegadinha. “Você conhece a versão integral do 'Solaris' do Tarkovsky?” Isso era para destruir a pessoa. Eu não só conhecia como tinha visto: “Claro, tem uma hora e meia a mais” etc., contei tudo. Ficamos amigos para o resto da vida, no mesmo minuto. Ganhei uma bolsa da Rockfeller Foundation para realizar um vídeo sobre ele. Gravei no Vinícius Bar, em Ipanema. O lugar era muito pequeno, tornava difícil a câmera andar. Percebi que o vídeo não sairia como eu queria. Resultado: fui esperto, contratei uma mesa de som, de doze canais, botei na rua. Veja que louco.
EE – Vida real... É preciso se virar mesmo...
JCR – Coloquei no meio da rua, da calçada, de onde se puxava também o som. Assim gravei dois discos e dois vídeos, no mesmo show. Os discos lancei comercialmente, os vídeos, não. Uns trechos estão no Youtube também. Como os meus vídeos não repercutiram da maneira que eu quis, desenvolvi uma enorme rejeição com eles. Fiquei uns quinze, vinte anos, para ver de novo. Ultimamente, voltei a revê-los e não são nada ruins. Em relação ao livro, o empresário dele me ligou. Perguntou se eu queria escrever a biografia, eu disse que sim. Entrei em contato com a Aplauso, dirigida pelo Rubens Ewald Filho. Ele topou e, no meio da história, o Johnny Alf morre. Continuei a levantar esse personagem, que ninguém conhecia. Complexo, diferente, desconhecido até mesmo para mim que era próximo. Havia todo um sofrimento, que ele não deixava transparecer. Mas, se você prestasse atenção, aquilo o atingia. Sempre posto de lado, esquecido. Até quem elogiava não gravava as músicas.
EE – Sempre tratado como um coadjuvante.
JCR – Sempre coadjuvante quando, na verdade, foi o primeiro. Terminei o livro, mas acho que ainda pode ser completado, aos poucos. O Johnny Alf foi educado por uma família que era patroa da mãe dele. Aos dezoito anos, quando resolveu ser pianista profissional, foi expulso da casa. Há um mistério aqui. Aquela história do César Camargo Mariano também é muito louca: o Johnny viveu nove anos na casa dos pais do César Camargo Mariano! Em toda a vida, ele nunca teve casa, é um dos traumas que descobri. Sempre morou em hotel ou nas casas dos outros. O César tinha onze anos quando o Johnny chegou e vinte quando saiu. Era uma espécie de babá do César, dava livros para ler, levava ao cinema. Nas memórias, o César Camargo Mariano comenta sobre isso numa boa. São coisas que descobri. O personagem que não tinha aonde morar, que não tinha família, que não tinha nada e fazia aquele tipo de música sofisticadíssima. Nunca se entregou ao comercialismo. Poderia fazer jingle, quando todo mundo migrou para a Jovem Guarda. Não. Ficou na dele, impávido.
EE – João, nós percorremos a sua trajetória de cabo a rabo, falamos bastante coisa. Gostaria de entender, agora, como você avalia a sua própria produção crítica e de pesquisa.
JCR – Vamos primeiro a uma, depois à outra. Em relação à crítica, eu cato as pérolas que caíram pelo caminho. O que é bom e ninguém prestou atenção. Talvez porque eu espere que, um dia, eu seja uma dessas pérolas catadas. O que é bom e não é percebido no momento não deixa de ser bom, precisa ser trazido. Johnny Alf, João do Rio, Carlão há tempos atrás. Hoje em dia, raramente falo mal de um filme. Quando não gosto, não faço. Não mudei a opinião sobre duas obras, mas acho que fui extremamente grosseiro em duas vezes na minha vida. Um filme do Artur Omar, outro do Gustavo Dahl. Duas vezes em que não gostei, mas falei de um jeito que não precisava. Hoje evito, procuro puxar o lado que considero bom e, quando é muito ruim, se não for racista, não falo nada. Agora, é claro: se houver um filme nazista, vou fazer a crítica e meter o pau.
EE – Importante o posicionamento, sobretudo na crítica.
JCR – Em relação à pesquisa, o negócio é que eu tenho uma memória danada. Sou a antítese dos que dizem que maconha tira a memória. Fico impressionado. Penso até em doar meu cérebro para pesquisa. Então isso também tem a ver com trazer coisas que ficaram de lado. Por exemplo: as chanchadas. Adoro chanchada. Acho a Violeta Ferraz mil vezes melhor do que a Dercy Gonçalves. É preciso que se mostre Violeta Ferraz para que as pessoas vejam que é melhor do que a Dercy Gonçalves. Acho Watson Macedo melhor do que Carlos Manga. É preciso que se mostre Watson Macedo para se ver que é melhor do que o Carlos Manga.
EE – Quais as suas maiores influências na crítica?
JCR – Dos críticos, o Bernardet me influenciou muito, o Paulo Emílio tem um estilo maravilhoso. O que tento, nas minhas críticas e pesquisas, é ter o pensamento rigoroso e não o estilo rigoroso. O estilo tem que ir envolvendo você, ir num crescendo. Uma coisa engraçada: quando conheci Glauber Rocha em 71, nos tornamos bastante amigos e a correspondência, inclusive, consta no livro da Ivana Bentes. Eu estava em Paris e em um momento o Glauber quis ajudar. Na época eu não percebi direito, mas hoje entendo o que ele quis dizer. Ele me entregou duas cartas de indicação. Uma para o Cahiers [du Cinéma], uma para a Positif. “Eu acho que o seu perfil é mais Positif”. Ele tinha razão. A Positif era política, mas também surrealista. O Cahiers, tirando o Godard, era de meninos de burguesia, de direita até. O Truffaut, por exemplo. O Rohmer, então! A crítica militante não precisa ser quadrada.
EE – Nem enfadonha...
JCR – Enfadonha, nunca.
EE – Chama a atenção alguém da sua geração e ligado à Embrafilme ter esse tipo de atitude. O bloqueio da intelligentsia foi terrível ao longo do tempo, um desserviço...
JCR – É uma coisa abominável. Eu releio algumas críticas e, conhecendo os filmes, posso dizer que não viram o filme. Não viam, davam o boneco dormindo, diziam duas ou três linhas e não existia aquilo no filme. Eram críticas feitas para destruir. A Motion Pictures usava um grande representante no Brasil, que ficou aqui por muitos anos. Harry Stone. Um homem muito inteligente, frequentava a sociedade. Quando chegavam os novos efeitos, como os setenta milímetros, dois ou três críticos eram levados para Los Angeles, para assisti-los. Isso é uma troca de favores, que depois se refletia na crítica.
EE – Sim, sim... É difícil encontrar um espírito de independência. São pouquíssimos.
JCR – A geração antes de mim é muito americanizada. Às vezes um mau crítico, um crítico exagerado, consegue dar uma dica mais inteligente. Como cheguei no Carlão? Eu não tinha gostado muito de “Liliam M.”, mas abri “O Globo” e li uma crítica do Salvyano Cavalcanti de Paiva, um irascível daqueles. Falava de “A Ilha dos Prazeres Proibidos”, falava bem, e a crítica deu vontade de ver. Fui ver, e adorei.
EE – O fato de você não ter uma formação acadêmica incomoda ou incomodou você? Já houve o rótulo de “fã” ou de “intuitivo”, algum tipo de preconceito?
JCR – Não, de fã não tem. Intuitivo talvez. Sou bem mais culto que a maioria. Li até os clássicos, Homero, Eurípedes, Suetônio, Cervantes, “Mil e uma noites”, Rabelais, Shakespeare, Molière, o chato do Racine, alguns até no original. O que percebo é um certo preconceito. Do ponto de vista da leis, por eu não ter podido concorrer a certos empregos, que exigiram, a partir de um certo momento, o diploma. Mas tenho o registro de jornalista e, na época, não era preciso o diploma. Foi criada uma categoria de segunda classe, algo contra a lei. Como eu já estou perto de me aposentar e pular fora, não fui brigar. Quando estive na “Filme Cultura”, em que havia aquele Conselho, no início me olharam meio torto. Tanto que me colocaram de secretário. Mas logo depois da terceira reunião, acho que o Bernardet e o Avellar pediram e eu passei a ter direito a voto. Porque eu sabia, digamos assim. Nas novas gerações, existe sempre um pé atrás no início. Depois, acho que não. “Quem é ele?” Quando eu era adolescente, as famílias, principalmente de Minas Gerais, você ia na casa da pessoa e perguntavam: “Meu nome é João Carlos”. “João Carlos de quê?” Isso depois foi substituído por “daonde”, ou seja, daonde você estudou. Eu sou autodidata: como Glauber, Humberto Mauro, Mário Peixoto. Gustavo Dahl, José Medeiros, João do Rio, Hélio Oiticica. Estou bastante confortável na companhia deles. Mas me sinto quase tão maldito quanto Genet e mais isolado que a Ilha da Páscoa. Há momentos em que o dinheiro fica curto.
EE – Vejo colegas às vezes citados como “fãs” e não são. A pessoa tem uma tremenda de uma produção, faz uma diferença gritante para o cenário cultural. No meu caso, isto não ocorre, até porque eu tive a formação acadêmica, mas misturo com a formação humanística, muito mais abrangente...
JCR – O meu currículo na parte escolar é pequeno, mas na parte de trabalho é bem grandinho. Eu tenho livro, tenho vídeo, tenho não sei o quê. Se a pessoa julga certo, equilibra uma parte pela outra. Isso não tem mais jeito. Não vou fazer um curso superior com sessenta anos de idade. Poderia dar aulas e repassar a experiência, mas a legislação proíbe. O Brasil existe para dificultar.
EE – A última pergunta, João. Comenta um pouco sobre o que você acha do panorama atual do cinema brasileiro e previsões para o futuro.
JCR – Acho o seguinte: o cinema brasileiro está em um nó. Passou-se a desprezar o público. Enquanto continuar centrado no governo, a tendência é se tornar cada vez mais burocrático. Se tudo é do governo, daqui a pouco o governo começará a exigir: que fale bem, que não fale mal. “Terra em Transe” talvez não fosse produzido hoje...
EE – … E foi produzido, aliás, com a ajuda do Moniz Vianna, na CAIC do Carlos Lacerda. Apesar de não gostar do filme, teve essa hombridade.
JCR – A CAIC tinha uma coisa aberta. Produziram todo tipo de filme. A Embrafilme do Roberto Farias também, que produziu de Júlio Bressane a Lulu de Barros. Procurava-se fazer uma indústria. Hoje em dia, o cara ganha antes. É um nó. Como é que você vai fazer? Estava lendo um artigo no Estadão. Dos anos 90 para cá, não existiu um cineasta, e já se passaram vinte e três anos, que tenha conhecido o cinema sem o auxílio estatal. Não entra na cabeça da nova geração que é possível. Acham até indesejável. E com o número de pessoas que são formadas nas escolas, o mercado não tem como absorver. O que acontecerá? Na maioria dos casos, o público não quer nem mesmo ver os filmes. São lançados, mas o público se desinteressou. Parece uma obrigação do governo: produzir. Tornou-se uma comodidade, pegar financiamento. Isso se reflete na qualidade dos filmes. Se não se refletisse na qualidade, tudo seria válido. Agora, outros tentam.
EE – Por exemplo?
JCR – Por exemplo, o Canal Brasil exibe filmes nunca lançados no cinema. A maioria deles, você acha que teriam condição? Que alguém iria ver? Alguns até são engraçadinhos, mas porque você está ali sem pagar nada. Há os cineastas vindos do mundo da publicidade: Fernando Meirelles e outros. Como a publicidade é realizada com muitos recursos, eles têm domínio sobre fazer uma boa grua, um bom carrinho etc. Do ponto de vista do mercado, os filmes se dão melhor do que os filmes feitos pelas pessoas que saem do mundo acadêmico por si só. É uma coisa que inventei anteontem: o “Cinema Chuchu”. Inodoro, antisséptico. Vejo filmes que são sobre nada. “Ah, mas Robert Bresson...”. Sim, mas Robert Bresson era Robert Bresson. “Sobre a angústia da juventude...” Ora! Angústia de filhinho de papai. Vão subir a Mantiqueira de fuzil na mão, vão se ralar nas ostras, mas parem de reclamar sem fazer nada! Muitos dos filmes estão na Internet. Os da Alumbramento, por exemplo. Claro que, como iniciativa, são válidos. Mas precisam chegar a um ponto. Não são interessantes, não têm vida: é isso o que eu quero dizer. Não que eles não sejam interessantes como pessoas, mas não têm vidas que suportem obras autobiográficas que interessem a alguém além deles mesmos. Neste caso, até fazem sem dinheiro do governo, tem toda essa qualidade. A tentativa de realizar, de distribuir. Tudo bem, nota dez. Mas quem é que vai querer ver os filmes? São tiros na água. Os outros, que seriam, a princípio, os maus cineastas do mundo publicitário, fazem uma indústria. Pegam um roteiro, com uma história que crêem que interesse a alguém, e vão fazendo. A Tallulah Bankhead, muito viperina, estava certa vez com um produtor que se queixava de ter pago uma fortuna por um bom roteiro, o melhor ator, a melhor atriz, isso, aquilo, não sei mais o quê, e mesmo assim o público ingrato não compareceu. Ela: “Darrrling, reconheça. Se o público não foi, é porque você errou em algum lugar”.
EE – Este divórcio entre público e cinema não é, para você, um detalhe acessório.
JCR – O Pasolini falava sobre o cinema-poesia e o cinema-romance. O cinema industrial viria de Charles Dickens, envolve você. O cinema-poesia, não, teria vindo dos dadaístas. São dois enfoques diferentes. No cinema de vanguarda, o diretor quer aparecer demais, propositalmente. Tanto que existe um gênero, ultimamente: o cinema de festival. O Bernardet comentou sobre isso. Antigamente, os festivais pinçavam, nos países, os melhores filmes daqueles países. Já hoje em dia são produzidos pelo Canal 5 francês e outros, para irem a festivais. Criou-se um novo tipo de filme. Não existe a vontade, a intenção primordial de se comunicar com a plateia do país de onde veio. Procura uma plateia de gatos pingados, no mundo inteiro, que crie um número suficiente para aquele tipo de produção andar. É diferente dos que eram feitos para se pagarem ou repercutirem no próprio local. Representavam alguma coisa. Hoje em dia, representam apenas o triunfo da vontade do diretor. É um desperdício.
7 comentários:
Sensacional, querida.
Parabéns!
Beijo
Excelente entrevista. O João sempre me pareceu um cara reservado,de quem pouco se conhecia,ou quase nada,sobre sua formação e trajetória,à semelhança de um Otávio de Faria e um Muniz Viana. Agora com a entrevista tudo se esclarece e podemos avaliar a dimensão e a importância de seu trabalho.Trabalho este que se torna ainda mais marcante no momento cultural fraco e débil pelo qual passamos.Grande pessoa.Meus parabéns ao Blog e ao entrevistado.
Excelente entrevista. Parabéns!
Andrea, mesmo estando no cinema há muito tempo (bem antes de você nascer), em certas ocasiões percebo que meu conhecimento sobre fatos e pessoas é limitado. Hoje, mais uma vez através de você, tive essa sensação. Tua entrevista , como outras que você fez, é reveladora, prende do começo ao fim,é dessas que a gente não quer interromper a leitura de jeito nenhum. Expõe uma trajetória fascinante. Ainda bem que você existe, que o Estranho Encontro ofereça esse resgate contínuo do cinema no Brasil. Parabéns. Beijos
Oi Andrea! Andei meio sumido do seu blog, navegando por outros mares virtuais, assodado com trabalhos de faculdade, leituras burocratizantes, longos etcéteras, daí quando aporto em seu blog pra ler a crítica sobre o filme "Besame Mucho", me deparo com esse primor de entrevista do João! Parabéns! A entrevista ganhou forma e ritmo de uma conversa de amigos que não se viam há muito. Beijos de seu fã perene.
Adilson querido, obrigada! Beijos
Afrânio, o depoimento do João foi esclarecedor. Quis entrevistar alguém com essa vocação para a sinceridade e para as artes, como você. Alguém erudito mas com histórias para contar, que não fugisse da obrigação de pegar pesado no meio dessa pasmaceira higienizada em que nós vivemos. Quando convidei o João, pensei em trazer essa dimensão toda para as reflexões sobre o cinema de hoje, além de mexer nas memórias do Rio. Grande abraço, obrigada
Obrigada, Setaro!
Alfredo, a entrevista com o João Carlos mostra várias pontas nesse caso de amor com o cinema: a vocação dele para a arte, o estilo independente, as biografias que escreveu. Acredito no cinema como um fenômeno cheio desses detalhes que nem sempre as pessoas conseguem tocar, e que estão não só dentro das telas, mas sobretudo fora delas. Fico feliz de ver que esses bate-papos repercutem na memória afetiva de tanta gente e não acabam quando eu desligo o gravador. Beijos, obrigada
Olá, Rômulo, obrigada. Conversar com o João foi um crescendo de assuntos, coisas que iam fluindo. Apesar da diferença das gerações, nos interessamos por muitos temas em comum. Falar sobre o João do Rio, por exemplo, é uma ponta do iceberg, porque me remete a uma série de assuntos como o decadentismo, o viver à margem, o êxtase pela arte. Para completar, a cereja do bolo: o cinema. Beijos
Uma bela entrevista, parabéns.
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