“Domésticas” (2001), de Nando Olival e Fernando Meirelles, não é exatamente uma obra-prima. Mas pela óbvia utilização do “extrato” social, acabou resvalando nas blitzkriegs politicamente corretas. Se as deixarmos de lado, encontraremos no fim do túnel, por exemplo, as irmãs Papin – do crime que enfeitiçou Jacques Lacan. Duas garotas pacatas, mucamas na casa de sinhô advogado, chacinam uma família. Como vemos, a bestialidade também causa conflitos na mais-valia entre empregado-patrão. E nem sempre a corda estoura do lado economicamente mais fraco.
Em outra vertente, jocosa e cuca fresca, a empregada pode ser a dominatrix coxuda, quase queer, das pornochanchadas brasileiras. Objeto e sujeito do prazer ao mesmo tempo, ela tortura o homem “bem-casado” em “Como É Boa Nossa Empregada” (1972), de Ismar Porto e Victor di Mello.
“Domésticas” não dispõe de psicologismos complexos. Muito menos das lendas cariocas do cinema de picardias. Foi dirigido por dois publicitários paulistanos e se passa em São Paulo, no raiar dos anos 2000. Para a ala masculina, motoboys e Racionais MC. Para a ala feminina, o “baixo italianato” – caipiras do interior ou nascidas na periferia –, rivalizando com imigrantes nordestinas.
Telefones celulares chegavam aos poucos, olhados nas mãos das patroas. E o brega de Lindomar Castilho explica a dimensão filosófica daqueles sonhos mulherísticos, flores de laranjeira. As calcinhas de Wando, porém, estão de fora. A trilha sonora é a mesma do programa do Chacrinha de vinte anos antes, a onda do “eu não sou cachorro, não” e dos medalhões de ouro nos peitos cabeludos.
Como documento de época, é curiosa a reconstrução do imaginário das domésticas em 2001. Não se falava ainda da “classe C”, das fofas empreguetes e das demonstrações de poder diante dos empregadores. Atualmente, a maneira de se absorver as domésticas (e toda uma gama de prestadores de serviços) acontece pela homogeneização. Esquecemos a música da empregada e a música da patroa. A roupa de uma, a roupa de outra. Não se ouve obrigatoriamente Paulo Sérgio, com uniforme azul de pano, na infelicidade do quarto de 2x2. Se escrita hoje, a peça de Renata Mello (que deu origem ao filme) agregaria mais galerias de Cidas, Roxanes, Quitérias, Raimundas e Créos. As mulheres teclariam no notebook, sairiam do gueto e cooptariam as ultrapassadas.
Roxane (Graziella Moretto) cai na prostituição, depois de viver o sonho de modelo e manequim. Raimunda (Cláudia Missura) finalmente se casa. Quitéria (Olívia Araújo) pula de galho em galho, “não fica em casa nenhuma”. Cida (Renata Mello) coloca os chifres no marido “parado”, imóvel diante da TV. Créo é a mulher-bíblia, conformada, em busca da filha evadida com um cover de Mano Brown.
No terreiro da sensualidade, Roxane e Raimunda são antagonistas. Mesmo sem dividirem xicrinhas de café, uma tarde imaginária com as duas acabaria em desastre. Roxane é bruta, atrapalhada. A diva de olhos azuis e pele clara. Chega a ousar: tira fotos nuas. Quando vestida, joga no esqueleto a fina moda da rua José Paulino – o shopping ao ar livre de São Paulo. Já Raimunda se contorce nos amores, é puritana. Quer agarrar o namorado e casar. Nada mais. Interessante que durante a vinheta de Raimunda (sim, a rima é triste) aparece uma história complementar: a do namorado que vacila sobre “o lado certo ou errado”. Ir para o crime ou lavar o chão. Gilvan (Tiago Moraes) dá a chance de uma suposta reflexão sobre a vida injusta de gente sofrida.
“Romance da Empregada” (1987), de Bruno Barreto, aproveitava a cara de pau de mulheres com fones de ouvido, velhos metidos a galã e passeios toscos à ilha de Paquetá, pérola da orla fluminense e lar da Moreninha, de Joaquim Manuel Macedo. Fausta (Betty Faria) e sua trupe muitas vezes descambavam para amizades fortes ou encontros fortuitos com os garotões, filhos das madames. Estes aspectos de crônica são subutilizados em “Domésticas”, que prefere a comédia quase kitsch.
No balanço total, o primeiro longa-metragem de Fernando Meirelles abre as comportas para “Cidade de Deus” (2002), marco do cinema brasileiro. Quem o visse na direção das garotas sem carteira assinada, nem imaginaria o fudúncio de Mané Galinha, Trio Ternura e Zé Pequeno. “Domésticas” cumpre o seu papel, diverte, zomba e às vezes se leva a sério. Como em um reality show, no limiar do escracho que evapora rápido.
E qual o problema do escracho, senhoras e senhores? Ele ilumina a todos. Empreguetes também riem e se emocionam com empreguetes. Madames histéricas, com madames histéricas. “Domésticas” acreditou em fundamentos ecumênicos e, tanto quanto “Romance da Empregada”, imaginou-se visto pela democrática turba. O problema é ter viajado em uma época ruim e ser espezinhado nas intrigas de rodapé, que apenas demonizaram as suas já medianas qualidades.
Em outra vertente, jocosa e cuca fresca, a empregada pode ser a dominatrix coxuda, quase queer, das pornochanchadas brasileiras. Objeto e sujeito do prazer ao mesmo tempo, ela tortura o homem “bem-casado” em “Como É Boa Nossa Empregada” (1972), de Ismar Porto e Victor di Mello.
“Domésticas” não dispõe de psicologismos complexos. Muito menos das lendas cariocas do cinema de picardias. Foi dirigido por dois publicitários paulistanos e se passa em São Paulo, no raiar dos anos 2000. Para a ala masculina, motoboys e Racionais MC. Para a ala feminina, o “baixo italianato” – caipiras do interior ou nascidas na periferia –, rivalizando com imigrantes nordestinas.
Telefones celulares chegavam aos poucos, olhados nas mãos das patroas. E o brega de Lindomar Castilho explica a dimensão filosófica daqueles sonhos mulherísticos, flores de laranjeira. As calcinhas de Wando, porém, estão de fora. A trilha sonora é a mesma do programa do Chacrinha de vinte anos antes, a onda do “eu não sou cachorro, não” e dos medalhões de ouro nos peitos cabeludos.
Como documento de época, é curiosa a reconstrução do imaginário das domésticas em 2001. Não se falava ainda da “classe C”, das fofas empreguetes e das demonstrações de poder diante dos empregadores. Atualmente, a maneira de se absorver as domésticas (e toda uma gama de prestadores de serviços) acontece pela homogeneização. Esquecemos a música da empregada e a música da patroa. A roupa de uma, a roupa de outra. Não se ouve obrigatoriamente Paulo Sérgio, com uniforme azul de pano, na infelicidade do quarto de 2x2. Se escrita hoje, a peça de Renata Mello (que deu origem ao filme) agregaria mais galerias de Cidas, Roxanes, Quitérias, Raimundas e Créos. As mulheres teclariam no notebook, sairiam do gueto e cooptariam as ultrapassadas.
Roxane (Graziella Moretto) cai na prostituição, depois de viver o sonho de modelo e manequim. Raimunda (Cláudia Missura) finalmente se casa. Quitéria (Olívia Araújo) pula de galho em galho, “não fica em casa nenhuma”. Cida (Renata Mello) coloca os chifres no marido “parado”, imóvel diante da TV. Créo é a mulher-bíblia, conformada, em busca da filha evadida com um cover de Mano Brown.
No terreiro da sensualidade, Roxane e Raimunda são antagonistas. Mesmo sem dividirem xicrinhas de café, uma tarde imaginária com as duas acabaria em desastre. Roxane é bruta, atrapalhada. A diva de olhos azuis e pele clara. Chega a ousar: tira fotos nuas. Quando vestida, joga no esqueleto a fina moda da rua José Paulino – o shopping ao ar livre de São Paulo. Já Raimunda se contorce nos amores, é puritana. Quer agarrar o namorado e casar. Nada mais. Interessante que durante a vinheta de Raimunda (sim, a rima é triste) aparece uma história complementar: a do namorado que vacila sobre “o lado certo ou errado”. Ir para o crime ou lavar o chão. Gilvan (Tiago Moraes) dá a chance de uma suposta reflexão sobre a vida injusta de gente sofrida.
“Romance da Empregada” (1987), de Bruno Barreto, aproveitava a cara de pau de mulheres com fones de ouvido, velhos metidos a galã e passeios toscos à ilha de Paquetá, pérola da orla fluminense e lar da Moreninha, de Joaquim Manuel Macedo. Fausta (Betty Faria) e sua trupe muitas vezes descambavam para amizades fortes ou encontros fortuitos com os garotões, filhos das madames. Estes aspectos de crônica são subutilizados em “Domésticas”, que prefere a comédia quase kitsch.
No balanço total, o primeiro longa-metragem de Fernando Meirelles abre as comportas para “Cidade de Deus” (2002), marco do cinema brasileiro. Quem o visse na direção das garotas sem carteira assinada, nem imaginaria o fudúncio de Mané Galinha, Trio Ternura e Zé Pequeno. “Domésticas” cumpre o seu papel, diverte, zomba e às vezes se leva a sério. Como em um reality show, no limiar do escracho que evapora rápido.
E qual o problema do escracho, senhoras e senhores? Ele ilumina a todos. Empreguetes também riem e se emocionam com empreguetes. Madames histéricas, com madames histéricas. “Domésticas” acreditou em fundamentos ecumênicos e, tanto quanto “Romance da Empregada”, imaginou-se visto pela democrática turba. O problema é ter viajado em uma época ruim e ser espezinhado nas intrigas de rodapé, que apenas demonizaram as suas já medianas qualidades.
2 comentários:
Nos comentários que faz na edição em dvd de Cidade de Deus, Fernando Meirelles diz que a maior frustração naquele filme foi a cena onde Buscapé e um amigo tentam assaltar o ônibus onde "Seu Jorge" é cobrador. Diz que ali o tom comédia não foi sentido pelo público, enquanto que a
mesma cena, em Domésticas, deu imenso resultado... Bem, o primeiro só deu espaço ao riso na imagem inicial com a corrida da galinha; enquanto em Domésticas o tom comediante permeia todo o filme. Não sei, há muito tempo vi Romance de Empregada, e nunca mais o revi. Minha lembrança é de uma estória basicamente triste. Domésticas, que primeiro era peça de teatro, diz que nasceu após "pesquisa" com domésticas de verdade, contando suas experiências. Mais ou menos como o documentário Vou Rifar Meu Coração... Ambos, Domésticas e Vou Rifar, passeando pelo tragicômico ouvindo trilha sonora que, antes brega, hoje é cult. A provar mais uma vez, que a vida parece sempre uma mistura indissociável de Marx com Shakespeare... Abraços!
Roberto, essa questão da comédia e da maneira com que o público a recebe é algo muito sutil e pertinente mesmo. O mais constrangedor acontece no sentido inverso: uma cena supostamente "séria" que faz o espectador cair na risada. Acontece comigo, sobretudo em alguns filmes atuais, na linha das sociochanchadas. Quanto à dupla "Vou Rifar Meu Coração" e "Domésticas", chama atenção que o primeiro tenta levar a sério o hype brega e o segundo usa as músicas por osmose, compondo uma trilha sonora que os diretores acreditavam ainda ser ouvida pelas empregadas da época. Quando puder, reveja o "Romance da Empregada". Existe um tom melancólico ali, mas com tiradas hilárias. Um exemplo é a cena em que as meninas se reúnem para cantar "Cama e Mesa", de Roberto Carlos. Abraços!
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