Quando Aracy de Almeida abre a boca, o mundo pára. Todos tremem. Depois, vem o riso incontrolável, a mais idílica tradução dos subúrbios cariocas. Os esgares, as gírias e as mumunhas de Aracy não se explicam, não têm almanaque. Por isto, vê-la no século XXI é um ritual de sangue.
O cafajestíssimo “Quem Tem Medo da Verdade” a recebeu anos antes de se tornar jurada no “Show de Calouros”, de Sílvio Santos. “Quem Tem Medo da Verdade” parece uma alucinação, gravada na Tv Record e dirigida por Carlos Manga. Sim, o próprio. O enfant terrible da Atlântida, companheiro de Oscarito e Grande Otelo. Sócio do Sinatra-Farney Fan Club – um dos futuros pólos da Bossa Nova – e abatedor de lebres na Guanabara.
Com perguntas que soavam afirmações de império, Manga ajeitava o bigode à la Errol Flynn, sapecava baforadas no cigarro. Envolto na neblina, comandou o “Quem Tem Medo da Verdade” entre 1968 e 1971. Chamou gente célebre: Aracy, Roberto Carlos e Grande Otelo, por exemplo. Advogados de defesa, advogados de acusação, perguntas indiscretas, gritos e achaques na vida dos entrevistados. O locutor Sylvio Luiz estava lá (um dos jurados), ainda na flor dos seus anos.
“O Marginal” (1974) surge nesse tempo em que Carlos Manga já batia ponto na televisão. Acostumado ao cinema, trouxe a estética para a TV. Em “O Marginal”, o diretor não abandonou as origens e carregou as mesmas fixações da Atlântida: Leina Cury (Darlene Glória) é vedete do rebolado, o filme é dedicado (literalmente) a Oscarito, o clima de narrativa hollywoodiana é quebrado por alguma brasilidade. Temos, ainda, a imersão no crime da Boca do Lixo – aspecto que rompe com as prototípicas chanchadas. E, ao invés do Rio de Janeiro natal, o enredo em São Paulo.
Como já se pode perceber, “O Marginal” é um elemento espúrio na vastíssima tradição do cinema policial brasileiro. Realizado por um bamba das chanchadas, construiu uma fusão entre o borogodó e o ódio. Colocou os dois na mesma panela da denúncia sociológica. Argumento do comunista Dias Gomes, história original de Ivana de Carvalho (esposa de Manga), vida e obra do meliante Osvaldo de Moraes (Tarcísio Meira).
Vado não teve infância, sofreu horrores, puxou carros, se virou como deu. Surgem daí as explicações psicologizantes, que lembram os moleques de “Os Anjos da Cara Suja” – o mesmo que Manga poderia ter satirizado na Atlântida, com José Lewgoy no papel de canalha e Oscarito no de bufão.
Mas as pretensões de “O Marginal” vão além. A trilha sonora de Roberto e Erasmo Carlos (“pra que nasceu/ se não viveu”) deixam o pé no imaginário popular dos anos 70, somando-o com firulas. Com uma aspiração à glória intelectual. O filme transita nesse limbo e ainda tem a pitada (oculta) de Federico Fellini, o meio-campista que dá o ar da graça.
Irretocável na cara de pau, Carlos Manga afirma que copiou por “a” mais “b” uma das mandingas de Fellini. Ao visitar Roma, conseguiu encontrá-lo na Cinecittà. Assimilou os gestos de Federico, acompanhou cada passo, viu-o apagar as luzes do set e desarticular os atores. Em São Paulo e produzido por Oswaldo Massaini, Manga fez o mesmo. Atormentou a dupla Darlene Glória-Tarcisão, antes do momento culminante em “O Marginal”, quando se estapeiam quase à morte.
Fancho rico (Carlos Kroeber) e travestis furrecas, socialite (Vera Gimenez) e mariposas. Jogatinas de televisão e fragoroso marketing (“o melhor do capitalismo é ser capitalista”). Em “O Marginal”, a ambição de Vado serve para retratar a fauna e os ambientes. O bom mocismo até pode tirá-lo do presídio, mas o coloca em uma vida pacata que não era a dele. Não existe redenção, apenas a consequência firme e natural para o homem desenganado.
O argumento do filme esbarra no ethos de Manga e nas atividades que o próprio desempenhava – o tal capitalismo e o trabalho na TV – dando-lhe imensa estabilidade econômica. Vado é o anti-Manga, cuja ambição foi um dos melhores momentos do cinema brasileiro, ao fazer parte de uma geração que sacudiu a inércia do meio. Vado é cerceado justamente pelo status quo: não há nada que ele possa fazer. A individualidade perde.
Anselmo Duarte corre por fora, na barricada dos veteranos. Sacrilégio dos sacrilégios, Anselmo é dublado, o que lhe retira os “éles” e os “ésses” originais, tão característicos. Também ostenta uma pança de araque, afastando de vez a aura de galã. Sobra para Tarciso Meira, no topo da fama, o namoradinho do Brasil. Vale ressaltar que Carlos Manga ainda não havia dirigido Anselmo, grande nome da era de ouro dos estúdios. Cyl Farney sempre amealhava o posto de mocetão.
Se tivesse recebido as honras da falecida cerveja Cascatinha, em mesa qualquer do Nova Capela, “O Marginal” poderia ter a malandragem que cabe melhor na trajetória de Manga. A Lapa e a Praça Tiradentes, o oposto de Hiroito e da Boca do Lixo. Mesmo assim, é inegável que se trata de um relâmpago, de uma violência para a qual o diretor não voltou e poderia. Encerrou ali as peripécias no crime, frustrando boa parte do público. De longe, a velha Araca gritaria faceira o encorajador e trôpego vaticínio: “Ô, Manga, você está muito prosa, mas merece. Vou te mandar dez paus.”
O cafajestíssimo “Quem Tem Medo da Verdade” a recebeu anos antes de se tornar jurada no “Show de Calouros”, de Sílvio Santos. “Quem Tem Medo da Verdade” parece uma alucinação, gravada na Tv Record e dirigida por Carlos Manga. Sim, o próprio. O enfant terrible da Atlântida, companheiro de Oscarito e Grande Otelo. Sócio do Sinatra-Farney Fan Club – um dos futuros pólos da Bossa Nova – e abatedor de lebres na Guanabara.
Com perguntas que soavam afirmações de império, Manga ajeitava o bigode à la Errol Flynn, sapecava baforadas no cigarro. Envolto na neblina, comandou o “Quem Tem Medo da Verdade” entre 1968 e 1971. Chamou gente célebre: Aracy, Roberto Carlos e Grande Otelo, por exemplo. Advogados de defesa, advogados de acusação, perguntas indiscretas, gritos e achaques na vida dos entrevistados. O locutor Sylvio Luiz estava lá (um dos jurados), ainda na flor dos seus anos.
“O Marginal” (1974) surge nesse tempo em que Carlos Manga já batia ponto na televisão. Acostumado ao cinema, trouxe a estética para a TV. Em “O Marginal”, o diretor não abandonou as origens e carregou as mesmas fixações da Atlântida: Leina Cury (Darlene Glória) é vedete do rebolado, o filme é dedicado (literalmente) a Oscarito, o clima de narrativa hollywoodiana é quebrado por alguma brasilidade. Temos, ainda, a imersão no crime da Boca do Lixo – aspecto que rompe com as prototípicas chanchadas. E, ao invés do Rio de Janeiro natal, o enredo em São Paulo.
Como já se pode perceber, “O Marginal” é um elemento espúrio na vastíssima tradição do cinema policial brasileiro. Realizado por um bamba das chanchadas, construiu uma fusão entre o borogodó e o ódio. Colocou os dois na mesma panela da denúncia sociológica. Argumento do comunista Dias Gomes, história original de Ivana de Carvalho (esposa de Manga), vida e obra do meliante Osvaldo de Moraes (Tarcísio Meira).
Vado não teve infância, sofreu horrores, puxou carros, se virou como deu. Surgem daí as explicações psicologizantes, que lembram os moleques de “Os Anjos da Cara Suja” – o mesmo que Manga poderia ter satirizado na Atlântida, com José Lewgoy no papel de canalha e Oscarito no de bufão.
Mas as pretensões de “O Marginal” vão além. A trilha sonora de Roberto e Erasmo Carlos (“pra que nasceu/ se não viveu”) deixam o pé no imaginário popular dos anos 70, somando-o com firulas. Com uma aspiração à glória intelectual. O filme transita nesse limbo e ainda tem a pitada (oculta) de Federico Fellini, o meio-campista que dá o ar da graça.
Irretocável na cara de pau, Carlos Manga afirma que copiou por “a” mais “b” uma das mandingas de Fellini. Ao visitar Roma, conseguiu encontrá-lo na Cinecittà. Assimilou os gestos de Federico, acompanhou cada passo, viu-o apagar as luzes do set e desarticular os atores. Em São Paulo e produzido por Oswaldo Massaini, Manga fez o mesmo. Atormentou a dupla Darlene Glória-Tarcisão, antes do momento culminante em “O Marginal”, quando se estapeiam quase à morte.
Fancho rico (Carlos Kroeber) e travestis furrecas, socialite (Vera Gimenez) e mariposas. Jogatinas de televisão e fragoroso marketing (“o melhor do capitalismo é ser capitalista”). Em “O Marginal”, a ambição de Vado serve para retratar a fauna e os ambientes. O bom mocismo até pode tirá-lo do presídio, mas o coloca em uma vida pacata que não era a dele. Não existe redenção, apenas a consequência firme e natural para o homem desenganado.
O argumento do filme esbarra no ethos de Manga e nas atividades que o próprio desempenhava – o tal capitalismo e o trabalho na TV – dando-lhe imensa estabilidade econômica. Vado é o anti-Manga, cuja ambição foi um dos melhores momentos do cinema brasileiro, ao fazer parte de uma geração que sacudiu a inércia do meio. Vado é cerceado justamente pelo status quo: não há nada que ele possa fazer. A individualidade perde.
Anselmo Duarte corre por fora, na barricada dos veteranos. Sacrilégio dos sacrilégios, Anselmo é dublado, o que lhe retira os “éles” e os “ésses” originais, tão característicos. Também ostenta uma pança de araque, afastando de vez a aura de galã. Sobra para Tarciso Meira, no topo da fama, o namoradinho do Brasil. Vale ressaltar que Carlos Manga ainda não havia dirigido Anselmo, grande nome da era de ouro dos estúdios. Cyl Farney sempre amealhava o posto de mocetão.
Se tivesse recebido as honras da falecida cerveja Cascatinha, em mesa qualquer do Nova Capela, “O Marginal” poderia ter a malandragem que cabe melhor na trajetória de Manga. A Lapa e a Praça Tiradentes, o oposto de Hiroito e da Boca do Lixo. Mesmo assim, é inegável que se trata de um relâmpago, de uma violência para a qual o diretor não voltou e poderia. Encerrou ali as peripécias no crime, frustrando boa parte do público. De longe, a velha Araca gritaria faceira o encorajador e trôpego vaticínio: “Ô, Manga, você está muito prosa, mas merece. Vou te mandar dez paus.”
11 comentários:
andrea, vc pretende escrever algo sobre o delirante e apaixonante "febre do rato"?
Texto excelente, acredito que seja um dos melhores filmes policiais nacionais de longe. O trabalho e a entrega do Tarcísio nesse longa é incrível. Destaco a montagem de Roberto Leme, o Robertinho, técnico esquecido que trabalhou muito no cinema da Boca do Lixo posteriormente.
Por favor Andrea , escreva sobre o filme``A Maldição de Sampaku´´.
Obrigado.
Fábio, a idéia é boa. Está aí um texto que cai bem...
Matheus, "O Marginal" é um filme obrigatório no cinema policial brasileiro. Poucos sabem, mas Tarcísio Meira teria outra participação relevantíssima, com o papel de Mariscott em "República dos Assassinos".
Anônimo: sugestão anotada. Valeu a menção ao Guilherme de Almeida Prado.
Tarcísio Meira já interpretou o
Ilústre Policial e Homem de Ouro Mariel Maryscott Araújo de Mattos em``República dos Assassínos´´ , então Andrea..? Sem embargo , a Biografía do Tira da Le cocq sempre foi utilizada em muitas Produções Nacionais , seja no Cinema ou TV.
Muito obrigado..!!
Ele mesmo, Ricardo! É interessante ver o "República dos Assassinos", do Miguel Faria Jr, e o "Eu Matei Lúcio Flávio", do Antonio Calmon. Estilos totalmente diferentes, mas usando o mesmo Maryscott de base. Os dois filmes têm textos aqui no blog.
Oi Andrea, nesta semana vai passar este filme no Canal Brasil. Um beijo! Valeu!
Oi,me desculpe, pois esqueci de colocar a data de exibição; será no sábado (06/10) às 4 da madrugada. Valeu!
Hola Andrea..!! Certamente que Já ví e reví Várias vezes Todas as Produções Citadas por Tí e inclusive já as comentei aquí no Blog.. não sei se Te lembras. ``Eu Matei Lúcio Flávio´´do Calmon é , de Longe o Meu Favorito.
Além disso tenho Vasto Material Sobre este Ilustre e sempre Incompreendido ( e hoje , nesses tempos de``democracia´´,tão Nescessário )Homem de Ouro da Lei. Só lamento que , mesmo na Internet, haja tão pouco Material p/ Pesquisa Ofertado Sobre Ele: uma Pena em dias que a Juventude Glorifica/Se identifica com o bandido.
Saudações..!!
Um verdadeiro clássico do cinema nacional que marcou minha juventude quando o assisti pela primeira vez no Canal Brasil e que trás atuações memoráveis de Tarcísio Meira e Darlene Glória nos papéis principais. Realmente um filme excelente que também era adorado pelo meu querido e finado Pai Luíz, que Deus o tenha hoje e sempre. Amém.
Encontrei uma cópia no OK.RU,vou assistir.O texto da Andrea só melhora com o tempo.
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