Desde a primeira vez em que assisti a “Tormenta” (1982), imaginei a seguinte vinheta psicanalítica: um tio, funcionário público, caminha no escaldante centro do Rio. Pendurou o paletó na repartição e saiu para fazer o que faz diariamente: bater perna, encontrar os amigos, almoçar na Taberna da Glória. Acontece que naquele dia, em especial, o calor castigava. Tropeçando em outros ociosos, na rua do Passeio, fica em dúvida se entra na Mesbla, até que espia os letreiros do Cine Palácio e descobre que está passando um filme chamado “Tormenta”. Gosta do título, do som da palavra: “Tormenta”. Compra um ingresso e entra, no intuito de aproveitar o ar condicionado fortíssimo do estabelecimento.
A sala imensa está quase vazia: escura, gelada e úmida como uma caverna. A narração feminina, monótona, provoca sono. O funcionário cochila aos pulinhos. Mistura ficção e realidade. O filme se passa em uma ilha, onde estão isoladas madrasta (Cris, Hileana Menezes) e enteada (Bárbara, Bianca Byington). Ele pensa que a ilha, na verdade, é a repartição. Junto com outros colegas esperam um barco. O barco nunca chega, até que descobrem que faltou um papel a ser protocolado. Sem protocolo a burocracia não anda, aprendeu desde cedo. Em uma cena mais movimentada, desperta assustado, sem concluir o processo 19820635/8537, de liberação da embarcação marítima que os salvaria.
Entra o flash do único varão do filme: Lucas (Renato Coutinho). Um homem resoluto, de cerca de 50 anos. No Cine Palácio, o tio repara que ele em tudo parece o fiel Mascarenhas, que comanda a seção de clipes no almoxarifado da repartição. Mascarenhas tem aquela pachorrice botafoguense, o épico das grandes ilusões, e esconde uma pequena flâmula do time em cima do armário de cobre. Ao ver o gordo chefe vascaíno adentrar no recinto, Mascarenhas muda a bandeirola de posição, em um infindável ciclo neurótico. Gotas escorrem-lhe pelo rosto, as mãos gelam.
Se nem o Mascarenhas imaginário consegue sair do château cinza que habita das 9 às 17, segundas às sextas, que dirá Lucas. Lucas é o elemento estranho, o perigoso, que leva ao cat fight entre Cris e Bárbara, razão de ser de “Tormenta”.
Dirigido por Umberto Molo, o filme coloca Lucas em uma prisão particular: um barquinho. Uma escuna saída das peças de Eugene O´Neill e que confunde o nosso pobre tio dentro do cinema. Ele jura de pés juntos ter visto algo do tipo há anos atrás, quando ainda solteiro e habitual nas matinês da Cinelândia. A aflição o cega, ele sente o mal estar, até que chega à sentença: “'Anna Christie'! Só pode ser isto! Com aquela moça... aquela pederasta [sic]... a Greta Garbo!”
De fato, “Tormenta” parece muito ao longe o preto-e-branco da MGM, estrelado por uma personagem que atendia clientes no cais do porto. Os dois filmes têm o clima de água salgada, de solidão, de morte. Mas Umberto Molo usa o mar apenas para criar uma convivência forçada entre Cris e Bárbara. Lucas leva as duas de barco para uma ilha, deixa-as por lá e promete voltar.
Nada mais inóspito do que “A Ilha”, como sabia Walter Hugo Khouri. Em um lugar perdido e longe da civilização, os conflitos devem ficar mais puros, mais cruéis, em um estado de natureza sem os adereços da vida urbana. Sem as falsas moralidades, sem as convenções e cheios de sangue nos olhos. Resumindo: Bárbara e Cris que se virem. Vão ter que se tolerar a fórceps.
Acontece que Lucas não volta. Desapareceu nas brumas do oceano, que já se misturam nas gostosas baforadas de cigarros Minister, invadindo a sala escura e inebriando o tio. Ainda no Cine Palácio, ele escuta a voz de Cris, baixinha, sussurrante. Umberto Molo usou o recurso do voice over e fez da mulher uma espécie de pregadora onisciente. Um Eduardo Mascarenhas feminino, batendo papo cabeça nos bastidores do “TV Mulher”. Ela conta o desespero de estar ali e as pirações juvenis de Bárbara, que sente ciúme mortal de Lucas. A garota tem medo da corrida inglória de nunca mais ser a menininha do pai, abraçada pela mão felpuda que tanto amou.
Assim como o relógio de ponto, emendado com fita isolante (“meus préstimos ao colega do almoxarifado, sempre eficiente”), a palavra “tormenta” revela um duplo sentido. De um lado, é o acidente meteorológico em alto mar. De outro, é a morte do pai/marido, a crise espiritual entre as mulheres. Temos aqui um filme sobre o destruidor do próprio lar, alguém que passa a foice na família, como um xamã, servindo à causa oculta dessa experiência: o crescimento de Bárbara, irreversível. O banho de cachoeira de Hileana, com pelos e água a rodo, é um mero detalhe.
No dia seguinte, vejam que o augusto funcionário carimba as folhas de protocolo um tanto zonzo e sem entender o súbito retorno de Lucas nos instantes finais. Trata-se talvez de um sonho, uma metáfora, como diria o Eduardo Mascarenhas na televisão. Finalmente agradecerá ao colega de almoxarifado pela fita isolante (“me quebraste um galho”) e marcará um providencial almoço, sem perceber que ambos possuem o mesmo sobrenome e, quem sabe, sejam a mesma onírica pessoa.
A sala imensa está quase vazia: escura, gelada e úmida como uma caverna. A narração feminina, monótona, provoca sono. O funcionário cochila aos pulinhos. Mistura ficção e realidade. O filme se passa em uma ilha, onde estão isoladas madrasta (Cris, Hileana Menezes) e enteada (Bárbara, Bianca Byington). Ele pensa que a ilha, na verdade, é a repartição. Junto com outros colegas esperam um barco. O barco nunca chega, até que descobrem que faltou um papel a ser protocolado. Sem protocolo a burocracia não anda, aprendeu desde cedo. Em uma cena mais movimentada, desperta assustado, sem concluir o processo 19820635/8537, de liberação da embarcação marítima que os salvaria.
Entra o flash do único varão do filme: Lucas (Renato Coutinho). Um homem resoluto, de cerca de 50 anos. No Cine Palácio, o tio repara que ele em tudo parece o fiel Mascarenhas, que comanda a seção de clipes no almoxarifado da repartição. Mascarenhas tem aquela pachorrice botafoguense, o épico das grandes ilusões, e esconde uma pequena flâmula do time em cima do armário de cobre. Ao ver o gordo chefe vascaíno adentrar no recinto, Mascarenhas muda a bandeirola de posição, em um infindável ciclo neurótico. Gotas escorrem-lhe pelo rosto, as mãos gelam.
Se nem o Mascarenhas imaginário consegue sair do château cinza que habita das 9 às 17, segundas às sextas, que dirá Lucas. Lucas é o elemento estranho, o perigoso, que leva ao cat fight entre Cris e Bárbara, razão de ser de “Tormenta”.
Dirigido por Umberto Molo, o filme coloca Lucas em uma prisão particular: um barquinho. Uma escuna saída das peças de Eugene O´Neill e que confunde o nosso pobre tio dentro do cinema. Ele jura de pés juntos ter visto algo do tipo há anos atrás, quando ainda solteiro e habitual nas matinês da Cinelândia. A aflição o cega, ele sente o mal estar, até que chega à sentença: “'Anna Christie'! Só pode ser isto! Com aquela moça... aquela pederasta [sic]... a Greta Garbo!”
De fato, “Tormenta” parece muito ao longe o preto-e-branco da MGM, estrelado por uma personagem que atendia clientes no cais do porto. Os dois filmes têm o clima de água salgada, de solidão, de morte. Mas Umberto Molo usa o mar apenas para criar uma convivência forçada entre Cris e Bárbara. Lucas leva as duas de barco para uma ilha, deixa-as por lá e promete voltar.
Nada mais inóspito do que “A Ilha”, como sabia Walter Hugo Khouri. Em um lugar perdido e longe da civilização, os conflitos devem ficar mais puros, mais cruéis, em um estado de natureza sem os adereços da vida urbana. Sem as falsas moralidades, sem as convenções e cheios de sangue nos olhos. Resumindo: Bárbara e Cris que se virem. Vão ter que se tolerar a fórceps.
Acontece que Lucas não volta. Desapareceu nas brumas do oceano, que já se misturam nas gostosas baforadas de cigarros Minister, invadindo a sala escura e inebriando o tio. Ainda no Cine Palácio, ele escuta a voz de Cris, baixinha, sussurrante. Umberto Molo usou o recurso do voice over e fez da mulher uma espécie de pregadora onisciente. Um Eduardo Mascarenhas feminino, batendo papo cabeça nos bastidores do “TV Mulher”. Ela conta o desespero de estar ali e as pirações juvenis de Bárbara, que sente ciúme mortal de Lucas. A garota tem medo da corrida inglória de nunca mais ser a menininha do pai, abraçada pela mão felpuda que tanto amou.
Assim como o relógio de ponto, emendado com fita isolante (“meus préstimos ao colega do almoxarifado, sempre eficiente”), a palavra “tormenta” revela um duplo sentido. De um lado, é o acidente meteorológico em alto mar. De outro, é a morte do pai/marido, a crise espiritual entre as mulheres. Temos aqui um filme sobre o destruidor do próprio lar, alguém que passa a foice na família, como um xamã, servindo à causa oculta dessa experiência: o crescimento de Bárbara, irreversível. O banho de cachoeira de Hileana, com pelos e água a rodo, é um mero detalhe.
No dia seguinte, vejam que o augusto funcionário carimba as folhas de protocolo um tanto zonzo e sem entender o súbito retorno de Lucas nos instantes finais. Trata-se talvez de um sonho, uma metáfora, como diria o Eduardo Mascarenhas na televisão. Finalmente agradecerá ao colega de almoxarifado pela fita isolante (“me quebraste um galho”) e marcará um providencial almoço, sem perceber que ambos possuem o mesmo sobrenome e, quem sabe, sejam a mesma onírica pessoa.
8 comentários:
Andrea, não sei do filme, mas seu texto é absolutamente genial!
Bjs
Obrigada, Sergio, quis fazer uma crônica que levasse àquele 1982 escaldante! Bjs
tb nunca ouvi falar sobre tal filme, mas seu texto está muito bom mesmo. Que ideia boa!
e eu continuo atrás do filme, e nada...
:(
Saudades da ótima atriz e pessoa sensacional, a excelente Hileana Menezes, viúva do genial fotógrafo e artista plástico Mario Carneiro, tbm muitaexpressiva no bizarro ESPELHO DA CARNE.
Edu, obrigada. É uma forma de contextualizar o período de um filme obscuro.
Operasdesabao, infelizmente o filme é raríssimo. Torcer para o Canal Brasil exibir um dia desses.
Sitedecinema, a Hileana Menezes não compromete no "Espelho de Carne", ainda que a participação dela acabe sendo diminuída pela lenda que o próprio filme se tornou.
Acho *sou o mesmo SitedeCinema...mudei por esquecer senhas e ser um asno em informática) a Hileana expressiva pacas em O ESPELHO... e aqui. Molo tbm dirigiu brilhantemente a comédia-infelizmente mal lançada-POR INCRÍVEL UE PAREÇA
"A vida é a sombra de um sonho que está fugindo".
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