A imprensa popular sempre gostou de fazer um cafuné no rostinho das lendas urbanas. Ketchups contaminados, velhas do saco, loiras do banheiro, epidemias inventadas, musos e musas enlouquecidos. Atire a primeira edição do NP quem teve a azia de nunca se importar com tantos rocamboles sórdidos e primaveris.
O injustiçado bebê capeta, por exemplo, rendeu quilos e quilos de textos. Mães de família se ajoelhavam, levantavam os braços aos céus, clamando pelo Juízo Final. Adolescentes – estas criaturas cínicas – repetiam a saga do infante, contornando os bedéis e as aulas de química.
Ao invés do bas fond, aterrissemos no society paulistano. Elza Leonetti do Amaral era outra figura carismática, que alcançou alguma celebridade nos idos da década de 70. A “viúva negra”. Misteriosa, rica, pantera. O currículo semelhante a um giallo: cheio de maridos mortos (por ela) em circunstâncias invariavelmente mal explicadas.
Imagine a combustão de colocá-la em um filme. Agora imagine-a contracenando com o “Zé do Caixão”. Mesmo que o Josefel Zanatas estivesse à paisana e quem estrelasse fosse o tal de José Mojica Marins – até porque, no imaginário popular, criador e criatura se misturam.
Em “Perversão” (1979), de Mojica, Elza aparece e arrasa no pancake. Na roupitcha, no patchouli. Faz uma ponta como a advogada que acusa o Comendador Vitório Palestrina (Mojica) de ter praticado uma terrível atrocidade. Estuprar e arrancar, com os dentes, o mamilo de Sílvia (Nádia Destro).
Muito da atmosfera de “Perversão” deve-se justamente a essa curiosa aliança entre Mojica e Elza. Empolgado com os relatórios da amiga, o diretor tentou criar um universo de grã-finagem. Colocou um comendador (!) de origem italiana, sobrenome “Palestrina” (!); restaurante no centrão de São Paulo (!); caminhadas românticas na praia (!).
Mas se acalmem, o filme não é tão hilário assim o tempo todo. Precisamos encarar, e aí está a charada, os outros elementos de Mojica: o ceticismo, o ódio encalacrado, a violência – que “Perversão” utiliza sob vinheta de “vingança feminina”, livremente inspirada em Elza. Na “história de Elza”, desta vez longe de leoazinhas e pradarias.
E sem a obsessão do “filho perfeito” de “À Meia-Noite Levarei sua Alma” (1964) ou “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1966), a premissa nietzschiana continua por outros caminhos no filme de Mojica. Geralmente surge na linha dos fortes versus os fracos, na debilidade social, na ridicularização dos puxa-sacos do Comendador. Cada qual mais lamentável que o outro, batendo palma, esperando ouvir o que barrigudo tem a dizer.
Chama atenção, ainda, o olhar de desprezo de Vitório para uma das cocotas: “Vai para o inferno! Prostituta de circuito fechado da sociedade!” Falta de paciência do Comendador. Achou a garota fácil demais, frágil demais, aboletada de bruços na cama.
Apesar do raciocínio intrincado, deve-se dizer que existe uma escorregada religiosa nos créditos iniciais: “O poder monetário pode fabricar um deus – mas jamais comprará a DEUS.” Vindo de um ateu cinematográfico, a frase causa espanto.
No aspecto populacional, “Perversão” entope a tela de gente. Homens, casais, um gay, mulheres apalpadas por velhos repugnantes. O sexo, aliás, ganha um tom inacreditável nos momentos em que Mojica alisa a própria (e caída) pança. As caras de cio do ator-diretor lembram as fotos que ele distribuía aos alunos do curso de artes dramáticas.
O espectador, por sua vez, não sabe se ri ou se chora ao ver as unhas imensas agarrando copos de uísque ou dezipando a braguilha ou se encaixando bonitas entre as polpas femininas. Quando o cinema era forte, debochava e incomodava a si mesmo, lá estava Mojica. Porque o Comendador vive o galã. Acreditem. Dublado, com vozeirão canalha. Seminu, de cueca e indefectíveis meias.
Quebra total de expectativas, ainda mais quando o riff que antecede as entradas em cena do personagem é retirado de “A Ponte do Rio Kwai”. Alec Guiness – que em 1979 já havia encarado o Ben Obi-Wan Kenobi em “Guerra nas Estrelas” – poderia chamar o Yoda e ter longas conversas sobre o uso latino-americano da trilha sonora. Afinal, diria o enrugado mestre, “protagonista do clássico filme ele era”.
Crounel Marins, filho do diretor, escreve os diálogos. Crounel havia participado do projeto anterior de Mojica Senior: “Mundo, Mercado do Lixo” – que viraria “Mundo, Mercado do Sexo” –, rodado com pupilos do famoso curso paterno.
Durante “Perversão”, trabalharam com o título de “Estupro!”, posteriormente alterado para suavizar o drama. Diriam os psicanalistas que até faz sentido, mas as platéias não se sensibilizaram. Obra fatal, o escândalo do título talvez a ajudasse.
Entretanto, o fracasso marcou o fim dos estúdios de Mojica na Mooca, desenrolar de uma sina agourenta e massacrante, que se arrastou até a redenção nos anos 90. Havia pouco dinheiro na mesa. Inclusive para se sustentar, pagar as contas, terminar o dia.
No meio de tudo, o pavê de “Perversão” esconde um requinte gore, esporádico. Os machucados nas partes do Comendador, o bico do seio mostrado num pote. E os convidados em chamas, à la Buñuel, parecem ter saído de uma janela surreal. Alguns fingem ojeriza, alguns fingem apoio, alguns debocham de Vitório pelas costas. A crítica à riqueza do Comendador é, portanto, dúbia e não tão óbvia. É vilão, doentio, atleta de alcova, imbecilizado.
Para melhorar, quando menos se espera ouve-se a cara de pau de um “Love, soft as an easy chair”, “Teach me tiger”, “Live and let die”, “Je t'aime... moi non plus”. Enchendo a munheca de densidade e barbeiragem, planos fechados, cortes e repetições propositais, acaba-se concluindo que “Perversão” foi um sonho negro, atormentando os sentidos.
O injustiçado bebê capeta, por exemplo, rendeu quilos e quilos de textos. Mães de família se ajoelhavam, levantavam os braços aos céus, clamando pelo Juízo Final. Adolescentes – estas criaturas cínicas – repetiam a saga do infante, contornando os bedéis e as aulas de química.
Ao invés do bas fond, aterrissemos no society paulistano. Elza Leonetti do Amaral era outra figura carismática, que alcançou alguma celebridade nos idos da década de 70. A “viúva negra”. Misteriosa, rica, pantera. O currículo semelhante a um giallo: cheio de maridos mortos (por ela) em circunstâncias invariavelmente mal explicadas.
Imagine a combustão de colocá-la em um filme. Agora imagine-a contracenando com o “Zé do Caixão”. Mesmo que o Josefel Zanatas estivesse à paisana e quem estrelasse fosse o tal de José Mojica Marins – até porque, no imaginário popular, criador e criatura se misturam.
Em “Perversão” (1979), de Mojica, Elza aparece e arrasa no pancake. Na roupitcha, no patchouli. Faz uma ponta como a advogada que acusa o Comendador Vitório Palestrina (Mojica) de ter praticado uma terrível atrocidade. Estuprar e arrancar, com os dentes, o mamilo de Sílvia (Nádia Destro).
Muito da atmosfera de “Perversão” deve-se justamente a essa curiosa aliança entre Mojica e Elza. Empolgado com os relatórios da amiga, o diretor tentou criar um universo de grã-finagem. Colocou um comendador (!) de origem italiana, sobrenome “Palestrina” (!); restaurante no centrão de São Paulo (!); caminhadas românticas na praia (!).
Mas se acalmem, o filme não é tão hilário assim o tempo todo. Precisamos encarar, e aí está a charada, os outros elementos de Mojica: o ceticismo, o ódio encalacrado, a violência – que “Perversão” utiliza sob vinheta de “vingança feminina”, livremente inspirada em Elza. Na “história de Elza”, desta vez longe de leoazinhas e pradarias.
E sem a obsessão do “filho perfeito” de “À Meia-Noite Levarei sua Alma” (1964) ou “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1966), a premissa nietzschiana continua por outros caminhos no filme de Mojica. Geralmente surge na linha dos fortes versus os fracos, na debilidade social, na ridicularização dos puxa-sacos do Comendador. Cada qual mais lamentável que o outro, batendo palma, esperando ouvir o que barrigudo tem a dizer.
Chama atenção, ainda, o olhar de desprezo de Vitório para uma das cocotas: “Vai para o inferno! Prostituta de circuito fechado da sociedade!” Falta de paciência do Comendador. Achou a garota fácil demais, frágil demais, aboletada de bruços na cama.
Apesar do raciocínio intrincado, deve-se dizer que existe uma escorregada religiosa nos créditos iniciais: “O poder monetário pode fabricar um deus – mas jamais comprará a DEUS.” Vindo de um ateu cinematográfico, a frase causa espanto.
No aspecto populacional, “Perversão” entope a tela de gente. Homens, casais, um gay, mulheres apalpadas por velhos repugnantes. O sexo, aliás, ganha um tom inacreditável nos momentos em que Mojica alisa a própria (e caída) pança. As caras de cio do ator-diretor lembram as fotos que ele distribuía aos alunos do curso de artes dramáticas.
O espectador, por sua vez, não sabe se ri ou se chora ao ver as unhas imensas agarrando copos de uísque ou dezipando a braguilha ou se encaixando bonitas entre as polpas femininas. Quando o cinema era forte, debochava e incomodava a si mesmo, lá estava Mojica. Porque o Comendador vive o galã. Acreditem. Dublado, com vozeirão canalha. Seminu, de cueca e indefectíveis meias.
Quebra total de expectativas, ainda mais quando o riff que antecede as entradas em cena do personagem é retirado de “A Ponte do Rio Kwai”. Alec Guiness – que em 1979 já havia encarado o Ben Obi-Wan Kenobi em “Guerra nas Estrelas” – poderia chamar o Yoda e ter longas conversas sobre o uso latino-americano da trilha sonora. Afinal, diria o enrugado mestre, “protagonista do clássico filme ele era”.
Crounel Marins, filho do diretor, escreve os diálogos. Crounel havia participado do projeto anterior de Mojica Senior: “Mundo, Mercado do Lixo” – que viraria “Mundo, Mercado do Sexo” –, rodado com pupilos do famoso curso paterno.
Durante “Perversão”, trabalharam com o título de “Estupro!”, posteriormente alterado para suavizar o drama. Diriam os psicanalistas que até faz sentido, mas as platéias não se sensibilizaram. Obra fatal, o escândalo do título talvez a ajudasse.
Entretanto, o fracasso marcou o fim dos estúdios de Mojica na Mooca, desenrolar de uma sina agourenta e massacrante, que se arrastou até a redenção nos anos 90. Havia pouco dinheiro na mesa. Inclusive para se sustentar, pagar as contas, terminar o dia.
No meio de tudo, o pavê de “Perversão” esconde um requinte gore, esporádico. Os machucados nas partes do Comendador, o bico do seio mostrado num pote. E os convidados em chamas, à la Buñuel, parecem ter saído de uma janela surreal. Alguns fingem ojeriza, alguns fingem apoio, alguns debocham de Vitório pelas costas. A crítica à riqueza do Comendador é, portanto, dúbia e não tão óbvia. É vilão, doentio, atleta de alcova, imbecilizado.
Para melhorar, quando menos se espera ouve-se a cara de pau de um “Love, soft as an easy chair”, “Teach me tiger”, “Live and let die”, “Je t'aime... moi non plus”. Enchendo a munheca de densidade e barbeiragem, planos fechados, cortes e repetições propositais, acaba-se concluindo que “Perversão” foi um sonho negro, atormentando os sentidos.
4 comentários:
Sensacional o post, me senti quase como um expectador do filme, embora até antes de ler o texto nem sabia que o mesmo existia.
Um filme para fazer frente tranquilamente a qualquer exploitation gringo da época.
Como faço para assistir a essa preciosidade? Tem alguma locadora em São Paulo especializada em cinema nacional?
Gosto dele, mesmo reconhecendo todas as imperfeições, e gosto muito também de "Inferno Carnal", mais ou menos da mesma época. Um Mojica que buscava, de forma aguerrida, soluções de continuidade para a carreira.
Obrigada, Pedro! Se você procurar na internet provavelmente vai encontrar o "Perversão".
Esse final dos 70 foi brabo para o Mojica mesmo, Fofão. E apesar da badalação nos últimos anos, acho que o Mojica continua bastante subestimado. Muitas vezes, por exemplo, acham graça do Zé do Caixão sem entenderem o teor subversivo que há por trás de tudo aquilo.
Sabe o que é? Sinais do tempo. Vivemos numa época de bom mocismo hipocrita, da politicalha correta. Hoje o jornal Folha de São Paulo, esse jornal hipocrita, diz combater as fake news. Mas ninguém mais lucrou com elas do que o grupo Folha, pois era dona do NP, o inventor de tantas notícias falsas, como o citado bebê diabo
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