Grande parte do que se escreve sobre arte no Brasil nada tem a ver com arte. Tal como em uma sessão de psicanálise lacaniana, precisamos investigar o discurso e descobrir, por trás das palavras, seu real manifesto. Precisamos conhecer a quem o crítico deseja agradar, qual status quo necessita manter, a qual grupo de pressão ou panelinha pertence. E que relação terá isso com o objeto analisado? Praticamente nenhuma.
Bons escribas e bons pesquisadores deveriam engolir o choro quando se deparam com algo que vai contra seus interesses pessoais ou profissionais, contra suas posições políticas e vínculos de amizade. Mas isso é raríssimo no país.
E não pensem que organizo aqui uma pregação de liberdade absoluta. Até porque Sigmund, fumando Reinas Cubanas às quartas-feiras em um gabinete com seus pares, sairia de lá com o vaticínio de que o absoluto, infelizmente, não existe. O que creio ser possível é o pensamento honesto, a idéia -- e não a conveniência, o imediatismo, as relações públicas -- como norte de trabalho.
Na época do lançamento de "Lula, o Filho do Brasil" (2009) nunca antes na história deste país críticos e opinião pública em geral se distanciaram tanto da análise do objeto artístico em si, para travarem um duelo de máscaras e oportunismos. Percebam que oscilamos entre o terrorismo à la Regina Duarte e a subserviência respeitosa à figura do presidente, o que, em ambos os casos -- ridiculamente --, não tinha ligação com a obra de Fábio Barreto.
Zumbaieiros consideraram o filme "excelente" e respiraram por alguma sinecura estatal. Outros confundiram sua ojeriza ao político (e ao que ele representa) com ideal estético. Também criou-se a terceira via dos moralistas (sempre eles!), que acusaram o filme de proselitismo oficial em ano de eleição, apesar de não ter um centavo de verba pública. Quase ninguém pareceu interessado no produto, mas sim em debater sua repercussão (real ou imaginária).
Despidos os véus da histeria, as camadas e camadas de hipocrisias inúteis, "Lula, o Filho do Brasil" não é tão ruim. Revisto em blu-ray, melhora. Fosse Itamar Franco, grande parte dos espectadores enxergaria ali minúcias de cinema popular ingênuo: desde o arremedo kitsch de “Vidas Secas” até a pena calculada que sentimos do garoto, refém da maldade de Aristides (Milhem Cortaz) e salvo pelo incondicional amor de Dona Lindu (Glória Pires).
Édipo mal resolvido, parece “De Charcot a Bion, Uma Viagem ao Maravilhoso Mundo da Psicanálise” -- desfile que nenhuma escola de samba levou à Sapucaí. A cena do pai bebendo cachaça, ao lado do menino choroso no colo da mãe, define em um segundo toda a infância de Luiz Inácio. Guri batuta sofre, vende laranjas e uma professora zelosa (Lucélia Santos) quer até adotá-lo. A mãe impede, diz que tem condições de manter sozinha os filhos.
Acordamos na parte em que o protagonista cresce e vira um mocetão garboso. 1958, Lula vai ao cinema ver “O Noivo da Girafa”, de Amácio Mazzaropi. Todo este adágio da juventude, o flerte com Lourdes (Cléo Pires), a morte da esposa grávida e a melancolia em que o viúvo trafega, são momentos preciosos. Cléo e Glória Pires, semelhança física evidente, representando dois pólos de amor, guardam uma delicadeza tosca.
Gafe cronológica, às vésperas do AI-5, no final de 68, o casal baila ao som de “Você”, música de Tim Maia lançada no lp de 71. A canção, depois da tragédia, torna-se um fantasma que persegue o rapaz até o desenlace com Marisa Letícia (Juliana Baroni).
Conhecendo Marisa, algo de esquisito se passa. A dicção de Rui Ricardo Dias, o protagonista na fase adulta, modifica-se. Aparecem e desaparecem, por encanto, aquela língua presa e aquele tom gutural que toda criança lembrará, no futuro, de ter imitado na escola. Algo na linha do “brasileiras e brasileiros”, que os fiscais do Sarney repetiam com pachorra, após ouvirem os discursos do inflacionário presidente na tv.
Crescendo no sindicalismo, a premissa de humanizar Lula se esvanece. Temos aquele herói forçado, de anedota. Bastam umas cinco frases simples, gritadas em assembléias que mais parecem reuniões de condomínio, para que seja ovacionado. O nome urrado, punhos como dos Panteras Negras nas Olimpíadas do México. Vai daí a escapadinha para se ver no filme um toque chucro, de ufanismo.
Barreto se atrapalha quando abandona o homem e flerta com o mito. Quando troca Freud por Marx. Embora não chegue aos dias de hoje (preocupação excessiva em desculpar-se), é obrigado a mostrar como Lula chegou a ser Lula, o que inclui greves, comícios. E seu ar messiânico nos deixa com saudades do indivíduo, que poderia continuar a ser retratado sem a mão pesada e contraditória do didatismo fatalista em que mergulha.
Curioso é que o Lula “anônimo” lembrava uma daquelas figuras de Ozualdo Candeias, ou um daqueles transeuntes da Boca do Lixo. Quase podíamos vê-lo na Major Sertório, na Bento Freitas. Vá lá que as moças em torno possuem cara de figurantes escaladas por preparadores de elenco, sem o encanto genuíno das lókis de uma antiga noitada de sexta-feira na capital.
Lula preso e mãe doente, a crise extrema devolve por um triz a humanidade ao agente histórico, mas o quiprocó acaba. Um resquício de Emílio Fernández, fora de lugar. Eu, por exemplo, queria ver Lula sem dormir, tensão a pino, nos bastidores do debate contra Collor em 89. Queria vê-lo em meio à família perdendo três eleições. E, no final, a alegria íntima da vitória de 2002.
Aqui o parênteses: e uma cinebiografia de Leonel Brizola? E outras dos presidentes militares? Quero ver Figueiredo projetado em tela grande, jogando peteca em Copacabana. Quero ver Brizola apavorado no Hotel Liberty, em Buenos Aires, achando que iam assassiná-lo no meio da madrugada. Que tal Adhemar de Barros na cama da amante, no Rio, discutindo para onde levaram o cofre? Políticos também fascinam e merecem filmes, que retratem suas vidas. E críticos que enxerguem nesses filmes qualquer coisa além da oportunidade de puxa-saquismo ou oposicionismo explícitos.
O lugar certo para “Lula, o Filho do Brasil” só estará onde o poder não mais existir, quando seus desdobramentos de afronta ou reverência finalmente significarem nada. Isso porque toda a elipse de representações, de falsa surpresa, de ponderações indignadas são -- diria La Lupe -- puro teatro. Cães ora ladram, ora botam rabinhos entre as pernas. Só a aventura fílmica brasileira segue e a imagem permanece.
Bons escribas e bons pesquisadores deveriam engolir o choro quando se deparam com algo que vai contra seus interesses pessoais ou profissionais, contra suas posições políticas e vínculos de amizade. Mas isso é raríssimo no país.
E não pensem que organizo aqui uma pregação de liberdade absoluta. Até porque Sigmund, fumando Reinas Cubanas às quartas-feiras em um gabinete com seus pares, sairia de lá com o vaticínio de que o absoluto, infelizmente, não existe. O que creio ser possível é o pensamento honesto, a idéia -- e não a conveniência, o imediatismo, as relações públicas -- como norte de trabalho.
Na época do lançamento de "Lula, o Filho do Brasil" (2009) nunca antes na história deste país críticos e opinião pública em geral se distanciaram tanto da análise do objeto artístico em si, para travarem um duelo de máscaras e oportunismos. Percebam que oscilamos entre o terrorismo à la Regina Duarte e a subserviência respeitosa à figura do presidente, o que, em ambos os casos -- ridiculamente --, não tinha ligação com a obra de Fábio Barreto.
Zumbaieiros consideraram o filme "excelente" e respiraram por alguma sinecura estatal. Outros confundiram sua ojeriza ao político (e ao que ele representa) com ideal estético. Também criou-se a terceira via dos moralistas (sempre eles!), que acusaram o filme de proselitismo oficial em ano de eleição, apesar de não ter um centavo de verba pública. Quase ninguém pareceu interessado no produto, mas sim em debater sua repercussão (real ou imaginária).
Despidos os véus da histeria, as camadas e camadas de hipocrisias inúteis, "Lula, o Filho do Brasil" não é tão ruim. Revisto em blu-ray, melhora. Fosse Itamar Franco, grande parte dos espectadores enxergaria ali minúcias de cinema popular ingênuo: desde o arremedo kitsch de “Vidas Secas” até a pena calculada que sentimos do garoto, refém da maldade de Aristides (Milhem Cortaz) e salvo pelo incondicional amor de Dona Lindu (Glória Pires).
Édipo mal resolvido, parece “De Charcot a Bion, Uma Viagem ao Maravilhoso Mundo da Psicanálise” -- desfile que nenhuma escola de samba levou à Sapucaí. A cena do pai bebendo cachaça, ao lado do menino choroso no colo da mãe, define em um segundo toda a infância de Luiz Inácio. Guri batuta sofre, vende laranjas e uma professora zelosa (Lucélia Santos) quer até adotá-lo. A mãe impede, diz que tem condições de manter sozinha os filhos.
Acordamos na parte em que o protagonista cresce e vira um mocetão garboso. 1958, Lula vai ao cinema ver “O Noivo da Girafa”, de Amácio Mazzaropi. Todo este adágio da juventude, o flerte com Lourdes (Cléo Pires), a morte da esposa grávida e a melancolia em que o viúvo trafega, são momentos preciosos. Cléo e Glória Pires, semelhança física evidente, representando dois pólos de amor, guardam uma delicadeza tosca.
Gafe cronológica, às vésperas do AI-5, no final de 68, o casal baila ao som de “Você”, música de Tim Maia lançada no lp de 71. A canção, depois da tragédia, torna-se um fantasma que persegue o rapaz até o desenlace com Marisa Letícia (Juliana Baroni).
Conhecendo Marisa, algo de esquisito se passa. A dicção de Rui Ricardo Dias, o protagonista na fase adulta, modifica-se. Aparecem e desaparecem, por encanto, aquela língua presa e aquele tom gutural que toda criança lembrará, no futuro, de ter imitado na escola. Algo na linha do “brasileiras e brasileiros”, que os fiscais do Sarney repetiam com pachorra, após ouvirem os discursos do inflacionário presidente na tv.
Crescendo no sindicalismo, a premissa de humanizar Lula se esvanece. Temos aquele herói forçado, de anedota. Bastam umas cinco frases simples, gritadas em assembléias que mais parecem reuniões de condomínio, para que seja ovacionado. O nome urrado, punhos como dos Panteras Negras nas Olimpíadas do México. Vai daí a escapadinha para se ver no filme um toque chucro, de ufanismo.
Barreto se atrapalha quando abandona o homem e flerta com o mito. Quando troca Freud por Marx. Embora não chegue aos dias de hoje (preocupação excessiva em desculpar-se), é obrigado a mostrar como Lula chegou a ser Lula, o que inclui greves, comícios. E seu ar messiânico nos deixa com saudades do indivíduo, que poderia continuar a ser retratado sem a mão pesada e contraditória do didatismo fatalista em que mergulha.
Curioso é que o Lula “anônimo” lembrava uma daquelas figuras de Ozualdo Candeias, ou um daqueles transeuntes da Boca do Lixo. Quase podíamos vê-lo na Major Sertório, na Bento Freitas. Vá lá que as moças em torno possuem cara de figurantes escaladas por preparadores de elenco, sem o encanto genuíno das lókis de uma antiga noitada de sexta-feira na capital.
Lula preso e mãe doente, a crise extrema devolve por um triz a humanidade ao agente histórico, mas o quiprocó acaba. Um resquício de Emílio Fernández, fora de lugar. Eu, por exemplo, queria ver Lula sem dormir, tensão a pino, nos bastidores do debate contra Collor em 89. Queria vê-lo em meio à família perdendo três eleições. E, no final, a alegria íntima da vitória de 2002.
Aqui o parênteses: e uma cinebiografia de Leonel Brizola? E outras dos presidentes militares? Quero ver Figueiredo projetado em tela grande, jogando peteca em Copacabana. Quero ver Brizola apavorado no Hotel Liberty, em Buenos Aires, achando que iam assassiná-lo no meio da madrugada. Que tal Adhemar de Barros na cama da amante, no Rio, discutindo para onde levaram o cofre? Políticos também fascinam e merecem filmes, que retratem suas vidas. E críticos que enxerguem nesses filmes qualquer coisa além da oportunidade de puxa-saquismo ou oposicionismo explícitos.
O lugar certo para “Lula, o Filho do Brasil” só estará onde o poder não mais existir, quando seus desdobramentos de afronta ou reverência finalmente significarem nada. Isso porque toda a elipse de representações, de falsa surpresa, de ponderações indignadas são -- diria La Lupe -- puro teatro. Cães ora ladram, ora botam rabinhos entre as pernas. Só a aventura fílmica brasileira segue e a imagem permanece.
7 comentários:
Gracias, Andrea, gracias! Mais uma vez cumpres o papel de nos brindar com uma opinião que não perpassa a aclamação cega, tampouco o desprezo furioso.
Este filme é uma tragédia. Tentei assisti-lo por Glória Pires, mas não deu... desisti no meio do caminho... O Fábio Barreto, coitadinho, parece que nunca vai aprender a filmar.
www.ofalcaomaltes.blogspot.com
Pô, Andrea! Desses filmes que você sugeriu, o do Adhemar é indispensável!!! Vamos fazer! Mas teremos que ressuscitar o Benjamin Cattan para fazer o protagonista! E o Garrett para dirigir!
Será que a gente consegue "captar"? Hein? Hein?
Pronto: agora eu fico rindo sozinho pela casa e o pessoal aqui começa a querer me internar...
Muito bom seu comentário, Andrea. Eu vi o filme do Lula e achei até bem feito, mas que caiu no pecado de tentar "mitifcar" o ex-presidente. A figura humana de Lula é muito interessante e com certeza merecia um filme, mas esse ficou devendo. Agora as críticas dos reacionários e leitores da Veja sempre existirão, independente de que filme fosse feito. Nesse sentido vc foi excelente na sua colocação!
No quesito "filmes de presidentes", eu até hoje penso no filmaço que daria a história de Getúlio Vargas, mostrando todos os seus lados, desde o "pai dos pobres" ao ditador do Estado Novo, falando também de sua simpatia pelo Eixo na Segunda Guerra, suas várias amantes, seu populismo em várias camadas sociais e culminando na sua morte até hoje cercada de mistérios. Está demorando pra alguém pegar essa mina de ouro!
Andrea, curiosamente, "Você" foi lançada em 1968 pelo Eduardo Araújo no LP A Onda é Bogaloo, produzido por...Tim Maia, hehehehe. Tim chegou a oferecer a música pra Roberto Carlos logo após a gravação do Eduardo, que não queria gravar a música por não ser inédita e, com a insistência do gordinho mais simpático da Tijuca, acabou pedindo uma música "de um cara que dá um pé na bunda da mulher". Nasceu "Não Vou Ficar".
Obrigada, Rosano! Acredito nisso mesmo, ver as questões por outros olhos, sem falsos pudores.
Dá um desânimo, Antonio, compreendo rs Mas sabe que o Lula anônimo era um material interessante? Imagina o Fauzi Mansur do "A Noite do Desejo", tocando nesse prato cheio.
ahahhahaahahah Quem leva a pastinha com as planilhas de excel, na hora de captar, Fofão? O Candeias adoraria! Aliás, se internarem você é mais um roteiro, a cara do Clery Cunha (que está vivíssimo!)
Obrigada, Valter. A maioria das pessoas ouvem o canto da sereia e acham muito cômodo ficarem repetindo slogans. O caso do Getúlio serve de exemplo: é uma figura (curiosamente) mal aproveitada. Existe essa fixação pela ditadura militar, os filmes vira e mexe parecem uma sessão de análise, para exorcizarem o que os criadores viveram na própria pele ou gostariam de ter vivido. O Getúlio era o fascistão amigo do Filinto Muller, mas também frequentava o Cassino da Urca e foi o presidente da CLT, cheia de direitos trabalhistas. Mina de ouro total, concordo com você.
Oi, Renato, obrigada pelo adendo. Aliás, o Tim não gostou da versão do Eduardo Araujo. Acho bonita, em outro patamar, até porque a voz do síndico nos 60-70 era uma coisa de louco. Na vida real, talvez o Lula e a Lourdes curtissem a versão original do Eduardo e a produção do filme acabou resolvendo colocar a do Tim, do lp de 71.
Quem quiser assistir a diversos filmes citados pela Andrea, é só acessar ao blog Acervo Naciona:acervonacional.blogspot.com
Vale a pena rever ou ver filmes de grande qualidade no cinema brasileiro.
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