Quase tudo o que se produziu na Boca do Lixo alçou por décadas o estigma de frouxo, submetido a uma perversidade que poluiu até mesmo o imaginário de técnicos sobreviventes do local e do período. Comum ouvi-los repetindo o óbvio, introjetando uma ética auto-depreciativa. E por essa brecha instala-se outra praga: os menos atentos, os mais burros e ingênuos, podem achar que, para acabar com o ataque sofrido por milanos, a defesa há de ser tão intransigente quanto. Para matar uma gazela, cria-se outra – desde que, dessa outra, tenha-se agora total controle.
Sinto muito, senhores, julgamento errado. Trará problemas a longo prazo, é o reverso do espelho. Defender não significa fechar os olhos aos erros. Combater não significa vestir a histeria homicida. A Boca não foi um pacote homogêneo. Ter o símbolo de auto-sustentáveis não iguala as produções realizadas por lá. Este o soberano – nome do bar de larga história – fato.
Aprendiz de feiticeiro, José Miziara embarca no sonho quando os dramas de costumes, as invenções udigrudi, os filmes garnizés, o tosco e o sublime rodavam alucinados, em espiral. Tarefa inglória a de conviver com pontas de lança. Pior: autores de reputação construída por motivos insólitos, frágeis, aparentemente naturais. Walter Hugo Khouri era o homem dos filmes complicados. Ody Fraga, o intelectual libertino. Jean Garrett – para ficarmos em um dos garotos – se esforçava, fazendo o que podia, contrabandeando erotismo em tragédias e cinema de gênero.
Miziara, tentando colocar o anel de alquimista, joga umas ervas, cozinha o caldeirão. Aonde ele se encaixa, de verdade? Ex-artista de circo, faz-tudo da Rádio Nacional, dublador, cômico, seguiu os filões do rádio que moldaram os pioneiros da televisão. O bem e o mal, o homem e a mulher, o esperto e o enganado. Salpicou de anos 70 a regra e desaguou na malícia, no sexo depois da pílula.
Assim fez enorme sucesso em “O Bem Dotado: O Homem de Itu (1977)” – o jeca versus o povo da cidade grande. Tateia uma reportagem esperta sobre o swing em “Embalos Alucinantes” (1979), cruzamento de revista Veja e “Vai Trabalhar Vagabundo” sem nuances, puro deboche. No polêmico “As Intimidades de Analu e Fernanda” (1980) avança no paternalismo – homem e mulher, colunas estanques. Tenta vender as carícias loucas entre Fernanda e a separada Analu. Na prática, coloca a sombra do homem rondando em loop, desestabilizador da relação das duas. Um garoto na praia significa o elemento fálico faltante, a justificar interdição. Analu diz ao garoto que vá embora, mente que o marido chegará. Ambas se vêem através de um terceiro, não por si. O filme não alcança a voragem de Jean Garrett , que fez de “Karina, Objeto do Prazer” (1981), “A Mulher que Inventou o Amor” (1979), “Possuídas Pelo Pecado” (1976), antros do exploitation, quicando o feminismo e o machismo superficiais.
“Pecado Horizontal" (1982), gravado no ano limite entre a chanchada e o pornô, consegue um caminho mais hábil. Acerta. Coloca o corpo em foco não apenas dos moços, mas das moças. Elas a fim, procuram, gozam, sem o terror da vergonha, da racionalização.
Dirigido e escrito por Miziara, busca a atmosfera, bem nacional, dos subterrâneos de uma cidade do interior. A se prestar atenção na trilha sonora – a valsa “Oh, Minas Gerais” –, chegamos ao estado das Alterosas.
Três conhecidos reúnem-se em volta de uma mesa, bebem cerveja e contam “causos” passados de suas vidas. Relatá-los seria perda de tempo. Estão no limite do grosseiro – o protagonista não consegue traçar Matilde Mastrangi por conta de hemorróidas – e do engraçadíssimo, principalmente o segundo. O que interessa é que idas, vindas e deslizes dos personagens têm um objetivo: a obcecada fornicação. Sentem prazer absurdo em quase perderem a vida por conta desse mito. As mulheres, quando “dão”, sorriem; os homens, vivenciam um êxtase.
Essa vontade natural impressiona as normas egoístas e atualíssimas de conduta. Colocando-se em perspectiva, a "busca existencial" do sexo parece ter morrido no século XXI. Deu lugar ao aspecto esquizóide, narcísico, em que a aparente liberalidade oculta uma perturbação moralista. Ir pra cama não é mais libido, recompensa. Necessita de enrolação, de pose, de frieza. José Miziara nunca foi Betty Friedan, mas “Pecado Horizontal” coloca o desejo feminino atuante. Notem que as três protagonistas são mulheres insatisfeitas, que escolhem seus parceiros e desejam somente aquilo que toda fêmea heterossexual deseja, mas que certos homens costumam atrapalhar com grilos e lentidões.
Um mergulho nos documentos da censura revela dado espantoso: nenhum vigilante do governo militar implicou com a terceira história, na qual um menino de doze anos transa uma coquete aflita. Em 82, o duvidoso intercurso entre menino e mulher podia ser visto tanto no cinema de Miziara, quanto em “Amor Estranho Amor”, de Khouri. Implicando com cenas de sodomia, por outro lado a censura aceitava tranqüilamente o garoto Ric Ostrower cobrindo Mariza Sommer.
Além do princípio de que cinema popular não é pornochanchada, precisamos entender que, dentro dos filmes legítimos do gênero, existem sutilezas a serem pesquisadas e resgatadas. O passado de má vontade dos críticos explicava-se por um (falso) ideal de melhora, que não faz mínimo sentido quando o tempo e as influências são outros. Hoje, um chiste como “Pecado Horizontal” vira subversivo, libertário, porque nos ensina um espanto: a picardia pelo prazer de ser vivida. E que ocorreu, de igual maneira, fora da Boca do Lixo. Carlo Mossy, leitor de Schopenhauer, não fez “Giselle” à toa: nada mais importante para a menina “recém-chegada da Europa” que a vontade cega do corpo. Em tantas pornochanchadas – algumas de Mozael Silveira – o corpo é quem manda. E tal imperativo pede para destroçarmos o labirinto, entendermos as pistas falsas que o enfoque bruto – favorável ou contrário – cisma em corromper.
(in Zingu! #41, janeiro de 2011)
Sinto muito, senhores, julgamento errado. Trará problemas a longo prazo, é o reverso do espelho. Defender não significa fechar os olhos aos erros. Combater não significa vestir a histeria homicida. A Boca não foi um pacote homogêneo. Ter o símbolo de auto-sustentáveis não iguala as produções realizadas por lá. Este o soberano – nome do bar de larga história – fato.
Aprendiz de feiticeiro, José Miziara embarca no sonho quando os dramas de costumes, as invenções udigrudi, os filmes garnizés, o tosco e o sublime rodavam alucinados, em espiral. Tarefa inglória a de conviver com pontas de lança. Pior: autores de reputação construída por motivos insólitos, frágeis, aparentemente naturais. Walter Hugo Khouri era o homem dos filmes complicados. Ody Fraga, o intelectual libertino. Jean Garrett – para ficarmos em um dos garotos – se esforçava, fazendo o que podia, contrabandeando erotismo em tragédias e cinema de gênero.
Miziara, tentando colocar o anel de alquimista, joga umas ervas, cozinha o caldeirão. Aonde ele se encaixa, de verdade? Ex-artista de circo, faz-tudo da Rádio Nacional, dublador, cômico, seguiu os filões do rádio que moldaram os pioneiros da televisão. O bem e o mal, o homem e a mulher, o esperto e o enganado. Salpicou de anos 70 a regra e desaguou na malícia, no sexo depois da pílula.
Assim fez enorme sucesso em “O Bem Dotado: O Homem de Itu (1977)” – o jeca versus o povo da cidade grande. Tateia uma reportagem esperta sobre o swing em “Embalos Alucinantes” (1979), cruzamento de revista Veja e “Vai Trabalhar Vagabundo” sem nuances, puro deboche. No polêmico “As Intimidades de Analu e Fernanda” (1980) avança no paternalismo – homem e mulher, colunas estanques. Tenta vender as carícias loucas entre Fernanda e a separada Analu. Na prática, coloca a sombra do homem rondando em loop, desestabilizador da relação das duas. Um garoto na praia significa o elemento fálico faltante, a justificar interdição. Analu diz ao garoto que vá embora, mente que o marido chegará. Ambas se vêem através de um terceiro, não por si. O filme não alcança a voragem de Jean Garrett , que fez de “Karina, Objeto do Prazer” (1981), “A Mulher que Inventou o Amor” (1979), “Possuídas Pelo Pecado” (1976), antros do exploitation, quicando o feminismo e o machismo superficiais.
“Pecado Horizontal" (1982), gravado no ano limite entre a chanchada e o pornô, consegue um caminho mais hábil. Acerta. Coloca o corpo em foco não apenas dos moços, mas das moças. Elas a fim, procuram, gozam, sem o terror da vergonha, da racionalização.
Dirigido e escrito por Miziara, busca a atmosfera, bem nacional, dos subterrâneos de uma cidade do interior. A se prestar atenção na trilha sonora – a valsa “Oh, Minas Gerais” –, chegamos ao estado das Alterosas.
Três conhecidos reúnem-se em volta de uma mesa, bebem cerveja e contam “causos” passados de suas vidas. Relatá-los seria perda de tempo. Estão no limite do grosseiro – o protagonista não consegue traçar Matilde Mastrangi por conta de hemorróidas – e do engraçadíssimo, principalmente o segundo. O que interessa é que idas, vindas e deslizes dos personagens têm um objetivo: a obcecada fornicação. Sentem prazer absurdo em quase perderem a vida por conta desse mito. As mulheres, quando “dão”, sorriem; os homens, vivenciam um êxtase.
Essa vontade natural impressiona as normas egoístas e atualíssimas de conduta. Colocando-se em perspectiva, a "busca existencial" do sexo parece ter morrido no século XXI. Deu lugar ao aspecto esquizóide, narcísico, em que a aparente liberalidade oculta uma perturbação moralista. Ir pra cama não é mais libido, recompensa. Necessita de enrolação, de pose, de frieza. José Miziara nunca foi Betty Friedan, mas “Pecado Horizontal” coloca o desejo feminino atuante. Notem que as três protagonistas são mulheres insatisfeitas, que escolhem seus parceiros e desejam somente aquilo que toda fêmea heterossexual deseja, mas que certos homens costumam atrapalhar com grilos e lentidões.
Um mergulho nos documentos da censura revela dado espantoso: nenhum vigilante do governo militar implicou com a terceira história, na qual um menino de doze anos transa uma coquete aflita. Em 82, o duvidoso intercurso entre menino e mulher podia ser visto tanto no cinema de Miziara, quanto em “Amor Estranho Amor”, de Khouri. Implicando com cenas de sodomia, por outro lado a censura aceitava tranqüilamente o garoto Ric Ostrower cobrindo Mariza Sommer.
Além do princípio de que cinema popular não é pornochanchada, precisamos entender que, dentro dos filmes legítimos do gênero, existem sutilezas a serem pesquisadas e resgatadas. O passado de má vontade dos críticos explicava-se por um (falso) ideal de melhora, que não faz mínimo sentido quando o tempo e as influências são outros. Hoje, um chiste como “Pecado Horizontal” vira subversivo, libertário, porque nos ensina um espanto: a picardia pelo prazer de ser vivida. E que ocorreu, de igual maneira, fora da Boca do Lixo. Carlo Mossy, leitor de Schopenhauer, não fez “Giselle” à toa: nada mais importante para a menina “recém-chegada da Europa” que a vontade cega do corpo. Em tantas pornochanchadas – algumas de Mozael Silveira – o corpo é quem manda. E tal imperativo pede para destroçarmos o labirinto, entendermos as pistas falsas que o enfoque bruto – favorável ou contrário – cisma em corromper.
(in Zingu! #41, janeiro de 2011)
5 comentários:
Andrea,obrigado pela visita ao blog,e eu estou sempre vendo seu ,para relembrar os filmes da minha juventude e aproveitar as coisas bacanas que voce comenta,para colocar algo nos meus quadrinhos,vida longa ao ESTRANHO ENCONTRO.abraço.
Lembro do Miziara vendendo o filme no Programaa Silvio Santos-o galã Antonio Fonzar, no elenco de PECADO HORIZONTAL, fazia parte do júri do Show de Calouros (o Miziara não foi ator/comediante num dos ´quadros´ de A PRAÇA É NOSSA?). Do Miziara eu gosto bastante de NOS TEMPOS DA VASELINA, um dos maiores sucessos de público da carreira dele-se não o maior- e sua ambientação Disco.
Ops!
NOS TEMPOS DA VASELINA periga ter sido O SEGUNDO maior sucesso de público do Miziara (logo depois do blockbuster O HOMEM DE ITU)
Grande resenha, Andrea.
Obrigada, Floreal. A melhor parte de escrever sobre cinema é ver o quanto existem pessoas que gostam do tema de maneira autêntica. Seu blog demonstra bastante isso. Abraços
Obrigada, Marco. É o próprio. O Miziara trabalha há muitos anos para a TVS/SBT. Dele, gosto do Pecado Horizontal e alguma coisa do Embalos Alucinantes. O Homem de Itu diverte, além de ter sido um clássico da Sala Especial nos anos 80. Quase sempre era programado, lembra?
Pois é. Lembro de O HOMEM DE ITU passando nas telonas de todo o Brasil, com filas dobrando os quarteirões para ver as desventuras sexuais do personagem capiai interpretado pelo Nuno Leal Maia (eu era muuuito pequeno para entrar nos cinemas com censura18 anos).
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