segunda-feira, janeiro 10, 2011

O Que é Isso, Companheiro?


O roteirista Leopoldo Serran faleceu no dia 20 de agosto de 2008, e pouca gente se deu conta de que o efeito da perda equivale a um maremoto. Em entrevista de 2001, concedida a Marco Freitas, Serran afirmava: “Nós estamos passando por uma ideologização e idealização de tudo. Ideologizaram a cultura, a religião, e ideologia, como se sabe, é a arma dos débeis mentais. É uma coisa triste...”

A frase, polêmica e deliciosa, serve de provocação a seu trabalho em “O Que é Isso, Companheiro?” (1997), baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira, direção de Bruno Barreto. Ao contrário do que muitos repetem (sob prisma ideológico, sectário) o filme de Barreto não chega a ser propriamente escândalo, ou afronta histórica. É apenas daquelas coisas que Barreto tenta, tenta, mas erra, desde o excelente “Romance da Empregada” (1987). Além disso, a obra de Fernando Gabeira, repleta de um dialeto ultrapassado, cheia de gírias que morreram antes das fronteiras de Ipanema, igualmente não ajuda.

Serran bem que se esforça para desidratar a metralhadora narcisista, auto-referencial, pseudo-psicanalítica, que é o texto do ex-guerrilheiro, lançado pela editora do Pasquim, a Codecri, em 79. Sobre Gabeira vale engrossarmos o lugar comum: toda a sua transição (ideológica) daria em cinebiografia bem mais interessante que o episódio do sequestro. Nasceu militante do MR-8, nas janelas da antiga sede do Jornal do Brasil; voltou do exílio em vibe odara, pansexual (sua fase ótima); e, de alguns anos pra cá, confundiu o discurso da vanguarda ecológica com o de liberal capitalista. Percebam que nem Arnaldo Jabor ou Paulo Francis mudaram tanto de opinião no simples espaço de uma vida.

É do Gabeira jovenzinho, chegado de Minas em 63, que livro e filme tratam. Um moço com ar de existencialista, no alter-ego Paulo (Pedro Cardoso), a quem o compêndio sobre aventuras da revolução parecia já estar sendo escrito antes mesmo do primeiro tiro. Engraçado é que Cardoso, ator sem muitos recursos, insere em Gabeira certos tiques de seu personagem sessentista anterior: o maluco-beleza Galeno, da minissérie “Anos Rebeldes”, exibida na Globo em 92.

“Estamos completando seis meses de imprensa censurada, a extrema direita se instalou no país e não dá nenhum sinal de que vai sair. Nós queremos saber, Arthur (Eduardo Moscovis), o que você pretende fazer a respeito?”. É com essa frase, batendo recordes nos marcadores de vergonha alheia, que Gabeira/Galeno dá a senha para o início da luta armada. Pretende arregimentar o amigo, e o amigo prefere sobreviver como ator em uma peça de Ibsen. Junto com Paulo vai César (Selton Mello), que também discursa uma cantilena impostada, no apartamento emoldurado por um pôster de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Sem nunca ter matado nem passarinho, mergulhando na clandestinidade, Paulo e os colegas descobrirão uma verdade incômoda: revoluções armadas oferecem risco de vida, geram mortes, separam famílias. A delicadeza dos garotos de classe média, em um primeiro momento, parece não combinar com aquilo. Mas eles estão dispostos a ir até o fim, treinando com o casca grossa Marcão (Luis Fernando Guimarães, pose irônica, rediviva da TV Pirata) e com Maria (Fernanda Torres), outra campeã em explicações didáticas.

Nem o roteiro nem a maneira como Barreto o filma concebem aquele bando inexperiente, vacilante, com alguma fagulha de heroísmo romântico. Sua posição heróica será forjada, sim, pela história, pelo futuro – como Fidel Castro desenhou no célebre discurso, quando da sua prisão e julgamento, 1953-54. Neste vagar de sentimentos, de angústias e esperanças, eles decidem por uma ação ousada: o sequestro do embaixador dos EUA, Charles Elbrick (Alan Arkin), para a troca de 13 presos políticos.

A convivência com o seqüestrado, a chegada de companheiros mais experientes – Toledo (Nelson Dantas) e Jonas (Matheus Nachtergaele) – transformam-se em reles pano de fundo para uma historinha de ação, suspense. O interrogatório do embaixador – a cargo de Jonas, que aponta uma arma na cabeça do homem, tentando enquadrá-lo – nos faz sonhar com uma esplêndida participação especial de Jece Valadão, soltando um “shut up, gringo” e mostrando toda a malícia e o veneno da luta anti-imperialista nacional. Infelizmente, em 97, o cinema brasileiro já seguia frouxo.

Baixíssima densidade psicológica salva a narrativa de mergulhar no distorcido protagonismo de Gabeira. Mesmo assim, a verossimilhança do filme sofreu críticas por várias testemunhas dos fatos, ao que Barreto responderia sofismando tratar-se de obra de “ficção” (?). Já Serran, na supracitada entrevista de 2001, afirma sobre as esquerdas: “(...) essa gente anda em bando, tentando me aporrinhar a vida...”.

Ponto para ambos terem ficado em saia justa: ora patrulhados por quem julgava a história uma ode aos seqüestradores, ora por quem cheirava naquilo “higienização” da realidade, edulcoração quase hollywoodiana, bem ao gosto da retomada do cinema brasileiro na metade dos anos 90. E, enquanto se discutia nos corredores universitários, nas salas de aula da Puc, se o filme era de direita, esquerda ou de ladinho, ninguém atinou o meio-termo de que, por ser fraquíssima, água morna, a produção nem tem fôlego para uma tomada honesta e declarada de posição.

Sensacionalismo erótico – Reneé (Cláudia Abreu, outra egressa de “Anos Rebeldes”) dorme com o chefe de segurança da embaixada (Milton Gonçalves); a conversa de torturadores sobre uma torturada que casou com seu algoz – mescla-se ao desamparo infantil de Maria. Acaba aos beijos com Paulo, a dizer que nem todo a utopia do mundo resolveria sua carência de afeto. Filmes esquecíveis são feitos desta matéria mal digerida, instantâneos e colagens grotescas, absurdas.

Ao lado de “A Paixão de Jacobina” (2002), descobrimos o pior trabalho escrito por Serran. Talvez por não acreditar no sonho (na ideologia) dos garotos, talvez por não conseguir desconstruí-la de modo satisfatório ou talvez pelas amarras impostas por um aparato de esforço oscarizável, despacho de umbanda para Hollywood. São ilações que nutrem uma certeza: quanto mais os anos passam, o cruel e paranóico “Pra Frente Brasil” (1983) melhora a olhos vistos. Já “O que é Isso, Companheiro?” e meia dúzia recentes – que tal "Em Teu Nome" (2009)? – montam coleção jabuticaba, de como não se olhar uma passagem que ainda é ferida aberta no país.

7 comentários:

Rodrigo disse...

belo texto Andrea. É impressionante como o pior do cinema brasileiro sempre fica datado por refletir preconceitos e idéias datadas do seu tempo. Em 97 os esquerdistas arrependidos estavam no auge da sua crise e um deles era inclusive preseidente da republica. E mais uma vez a história era tratada apressadamente em nome das idéias da moda. Como a moda era tratar a luta armada com condescendencia, nada melhor do que botar o pessoal do TV pirata travestidos de guerrilheiros fazendo trapalhadas e chorando pitangas, enquanto o aparato de repressão é retratado como algo equilibrado e metódico. É como se o Kubrick no Dr Fantástico botasse o Peter Sellers pra fazer piada em cima de ativistas antiguerra e resolvesse poupar generais, cientistas e políticos. Pior é que Serran e o Barreto nem pretendiam anarquizar, fazer galhofa mas falar daquilo tudo com pompa e seriedade. O resultado é melancólico. Dá pena ver espalhado sobre cada fotograma do filme, o cálculo equivocado sobre o que o que poderia render um oscar. No mais sua comparação com Pra frente Brasil é precisa. Em O Que é Isso Companheiro civis são poupados, vivem a margem da batalha, o embate é entre guerrilheiros, diplomatas e generais. No filme do Farias vem uma mao te agarrar pelo pescoço pra dizer " voce faz parte dessa guerra também. O pior é que nem sabe disso".

Nelson L. Rodrigues disse...

Olá cinéfila


O FILOCINÉTICA juntamente com o CINEBULIÇÃO, nos unimos para criar um selo, um reconhecimento aos críticos e divulgadores da cultura cinematográfica. Nossa proposta, é premiar com o SELO INGMAR BERGMAN, bimestralmente, três blogs selecionados, que em nossa opinião e na opinião de nossos convidados para essa análise, trazem uma significativa contribuição para a crítica, reflexão ou a divulgação da Sétima Arte.

Informações nos blogs citados.

Roberto Pepino disse...

Apenas sua descrição sobre o mutante Gabeira já valeria o artigo. Impagável. Quanto ao filme, é quilo que ouvíamos de uma já ranzinha Aracy de Almeida: "não resta a menor dúvida...." Delicioso texto; precisa análise.

Marco Freitas disse...

Valeu pela citação, Andrea!
O bom do s teus textos é que a qualidade dos mesmos é tão alta que concordar ou não com o que você escreve fica em quinto ou sexto plano.
Parabéns.

Andrea Ormond disse...

Rodrigo, esse climão de pastiche é uma doença que só um cinema forte, múltiplo, consegue combater. Gente séria, acima da média, como o Serran acaba trabalhando em projetos com problemas estruturais gravíssimos. Houvesse pulso, vontade de abismo, mas não. Ficam uns poucos nômades pensando diferente. Pelo menos de 97 para cá aconteceu uma democratização pela via da internet que facilitou o caminho. Tem umas rachaduras aí em que se pode trabalhar, sem essas velhas paranóias do Oscar e as aceitações externas, toscas.

Boa sorte, Nelson.

Obrigada, Roberto, "O que é isso, companheiro" puxa essas tiradas irônicas, não dá para ser analisado de outra maneira...

De nada, Marco, a entrevista é bastante esclarecedora. Agradeço os elogios, abraços.

Fofão disse...

Naquele ano, Barreto perdeu o Oscar para um filme chamado "Caráter". Para mim, foi justiça poética.

Andrea Ormond disse...

Hahahahahaha, Fofão, suas tiradas irônicas são sempre muito bem-vindas.