terça-feira, novembro 16, 2010

O Desafio


“Porto das Caixas” (1962) instalou em Paulo César Saraceni o fantasma de ser paradigma ao movimento que se dizia novo nem tanto pela idade, mas estruturalmente pela atitude. Com o ruminar dessas e diversas frases de efeito – algumas supostamente utilizadas por Glauber Rocha, sem repartir a co-autoria –, somadas ao impacto daquela obra de estréia, o ex-atleta do Fluminense Football Club, ator bissexto, experimentou trajeto libertário para desaguar em “O Desafio” (1965). Juntou os cacos da encomenda feita pelo Itamaraty, “Integração racial” (1964) – montada às pressas pela fervura do 1° de abril de 1964 – e repensou a possibilidade de prosseguir com “A Fera da Penha” ou encarar coisa qualquer que servisse de testamento para o período que surgia nebuloso.

“O Desafio” impôs-se pelas próprias pernas, “A Fera da Penha” desapareceu da pauta. Saraceni chamou para si a tarefa de dar voz à ressaca moral do golpe militar. Vêem-se e ouvem-se tiradas que o diretor colecionou pelas ruas, embrulhadas em quase ficção para contar o amor impossível de Marcelo (Vianinha) e Ada (Isabela). Cristaliza em Marcelo a cara de todo aquele que punhado de meses antes vibrava no comício da Central do Brasil e agora sentia-se subitamente nu em praça pública. Coloca em Ada a moça fina, bem intencionada e burguesa, lúcida, casada, traindo o marido industrial (Mário, Sérgio Britto) com o amante poeta, jornalista.

Exorciza – de maneira praticamente kamikaze – o que os profetas do bar Zeppelin e alhures gritavam a boca pequena. O aviso na versão restaurada deixa clara a sangria: “Este filme contém fragmentos de diálogo não originais, para repor trechos danificados pela censura da época.” De fato, palavrões e o termo “golpe” retornam dublados nas vozes de outrem, sobre o rosto de Vianinha e equipe. Alguns trechos ficaram intactos. O fotógrafo, colega de redação (Joel Barcellos), incorpora o espírito pragmático, tenta um pacote de manobras para estancar a treta política: “É o tempo da conscientização. Nós ainda vamos agradecer a este tempo.” Um amigo – sabe-se por comentários – é preso depois de responder a inquéritos – os insanos IPMs. Mário ajuda-o a se exilar em alguma Embaixada. O que o distanciamento histórico faz soar natural, anedotas dos chumbos de 1964-1985, cresce exponencialmente quando se atina que os dados hoje clichês – prisão, exílio – eram gritados em tempo real, com todas as letras.

A câmera – na mão, por óbvio – de Dib Lutfi e a fotografia de Guido Cosulich deixam mais vibrante a sensação de documentário político-afetivo. Saraceni conheceu Guido na Itália ao ganhar bolsa de estudos pelo curta “Arraial do Cabo”, mesma safra em que inicia contatos com Gustavo Dahl e Bernardo Bertolucci. Lutfi, auxiliado por José Medeiros, registra closes telúricos em Maria Bethânia, Zé Keti e João do Vale durante o show Opinião, no Teatro de Arena em Copacabana. Mário numa fossa monumental – e metalingüística, pois Vianinha foi um dos autores do espetáculo –, sofre por sofrer por si mesmo. O filme declara a utopia, o idealismo pagão do jovem que recusa a individualidade e amamenta as multidões, o espírito de coletividade. “Muita importância ao problema político e não a nós”, reclama Ada.

“É de manhã”, uma das primeiras canções de Caetano Veloso, pontua o encontro dos dois, já indo solto o prenúncio da separação. O arranjo do diretor-roteirista para o fim do casal se dá na bela seqüência em que vasculham um prédio em ruínas. O clímax os coloca frente a frente recitando “Invenção de Orfeu”, Jorge de Lima, em êxtase por segundos – sepultado em seguida pela constatação de que a união simbólica de Marcelo e Ada não vence a distância efetiva entre ambos.

No meio tempo, as citações pululam, na ânsia de dar conta de tudo o que houvesse de encantamento cultural, a vencer a tecnocracia. Capas de “Cahiers du Cinema” e de hits literários – “A invasão da América Latina”, de John Gerassi –; colagem de textos recortados de jornal; Vietnã, Otto Maria Carpeaux, discussões homéricas sobre Sartre ter se rendido ou não ao facínora sistema. Mário rebate os comentários do jornalista de meia-idade, cético, decadente, que repisa a inviabilidade da paz de espírito enquanto emborca os copos de uísque. Moço de bom tom revolucionário, recusa a esposa do amigo – por sinal, a mulher o assedia não sem uma certa condescendência do borracho idoso.

“O Desafio” anteviu o acirramento da guerra, que trazia o germe do AI-5, ainda sob as orelhas de Castello Branco. Marca fase de transição no Cinema Novo, associada geralmente com exclusividade a “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. Apesar de usar a franquia da revolta perante a organização política nacional – em termos concretos, chicana política versus democracia –, “Terra em Transe” segue a trilha já estabelecida em “O Desafio”. Este, cravado no calor do momento, semelhante a um reflexo que não se consegue evitar – vide o título alternativo: “No Brasil depois de abril”. Saraceni comenta, inclusive, ter se sentido isolado por trazer o filme à baila, sendo acusado de irresponsável. A duras penas inscreve-o no primeiro Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, contornando a resistência lacerdista e deixando-o à audiência do seleto público, que incluía Roberto Rosselini.

Isabela, então casada com Saraceni, repetiria o protagonismo em “Capitu” (1968), diálogos de Lygia Fagundes Telles, roteiro de Paulo Emílio Salles Gomes. “Porto das Caixas” tivera outro adaptador luxuoso, Lúcio Cardoso, e presença feminina igualmente cáustica se comparada a “O Desafio” e à esfinge de Machado. “A Casa Assassinada” (1970), no mesmo fluxo lógico, conta com a presença de suporte literário – “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio – e vestal de prestígio, Nina. Vestindo malha de rumbeira em “Amor, Carnaval e Sonhos” (1972) – último filme de Leila Diniz – e tocando a mente aberta em bailes filosóficos, Saraceni desfruta de abordagem peculiar entre os colegas de geração. Bate em tabus como homossexualidade – Timóteo (“A Casa Assassinada”) é marco da cinematografia gls brasileira –, intervém no elemento urbano ou rural, sem migrar para o Nordeste – busca mitos em outros grotões.

Herói da primeira hora, seu “Porto das Caixas” exalou devir, uniu os nós, serviu de escudo ao arrebanhar aprovação crítica para o grupo – Paulo Emílio em São Paulo e Alex Viany no Rio seguravam os esteios. Tempos mortos que foram cambiando, os de “Porto” sorriam nas trevas da mulher que assassina o marido, história verídica; os de “O Desafio” atordoam pela resistência intelectual, história nevralgicamente verídica.

O que pode transparecer como refinamento, “pedra” na vidraça que quiseram lhe atribuir, deve-se a processo delicado de formação pessoal. Em sua primeira dentição, Saraceni foi próximo de Lúcio Cardoso – dândi, suposto amor platônico-sensorial-existencial de Clarice Lispector – e Octávio de Faria – redator do mitológico “O Fan”, autor dos talagões da “Tragédia Burguesa”. Saraceni não se sentia à vontade no ultra-materialismo do Centro Popular de Cultura da UNE. Talvez preferisse bradar Verlaine a Górki, talvez cresse que “‬Deus é como um canteiro de violetas,‭ ‬cuja estação não passa nunca‭”, vaticínio firme de Lúcio. Por estancar a mesmice, é da espécie de realizador que lançou blocos consideráveis de dinamite no viés totalitário de elementos internos e externos ao cinemanovismo.

2 comentários:

André Mello disse...

Olá, Andrea! Deixei um comentário na sua postagem sobre o filme Escalada da Violência, mas, vou repetí-la aqui:

Há anos venho procurando o filme "Escalada da Violência". Você poderia me dizer, por favor, como posso encontrar uma cópia dele? Será que tem em DVD? Vc pode não acreditar, mas na época das filmagens, eu e minha mãe fizemos parte da figuração deste filme. A cena que eu faria acabou sendo cancelada, por causa do tempo (seria uma cena na praia, onde eu e outras crianças estariamos jogando bola ), mas a cena da minha mãe ( hoje já falecida ) foi rodada. Gostaria muito de assistir esse filme e matar essa curiosidade, pois, como eu era criança, nem fiquei sabendo da sua estréia nos cinemas, eu tinha apenas 11 anos. Será que a cena da minha mãe está no filme? Se vc puder me ajudar. Serei muito grato. Tenho certeza, que ficaria muito emocionado se a cena dela estiver lá. Obrigado e fica com Deus!
PS: Meu email é andmello1@yahoo.com.br
Hoje, sou desenhista do Jornal O Globo.

Andrea Ormond disse...

Olá, André, essas histórias mexem muito com quem acompanha de perto o cinema brasileiro. Pena que o "Escalada da Violência" é mais um desses filmes raríssimos, de difícil acesso. O jeito é rastrear em sebos de vhs ou ver a programação do Canal Brasil. Só dessas maneiras que a gente consegue assistir a grande parte da produção nacional. Sorte na empreitada, tudo de bom pra vc, abraços!