quinta-feira, outubro 28, 2010

Barravento


Para todo épico de pé quebrado, existem relações simplórias de antagonismo. Herói e anti-herói travam uma eterna batalha e o desenlace – ainda que previsível – deixa o manipulável público respirar em alívio. Por um fetiche qualquer, esses mecanismos da ficção ganham a vida cotidiana. A ida ao jornaleiro, o boa-noite antes de dormir, o trajeto do copo à boca viram então focos de paranóia coletiva. Surge o desejo fundamental de coibir o diferente, de vestir trincheiras, habitar castelos no ar. Afinal, a derrota do vilão é inflexível; a vitória do herói, permanente, ele nunca está nu. Mostra-se faceiro, centro de poder, inabalável. Nasce do fogo, sobe e desce aos infernos, morre idealizado.

O cinema brasileiro cedeu – e cede – a essa contrafilosofia. Ao centro, à direita, à esquerda, patrocinado ou auto-sustentável, com ou sem público, criou-se um embate de forças que, por sua vez, degeneraram em tabus. Com o devido distanciamento histórico, pode-se constatar, porém, que a diversidade imperou e impera, até mesmo em blocos de iniciativas que traem um signo de totalitarismo homogeneizador. O Cinema Novo – emblema que alguns insistiram em colocar como única fonte de cinematografia “saudável” – comprova a tese. Para ter-se um rápido panorama, há de se dizer que Joaquim Pedro de Andrade assistiu ao burguês “Limite”; Paulo César Saraceni ousou ser discípulo de Lúcio Cardoso; Arnaldo Jabor sorriu quando elogiado pelo "reacionário" Nelson Rodrigues; Domingos de Oliveira pretendeu-se frugal, ornando Leila Diniz e um Rio de Janeiro que o cinema popular – esta pantera – conheceria de perto.

Envelhecendo os realizadores – e a “superestrutura” idem –, apareceram cadáveres como ponta natural do processo. O mais célebre deles, ungido no pós-morte, teve seu período de formação na Bahia quando por lá existiu o crítico Walter Silveira, o músico Hans-Joachim Koellreuter e um pólo cineclubístico que forçou a porta da investigação nacional. Sem mais delongas, senhores, atingimos finalmente o ícone, Glauber Rocha.

Inegável que Glauber fecundou a franquia cinemanovista, no modelo tanque de guerra, arrebanhando e se afastando por caminhos tão intrincados quanto os que foram dar no “A Idade da Terra” (1980) – derradeiro filme. Perto do fim, andava um tanto amargo, alardeou a solidão pela imprensa – como nos quadros do programa “Abertura” (1979), de que participava na Tv Tupi. Nos primórdios, saíra de cidade pequena – Vitória da Conquista –, casara-se com Helena Ignez, futura esposa de Rogério Sganzerla, anti-herói do Cinema Marginal – que em espírito é onda nova, tanto quanto “O Assalto ao Trem Pagador” (1962), de Roberto Farias, mago da R.F.F. Produções Cinematográficas, presidente da Embrafilme (1974-1979).

Ainda na década de 50, Glauber flanava pelo Rio de Janeiro – portas abertas por Alex Viany – e em São Paulo, aonde em 1959 mostrara a Walter Hugo Khouri – outro antípoda, um pária – seu curta inaugural estrelado por Inez, “O Pátio”. É um dos autores da “trilogia da fome”, com “Barravento” (1961) – estréia no terreno dos longas-metragens –, ao lado de “A Grande Feira” (1961) – de Roberto Pires, o mesmo de “Redenção” (1958), primeiro longa baiano – e “Bahia de Todos os Santos” (1960) – de Trigueirinho Neto, obra que cunhou o apelido “Pitanga” para o ator Antonio Pitanga, vulgo Antonio Luiz Sampaio.

Em comum, os três filmes possuem certo senso corporativo, aproveitam a dinâmica da cena cultural e dependem de préstimos mútuos. Pitanga estrela todos; o mecenas Rex Schindler, fundador do Teatro do Estudante e especulador imobiliário, adere à produção de “Barravento” e de “A Grande Feira”. Roberto Pires assina a produção executiva de “Barravento”, vencida a breve rivalidade com Glauber, que o conclamara de aventureiro, pelo rádio, ao saber que rodava “Redenção” na Bahia. Incluso na trupe, Luiz Paulino dos Santos, ator em “Mandacaru Vermelho” (1961), de Nelson Pereira dos Santos.

Paulino, aliás, foi o verdadeiro iniciador de “Barravento”. Escreveu argumento e diálogos, era o diretor, mas se afastou no curso das filmagens. Dado o caráter bélico das controvérsias, tornou-se desafeto, depois reaproximado, de Glauber. É de Paulino a história da moça branca que namora moço negro – aspecto que apenas muito ao longe se consegue compreender no roteiro de Glauber e José Telles de Magalhães. Segundo Alex Viany, Nelson Pereira teria participado na montagem do filme, auxílio que não impediu o conjunto de se tornar uma colagem excessivamente fluida, sem qualquer vestígio de ritmo narrativo. O neorrealismo de “Barravento” é outro: prende-se ao denuncismo enquanto idéia, apesar de não totalmente construída. Apela aos motes de rebelião e inconformismo, sem destrinchá-los no enredo.

Os refrões declamados por Firmino (Pitanga) – porta-voz do diretor, porta-voz da mensagem colocada nos créditos – dão a tônica. Gauche, único a usar terno de linho branco na aldeia de pescadores, único a combater “crenças místicas”, rivaliza com Aruã (Aldo Teixeira) – protegido de Iemanjá. Firmino chega perto de discursos sobre a mais-valia ou o controle dos meios de produção e mesmo não os fazendo nesses termos, já incorpora as teses programáticas de Mao. Evidente que em versão tropical, panamérica, com o vapor da literatura pós-Segunda Guerra – “Bahia de Todos os Santos” baseara-se no romance homônimo de Jorge Amado. Do lado de fora do set, a praxis brasileira a dizer chega: Glauber confirmara que dinheiro do jogo do bicho havia financiado a produção, filtrado pelos cofres do governo baiano.

Aspectos relevantes de “Barravento” são encontrados nos achados etnológicos, à la Pierre Verger, embora a paciência glauberiana com eles seja ínfima e centrada não na defesa da religiosidade, mas na força icônica. Ritos com animais, moços fazendo cabeça, a histeria de Naína (Lucy Carvalho) no meio da cerimônia, a fotografia – de Tony Rabatoni, trabalharia em “Os Cafajestes” (1962) – pesada no contraste em preto-e-branco, os tambores crescendo em transe.

Naína – senha óbvia, de “Janaína”, Iemanjá – seria a moça branca a se envolver com Aruã. A aproximação dos dois, no entanto, ocorre nos últimos minutos, sem nunca terem se falado, problema que reforça a soltura do roteiro. Pressupôs-se, erradamente, que o fluxo das imagens daria a costura entre denúncia-amor impossível-etnologia. Não chega a tanto, as viradas são intransigentes. Começamos com Cota – Luiza Maranhão, em estado de graça, no topo da beleza – e Firmino. Terminamos com a promessa de amor, desconcatenada, de Naína e Aruã.

É certo que a colcha de retalhos de “Barravento” sofreu de uma tentativa de grandiosidade, reflexo do aprendizado de Rocha, e da necessidade de adaptação às intempéries. Tanto nas demãos passadas no roteiro quanto nas exigências de Schindler – característica corriqueira da indústria cinematográfica, que gravita em torno do produtor –, explodindo na saída de Paulino e da atriz Sônia Pereira, substituída por Lucy Carvalho. “Barravento” deixa um breve hiato até o diretor aportar em dois cânones – para o bem ou para o mal – da cultura pop sessentista.

“Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” – entremeados pelos curtas “Amazonas, Amazonas” (1965) e “Maranhão 66” (1966) –, fusionam-se no mito erguido em torno de si. Com a febre janguista para trás, a Constituição de 1946 – mais próxima de 1988 do que se imagina – picotada gradativamente, a combatividade passou a exercer fascínio indescritível. Somada ao que se passava em várias partes do globo, a falta de doçura por vezes deixou a criação autocentrada, em um fosso de delírios. Embalsamadas, algumas destas miragens viraram concreto armado, difícil de quebrar, mas o oxigênio de outras gerações criou fissuras no tronco, na cabeça e nos pés. O féretro é longo, mas calmamente se renova.

3 comentários:

André Setaro disse...

Luiz Paulino dos Santos, apaixonado que estava por Sonia Pereira, ficava a admirá-la através dos 'close ups', atrasando, com isso, as filmagens. A idéia original dele estava mais para uma reverência às crendices populares afro-brasileiras. Glauber queria um cinema 'revolucionário' e, de acordo com o produtor Rex Schindler, os dois, combinados, tiraram Paulino da direção. Glauber, então, escreve outro roteiro, com José Telles de Magalhães, descaracterizando completamente a idéia original. Para Glauber, a religião é o ópio do povo (naquela época) e o tempo era de desmistificação e de revolta.

Do ponto de vista da estrutura narrativa, é um filme frouxo, sem fluidez, sem ritmo. Passou dois anos para ser montado. Filmado em 1959, na praia de Buraquinho na Bahia, seus fragmentos foram levados para ver se Nelson Pereira dos Santos conseguiria dar alguma unidade ou uma 'ordem' à bagunça da colheita.

Andrea Ormond disse...

Essa divergência entre as idéias do Glauber e do Paulino são bastante claras mesmo, Setaro. Quando se entra em contato com o projeto de um e o projeto de outro, as crises dos bastidores, o filme fica mais fácil de ser entendido. A ênfase materialista de Glauber, ainda garoto mas já na linha profética de reescrever do zero, acabou gerando uma arma mortífera. Nelson Pereira pegou um touro brabo pela frente...

SandroVilanova disse...

Esse filme me lembra a "Festa da Menina Morta" pelo fatalismo religioso,mas Barravento termina em desdobramentos politicos,enquanto o primeiro em aceitação resignada.