Neste país de etnocêntricos invertidos e revolucionários apocalípticos, muito se discutiu e falou mal do projeto da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O que pouca gente lembra, ou sabe, é que a criação do estúdio paulista representou ambicioso projeto de modernização nacional, surgido a partir do dinheiro da burguesia de São Paulo.
Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho, visionários fundadores, não tinham uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, mas capital suficiente para importarem técnicos e diretores de tantos lugares do mundo que, em certo momento, São Bernardo do Campo devia parecer um mercado persa. Vinham da experiência de levantarem o Museu de Arte Moderna e agiam, na esfera privada, com o mesmo pragmatismo de certas políticas públicas de centralismo cultural.
Dentre os chegados, destacava-se o italiano Adolfo Celi. Natural de Messina, região da Sicília, ex-aluno da Accademia Nazionale d'Arte Drammatica de Roma, Celi morava na Argentina quando ouviu boatos de que, em São Paulo, a efervescência cultural era tanta que gente de toda a Europa se encaminhava para a cidade. Não conversou e logo fazia parte do meio teatral da metrópole, namorando a atriz Cacilda Becker e integrando o Teatro Brasileiro de Comédia, outra criação da dupla Zampari-Matarazzo.
Do teatro para o cinema, acabou responsável pela estréia dos Estúdios Vera Cruz, dirigindo – ao lado de Tom Payne – “Caiçara” (1950), drama ambientado em Ilhabela, litoral norte. Em “Caiçara” já encontramos o modelo da companhia: estrangeiros realizando uma produção de qualidade impecável, sobre um tema marcantemente nacional.
Quando a indústria de cinema parecia de vento em popa, Adolfo Celi recebeu missão de adaptar a biografia do músico Zequinha de Abreu. Para o papel principal, o escolhido foi Anselmo Duarte, àquela altura galã consagrado. Seu par romântico, Branca, era Tônia Carrero, com quem Celi havia casado em 1951.
Em “Tico-Tico No Fubá” (1952) a bela, vestindo trajes sumários, encanta o fiscal de prefeitura Zequinha, homem dividido entre a arte e o ofício burocrático no torrão natal, Santa Rita do Passa Quatro. Os dois se conhecem enquanto ele notifica o circo onde Branca trabalha, e engatam um daqueles flertes que casou muitos dos nossos avós no século XX.
Os minutos iniciais dispersam um pouco o espectador, mostrando interminável espetáculo circense. Por sorte, cai um temporal e a platéia foge. Zequinha vai atrás de Branca e acaba envolvido pela amizade dos artistas, que o reconhecem como um igual.
Apaixonado por Branca, Zequinha é noivo de Durvalina (Marisa Prado), moça que resume a atmosfera interiorana e o cotidiano simplório dos quais gostaria de se afastar, mas não consegue.
Quando ficam evidentes suas diferenças em relação à amante, e ouve colegas do circo o chamarem de "caipira", casa-se com Durvalina. Pai de três filhos, vira homem amargurado pois esqueceu a música que fizera certa ocasião para Branca. Além disso, sua única composição editada encalha nas lojas. No futuro longínquo de 2010, vale explicação de que partituras impressas rendiam dinheiro e prestígio aos compositores.
Zequinha come o pão que o diabo amassou até que a memória lhe traga de volta a música, o "Tico-Tico no Fubá", e a redenção consagradora. Há também o reencontro com a musa e um chorôrô típico de melodrama.
Este seria o último filme dirigido por Celi em terras brasileiras. Deixaria um longa inacabado, antes de voltar para a Itália e atuar em dezenas de papéis coadjuvantes. Já Anselmo Duarte usaria, nas décadas seguintes, muito do que aprendeu com os estrangeiros. Não só ele, mas todos os que passaram pelos estúdios de São Bernardo.
Grande parte das críticas à Vera Cruz merecem desconfiança, pois não passam de teimosia subdesenvolvida, recalque ideológico de provincianos orgulhosos. Mas cabe dizer que, excessivamente concentrada em São Paulo, a companhia ignorava que a civilização brasileira vibrava no Rio de Janeiro, capital da República. Se até hoje contornar o Rio – em busca de contato direto com o resto do país – é tarefa difícil, que dirá nos áureos 1950, quando a influência carioca reinava absoluta.
Por este lapso, a história – contada pelos vencedores, confortavelmente instalados na beira-mar e rodinhas do Paissandu – terminou retratando a empreitada dos industriais em cores perversas, doença a ser combatida e superada. Lembrar da Vera Cruz necessita sempre de tom desculposo, ressalva ao velho temor de que novamente se repita tal fracasso.
Claro que os intelectuais brasileiros estavam, como sempre, errados. A utopia da fábrica de filmes era aspiração legítima de um país que sofisticava-se. Sua localização nas franjas da capital paulista indicava o óbvio de que aquela geração, rica e afluente, trazia consigo vontade de afirmação, de apuro estético em sintonia com o resto do mundo. Quebrados em dívidas, o sonho desmoronou. Porém sobrevive um mito a ser abraçado sem mágoas, com encanto.
(in Zingu! #39, Março-Abril de 2010)
Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho, visionários fundadores, não tinham uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, mas capital suficiente para importarem técnicos e diretores de tantos lugares do mundo que, em certo momento, São Bernardo do Campo devia parecer um mercado persa. Vinham da experiência de levantarem o Museu de Arte Moderna e agiam, na esfera privada, com o mesmo pragmatismo de certas políticas públicas de centralismo cultural.
Dentre os chegados, destacava-se o italiano Adolfo Celi. Natural de Messina, região da Sicília, ex-aluno da Accademia Nazionale d'Arte Drammatica de Roma, Celi morava na Argentina quando ouviu boatos de que, em São Paulo, a efervescência cultural era tanta que gente de toda a Europa se encaminhava para a cidade. Não conversou e logo fazia parte do meio teatral da metrópole, namorando a atriz Cacilda Becker e integrando o Teatro Brasileiro de Comédia, outra criação da dupla Zampari-Matarazzo.
Do teatro para o cinema, acabou responsável pela estréia dos Estúdios Vera Cruz, dirigindo – ao lado de Tom Payne – “Caiçara” (1950), drama ambientado em Ilhabela, litoral norte. Em “Caiçara” já encontramos o modelo da companhia: estrangeiros realizando uma produção de qualidade impecável, sobre um tema marcantemente nacional.
Quando a indústria de cinema parecia de vento em popa, Adolfo Celi recebeu missão de adaptar a biografia do músico Zequinha de Abreu. Para o papel principal, o escolhido foi Anselmo Duarte, àquela altura galã consagrado. Seu par romântico, Branca, era Tônia Carrero, com quem Celi havia casado em 1951.
Em “Tico-Tico No Fubá” (1952) a bela, vestindo trajes sumários, encanta o fiscal de prefeitura Zequinha, homem dividido entre a arte e o ofício burocrático no torrão natal, Santa Rita do Passa Quatro. Os dois se conhecem enquanto ele notifica o circo onde Branca trabalha, e engatam um daqueles flertes que casou muitos dos nossos avós no século XX.
Os minutos iniciais dispersam um pouco o espectador, mostrando interminável espetáculo circense. Por sorte, cai um temporal e a platéia foge. Zequinha vai atrás de Branca e acaba envolvido pela amizade dos artistas, que o reconhecem como um igual.
Apaixonado por Branca, Zequinha é noivo de Durvalina (Marisa Prado), moça que resume a atmosfera interiorana e o cotidiano simplório dos quais gostaria de se afastar, mas não consegue.
Quando ficam evidentes suas diferenças em relação à amante, e ouve colegas do circo o chamarem de "caipira", casa-se com Durvalina. Pai de três filhos, vira homem amargurado pois esqueceu a música que fizera certa ocasião para Branca. Além disso, sua única composição editada encalha nas lojas. No futuro longínquo de 2010, vale explicação de que partituras impressas rendiam dinheiro e prestígio aos compositores.
Zequinha come o pão que o diabo amassou até que a memória lhe traga de volta a música, o "Tico-Tico no Fubá", e a redenção consagradora. Há também o reencontro com a musa e um chorôrô típico de melodrama.
Este seria o último filme dirigido por Celi em terras brasileiras. Deixaria um longa inacabado, antes de voltar para a Itália e atuar em dezenas de papéis coadjuvantes. Já Anselmo Duarte usaria, nas décadas seguintes, muito do que aprendeu com os estrangeiros. Não só ele, mas todos os que passaram pelos estúdios de São Bernardo.
Grande parte das críticas à Vera Cruz merecem desconfiança, pois não passam de teimosia subdesenvolvida, recalque ideológico de provincianos orgulhosos. Mas cabe dizer que, excessivamente concentrada em São Paulo, a companhia ignorava que a civilização brasileira vibrava no Rio de Janeiro, capital da República. Se até hoje contornar o Rio – em busca de contato direto com o resto do país – é tarefa difícil, que dirá nos áureos 1950, quando a influência carioca reinava absoluta.
Por este lapso, a história – contada pelos vencedores, confortavelmente instalados na beira-mar e rodinhas do Paissandu – terminou retratando a empreitada dos industriais em cores perversas, doença a ser combatida e superada. Lembrar da Vera Cruz necessita sempre de tom desculposo, ressalva ao velho temor de que novamente se repita tal fracasso.
Claro que os intelectuais brasileiros estavam, como sempre, errados. A utopia da fábrica de filmes era aspiração legítima de um país que sofisticava-se. Sua localização nas franjas da capital paulista indicava o óbvio de que aquela geração, rica e afluente, trazia consigo vontade de afirmação, de apuro estético em sintonia com o resto do mundo. Quebrados em dívidas, o sonho desmoronou. Porém sobrevive um mito a ser abraçado sem mágoas, com encanto.
(in Zingu! #39, Março-Abril de 2010)
* Excepcional o Dossiê Vera Cruz publicado neste número da Zingu! Textos de Adilson Marcelino, Alfredo Sternheim, Ailton Monteiro, Daniel Salomão Roque, Gabriel Carneiro, Leandro Caraça, Matheus Trunk, Pedro Ribaneto, Sergio Andrade, Vlademir Lazo Correa e William Alves formam um detalhado e saboroso painel, filme a filme, da Companhia. O trabalho de edição e organização do Gabriel foi, como sempre, original e primoroso.
3 comentários:
Oi, Andrea! Também adorei o trabalho da Zingu desse bimestre. De ficar orgulhoso de ter participado. Mas estou aqui pra dizer que só agora li a entrevista do Carlo Mossy em seu blog. Excelente! Li por ocasião da entrevista que fiz com o Marcelo V, que publiquei hoje no Diário de um Cinéfilo. Acho que você sabe que o Mossy brilha no A VOLTA DO REGRESSO.
Poxa, Andrea, vc me deixa encabulado assim. rs
Fico feliz de ter seus textos na Zingu!, mais uma vez regularmente.
Ailton, é como a gente estava falando no Diário de um Cinéfilo: em projetos como esse do Marcelo, dá pra ver o quanto ainda existe de paixão. Por parte dele e do Mossy, que encarou problemas horrorosos e não perdeu a vontade de filmar. Essas coisas são bem significativas pra mim. Abraços, legal te ver por aqui!
Gabriel, seu trabalho de juntar as peças sempre possibilita esses belos números da Zingu!. O dossiê da Vera Cruz está especial.
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