Com todas as suas características de personagem histriônico e opinólogo compulsivo, Arnaldo Jabor conseguiu um belo feito: manter-se à tona do debate intelectual por mais de quarenta anos.
Cineasta querido pela classe-média nos anos 70 e 80, cronista e comentador político nos 90 e 2000, foi esperto o suficiente para compreender que a morte de certas vacas sagradas -- Nelson Rodrigues à frente -- deixava enorme lacuna no pasto da análise político-social brasileira. Largando o cinema, tentou preencher este espaço, beneficiando-se da fraqueza de seus pares, que dificilmente conseguem enfrentá-lo a não ser pela maledicência e histeria coletiva.
Concorde-se ou não com ele, a verdade é que Jabor sempre teve charme, motivação e talento. No finalzinho da década de 70, inebriado pela abertura, escreveu e dirigiu "Tudo Bem" (1978) -- luta de classes em Copacabana -- e principalmente "Eu te Amo" (1981), catarse depressiva, que profetizava o corpo -- naquele momento cantado em prosa e verso na literatura, na pornochanchada e nos motéis da incipiente Barra da Tijuca -- em breve interditado, neurotizado e transformado em bode por conta da Aids e do neoconservadorismo jeca.
O país que assistiu a Paulo César Peréio nu, de cueca verde, traçando uma Sônia Braga no auge da gostosura, ao som de Chico Buarque, se assustaria caso pudesse espiar-se dali a dez anos, governado por Fernando Collor de Mello, ouvindo duplas caipiras e transando de camisinha. Imitando descaradamente "Last Tango in Paris" (1972), Jabor conseguiu a proeza de mostrar um fim de festa, noite ilógica em meio aos raios de sol que entravam com a volta dos anistiados.
"Só o desejo, o gozo não", propõe Mônica (Sônia Braga), ou melhor, Maria -- a falsa prostituta apaixonada pelo aviador cafajeste Ulisses (Tarcísio Meira) -- que esbarra com Peréio, o Paulo-empresário-falido, que guarda em um apartamento fantasma caixas e caixas de lingerie e comunica-se com a ex-mulher Bárbara Bergman (Vera Fisher) através de fitas de videoteipe.
Bárbara, filha de sueco, trocou o atormentado Paulo por um cardiologista cardíaco, eternamente entre a vida e a morte por conta de um marca-passo. Trinta e oito anos, aparentando cinquenta, Paulo acreditava que o Brasil estava maluco, não tinha sentimentos. E que não valia mais a pena trabalhar, somente conhecer "as coisas reais".
Verborragias pseudo-filosóficas não fazem sentido sem sexo, e o tesão dialético estava personificado na morenice brejeira de Maria. Ela dá (às vezes come) por tédio. Mente, como mentem todas as mulheres infelizes. O encontro entre eles lembra a dança de Gloria e Robert em "They Shoot Horses, Don't They?", obra-prima de Horace McCoy, levada ao cinema por Sydney Pollack. Ou qualquer filme de casal discutindo relação, desde "Same Time, Next Year "(1978) até "The Only Game in Town" (1970), passando, quem sabe, por "Who's Afraid of Virginia Woolf?" (1964) e reinventado na angústia de baixo-orçamento "Real Desejo" (1990), com Peréio ainda no papel de Peréio e Ana Maria Magalhães no barato da fêmea indomável.
Mesmo sem amálgamas, solto no ar como obra nenhuma consegue ser, ainda assim "Eu Te Amo" seria lindo. Ou, como diria Ibrahim Sued, "lindo de morrer". De tão marcante, o reconhecemos principalmente pela fotografia de Murilo Salles, e pela imagem das janelas do modernoso apartamento na Lagoa, devassando a cidade e protegendo-se pela distância.
O sonho dos brasileiros do século XXI, trancados em condomínios, monitorados por tvs de plasma e esposas-troféu, de certa forma esteve profetizado no universo de Paulo. Até sua ridícula conversa ao telefone, quando finge poder e seus olhos denunciam humilhação, é acting-out semelhante à imbecilidade narcísica que tomaria o país nos anos seguintes.
Caçando um travesti, rastejando por sombras cenográficas com Maria, tentando uma expressão incomunicável, o filme necessita de Peréio. Provável que Jabor quisesse transformá-lo em mito, eternizando o ator que já vinha de experiências fascinantes como “Iracema, Uma Transa Amazônica” (1977), “Chuvas de Verão” (1978) e a pornochanchada cult “As Aventuras Amorosas de Um Padeiro” (1975).
Para Sônia Braga restou o consolo da beleza plástica, de tigresa, além de alguns monólogos rodrigueanos, proferidos sem muita convicção. Bem mesmo está o travesti-psicanalista (Vera Abelha), que tem por Paulo um amor de mãe.
Falando em pornochanchada, não custa lembrarmos que, estreando em março de 81, durante algumas semanas “Eu Te Amo” competiu diretamente com “Giselle”, em final de circuito no Rio. Digo isso pelo prazer de exumar das drogarias, sapatarias e academias de ginástica os falecidos cinemas de Copacabana -- Art-Palácio, Bruni, Condor, Ricamar, Rian, Roxy – e imaginar dois gênios cariocas nos cartazes: Arnaldo Jabor e Carlo Mossy, em ápice memorável.
Cineasta querido pela classe-média nos anos 70 e 80, cronista e comentador político nos 90 e 2000, foi esperto o suficiente para compreender que a morte de certas vacas sagradas -- Nelson Rodrigues à frente -- deixava enorme lacuna no pasto da análise político-social brasileira. Largando o cinema, tentou preencher este espaço, beneficiando-se da fraqueza de seus pares, que dificilmente conseguem enfrentá-lo a não ser pela maledicência e histeria coletiva.
Concorde-se ou não com ele, a verdade é que Jabor sempre teve charme, motivação e talento. No finalzinho da década de 70, inebriado pela abertura, escreveu e dirigiu "Tudo Bem" (1978) -- luta de classes em Copacabana -- e principalmente "Eu te Amo" (1981), catarse depressiva, que profetizava o corpo -- naquele momento cantado em prosa e verso na literatura, na pornochanchada e nos motéis da incipiente Barra da Tijuca -- em breve interditado, neurotizado e transformado em bode por conta da Aids e do neoconservadorismo jeca.
O país que assistiu a Paulo César Peréio nu, de cueca verde, traçando uma Sônia Braga no auge da gostosura, ao som de Chico Buarque, se assustaria caso pudesse espiar-se dali a dez anos, governado por Fernando Collor de Mello, ouvindo duplas caipiras e transando de camisinha. Imitando descaradamente "Last Tango in Paris" (1972), Jabor conseguiu a proeza de mostrar um fim de festa, noite ilógica em meio aos raios de sol que entravam com a volta dos anistiados.
"Só o desejo, o gozo não", propõe Mônica (Sônia Braga), ou melhor, Maria -- a falsa prostituta apaixonada pelo aviador cafajeste Ulisses (Tarcísio Meira) -- que esbarra com Peréio, o Paulo-empresário-falido, que guarda em um apartamento fantasma caixas e caixas de lingerie e comunica-se com a ex-mulher Bárbara Bergman (Vera Fisher) através de fitas de videoteipe.
Bárbara, filha de sueco, trocou o atormentado Paulo por um cardiologista cardíaco, eternamente entre a vida e a morte por conta de um marca-passo. Trinta e oito anos, aparentando cinquenta, Paulo acreditava que o Brasil estava maluco, não tinha sentimentos. E que não valia mais a pena trabalhar, somente conhecer "as coisas reais".
Verborragias pseudo-filosóficas não fazem sentido sem sexo, e o tesão dialético estava personificado na morenice brejeira de Maria. Ela dá (às vezes come) por tédio. Mente, como mentem todas as mulheres infelizes. O encontro entre eles lembra a dança de Gloria e Robert em "They Shoot Horses, Don't They?", obra-prima de Horace McCoy, levada ao cinema por Sydney Pollack. Ou qualquer filme de casal discutindo relação, desde "Same Time, Next Year "(1978) até "The Only Game in Town" (1970), passando, quem sabe, por "Who's Afraid of Virginia Woolf?" (1964) e reinventado na angústia de baixo-orçamento "Real Desejo" (1990), com Peréio ainda no papel de Peréio e Ana Maria Magalhães no barato da fêmea indomável.
Mesmo sem amálgamas, solto no ar como obra nenhuma consegue ser, ainda assim "Eu Te Amo" seria lindo. Ou, como diria Ibrahim Sued, "lindo de morrer". De tão marcante, o reconhecemos principalmente pela fotografia de Murilo Salles, e pela imagem das janelas do modernoso apartamento na Lagoa, devassando a cidade e protegendo-se pela distância.
O sonho dos brasileiros do século XXI, trancados em condomínios, monitorados por tvs de plasma e esposas-troféu, de certa forma esteve profetizado no universo de Paulo. Até sua ridícula conversa ao telefone, quando finge poder e seus olhos denunciam humilhação, é acting-out semelhante à imbecilidade narcísica que tomaria o país nos anos seguintes.
Caçando um travesti, rastejando por sombras cenográficas com Maria, tentando uma expressão incomunicável, o filme necessita de Peréio. Provável que Jabor quisesse transformá-lo em mito, eternizando o ator que já vinha de experiências fascinantes como “Iracema, Uma Transa Amazônica” (1977), “Chuvas de Verão” (1978) e a pornochanchada cult “As Aventuras Amorosas de Um Padeiro” (1975).
Para Sônia Braga restou o consolo da beleza plástica, de tigresa, além de alguns monólogos rodrigueanos, proferidos sem muita convicção. Bem mesmo está o travesti-psicanalista (Vera Abelha), que tem por Paulo um amor de mãe.
Falando em pornochanchada, não custa lembrarmos que, estreando em março de 81, durante algumas semanas “Eu Te Amo” competiu diretamente com “Giselle”, em final de circuito no Rio. Digo isso pelo prazer de exumar das drogarias, sapatarias e academias de ginástica os falecidos cinemas de Copacabana -- Art-Palácio, Bruni, Condor, Ricamar, Rian, Roxy – e imaginar dois gênios cariocas nos cartazes: Arnaldo Jabor e Carlo Mossy, em ápice memorável.
3 comentários:
Caríssima Andréa, me sinto agraciado ao ler cada texto seu. São todos um verdadeiro desbunde. Tenho tido oportunidade de conhecer um pouco mais sobre nossos filmes nacionais graças a você. Principalmente quando retratas em suas críticas uma certa cidade-mulher que teima em dar disritmias. Chego a sentir o cheiro de suas ruas e vielas quanto leio cada texto seu.
Beijos e abraços fraternos!
Querida,
Outro filme do Jabor que gosto muito.
Vera e Sônia estão lindas lindas lindas.
Bjs
Rômulo, faz algum tempo deixei a "cidade-mulher" para trás, tanto fisicamente quanto sentimentalmente. Assim acho que acabo tentando encontrá-la de novo nos textos :)
Adilson, querido, o que é aquela cena em que a Vera aparece em carne e osso no apartamento? Benza Deus!
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