quarta-feira, junho 11, 2008

A Casa Assassinada


Em‭ ‬1970,‭ ‬época de realização deste‭ “‬A Casa Assassinada‭”‬,‭ ‬Paulo César Saraceni,‭ ‬Mário Carneiro e Antonio Carlos Jobim eram uma trinca bem azeitada,‭ ‬sete anos após a aventura inicial em‭ “‬Porto das Caixas‭” (‬1963‭)‬.

Diretor-roteirista‭ (‬Saraceni‭)‬,‭ ‬montador-fotógrafo‭ (‬Carneiro‭) ‬e compositor‭ (‬Jobim‭) ‬voltavam agora os olhos para‭ “‬Crônica da Casa Assassinada‭”‬,‭ ‬obra do mesmo argumentista de‭ “‬Porto das Caixas‭”‬,‭ ‬Lúcio Cardoso‭ – ‬falecido‭ em 1968 –‬,‭ ‬numa reiteração que não tem nada de casual.

Cinéfilo de carteirinha,‭ ‬autor de um longa inacabado‭ – “‬A Mulher de Longe‭” (‬1949‭)‬,‭ ‬em que assinou argumento,‭ ‬roteiro,‭ ‬direção‭ – ‬Lúcio Cardoso foi uma daquelas figuras arrebatadoras do Rio de Janeiro em meados do século XX.

É clichê qualificá-lo como‭ “‬cavalheiro do tipo fino sofisticado‭”‬,‭ mas o slogan está bem próximo da verdade.‭ ‬Cardoso era o irmão/pai/amigo,‭ ‬responsável pela formação intelectual de vários jovens,‭ ‬criando um vínculo atemporal,‭ ‬à semelhança dos tutores ingleses e seus‭ ‬pupils.

Como não estávamos em Oxford,‭ mas‬ sim na Guanabara,‭ ‬a audiência de Lúcio incluía gente como Saraceni e Luiz Carlos Lacerda.‭ ‬Este último,‭ ‬coincidentemente,‭ ‬também em‭ ‬1970‭ ‬rodava‭ “‬Mãos Vazias‭” – ‬penúltimo filme de Leila Diniz‭ –‬,‭ ‬baseado em romance homônimo de Cardoso.

Tendo as referências acima fica mais fácil adentramos os portais do tempo que levam à‭ “‬Casa Assassinada‭”‬.‭ ‬Desde a leitura inicial do livro,‭ ‬em‭ ‬1959,‭ ‬Saraceni se interessou em adaptá-lo ao cinema.‭

O projeto teve idas e vindas‭ – ‬com direito,‭ ‬inclusive,‭ ‬a recomendação da amiga Edla Van Steen para que Saraceni convidasse Luchino Visconti‭ –‬,‭ ‬terminando felizmente no início da década de‭ ‬70 ‬com um Saraceni e um ambiente fílmico brasileiro maduros,‭ ‬capazes de compreender a obra e não simplificá-la barbaramente.

Digo isto porque a família Menezes,‭ ‬que habita a‭ “‬casa assassinada‭”‬,‭ ‬mansão decadente no sul de Minas‭ – ‬as locações foram em Valença,‭ ‬interior do estado do Rio‭ – ‬é uma reunião de tipos espectrais,‭ ‬folclóricos,‭ ‬sombrios.‭

Os Menezes vivem numa dupla-face entre o desequilíbrio existencial‭ – ‬que inclui religiosidade e hipocrisia das velhas famílias mineiras‭ – ‬e o lado onírico,‭ ‬que desemboca na multiplicidade de narradores,‭ ‬alegorias e cortes temporais. No romance,‭ ‬levam o leitor a construir o quebra-cabeças e a conhecer os delírios de personagens em um estilo literário‭ “‬intimista‭”, ‬que muitos associam à escrita de Clarice Lispector.

Por isto,‭ ‬crucificar a demência dos Menezes,‭ ‬tachando-os como horrorosos, não seria o ideal.‭ ‬Melhor fez Saraceni, ao colocá-los convivendo como deuses de si mesmos,‭ ‬cada qual num conflito particular.

Nina‭ (‬Norma Bengell‭) ‬é casada com Valdo Menezes‭ (‬Rubens Araujo‭)‬,‭ ‬irmão de Demétrio‭ (‬Nelson Dantas‭)‬,‭ ‬o louco-chefe,‭ ‬por sua vez casado com Ana‭ (‬Tetê Medina‭)‬,‭ ‬a abutre-mor que olha Nina à distância,‭ ‬cobiça-a pela voluptuosidade que inveja e,‭ ‬claro,‭ ‬quer destruir.

Alberto‭ (Augusto Lorenzo)‬,‭ ‬roceiro apaixonado por Nina,‭ ‬tem um caso com a patroa mas suicida-se depois de vários desencontros.‭ ‬Passados alguns anos,‭ ‬existe um incesto fundamental entre Nina e André‭ (‬também Augusto Lorenzo‬,‭ ‬suposto filho da moça e do capataz).

Por outro lado,‭ ‬literalmente trancado em um dos cômodos da casa,‭ ‬tal qual uma das pragas do Egito,‭ ‬está a maravilhosa figura ursina de Timóteo‭ (‬Carlos Kroeber,‭ ‬em interpretação estupenda,‭ ‬no rol das maiores de nosso cinema‭)‬.‭

Homossexual exagerado,‭ ‬triunfal,‭ ‬a boca pintada,‭ ‬os traços realçados pela maquiagem,‭ ‬pelas roupas e jóias do guarda-roupas da falecida mãe,‭ ‬Timóteo se funde em Nina e ela nele,‭ ‬como se ambos se prometessem a salvação que nunca se concretizaria,‭ ‬diante do ambiente atormentado em que vivem.

‭“‬Deus é um canteiro de violetas,‭ ‬cuja estação não passa nunca‭”‬,‭ ‬Timóteo vocifera em uma‭ ‬metáfora belíssima sobre o prazer e o amor‭ (‬simbolizados nas violetas,‭ ‬que Alberto colocava diariamente na janela do quarto de Nina‭) ‬em contraposição a um Deus perverso,‭ ‬punitivo,‭ ‬censor das relações humanas tomadas como‭ “‬exóticas‭” ‬e pecaminosas.

A frase ecoa no velório de Nina,‭ ‬depois de Timóteo beijar o rosto do cadáver e estapeá-lo uma vez,‭ ‬revoltado.‭ ‬Reparem que ele havia chegado ao local carregado por mucamos negros,‭ ‬em um dos momentos em que o surrealismo dá a tônica da trama.‭ ‬No meio da fauna típica dos velórios,‭ ‬do tom farsesco em que os risos,‭ ‬cafezinhos e falsas palavras de conforto pululam aqui e ali,‭ ‬é aquela figura‭ ‬over,‭ ‬ampla e bisonha de Timóteo a única provida de humanismo e dignidade.

Figurinos brilhantes de Ferdy Carneiro‭ – ‬colaborador freqüente de Saraceni e Mário Carneiro‭ –; ‬fotografia e montagem de Mário Carneiro trabalhando na contenção entre cores frias e exuberantes,‭ ‬trazendo o quê viscontiano também imprimido pela direção de Saraceni.‭

Essa massa de imagens‭ (‬figurino e fotografia‭)‬,‭ ‬por sinal,‭ ‬alcança vigor muito maior que o do roteiro,‭ ‬que trabalha com a ingratíssima tarefa de adaptar para o cinema uma obra perfeita e talhada em outro universo,‭ ‬o literário,‭ ‬vasto por si só.

A poética do livro é difícil de ser verbalizada naturalmente pelos atores.‭ ‬As frases longas nem sempre soam casadas com os conflitos visuais.‭ ‬Mesmo assim,‭ ‬há acertos como o do uso do arquétipo de padre interditor,‭ ‬ao qual Ana literalmente se agarra e acaricia,‭ ‬para dar vazão à culpa e aos seus delírios histéricos.‭

Jogado por décadas em algum porão à espera de ser trazido de volta, "A Casa Assassinada" por pouco não ficou na obscuridade. Muitos o davam como perdido, mas a partir dos anos 90 passou a ser figurinha fácil no Canal Brasil.

Dois momentos permanecem como fantasmas que rodeiam o longa: o rosto de Lúcio Cardoso e a citação do capítulo‭ ‬11,‭ ‬versículos‭ ‬29‭ ‬e‭ 3‬0‭ ‬do livro de São João na Bíblia‭ – ‬em que Jesus ressuscita Lázaro porque fiel à Palavra.‭ ‬Aparecem antes dos créditos,‭ ‬mas servem de aperitivo e elementos inicializadores,‭ ‬como se encerrassem o enigma que atormenta as paredes descascadas na mansão da fictícia Vila Velha.

10 comentários:

Luci Lacey disse...

Amei seu blog

Parabens

Luci Lacey disse...

http://hippopotamo.blogspot.com/

Andrea Ormond disse...

Olá, obrigada :)

Anônimo disse...

Oi Andréa, que maravilha o teu retorno! De repente me deparo com seis novos posts após uma tão longa ausência. Nem sei por onde começar, mas acho que será melhor pelo recomeço mesmo. Adorei, para variar (rs), o texto sobre "A Casa Assassina". Filme que merece uma cópia digital para podermos levar para casa. Grandioso em tudo: direção, fotografia, trilha sonora, atuações... Kroeber soberbo, como você bem ressaltou. Tetê Medina e Bengell, brilhantes. Grande abraço.

Anônimo disse...

O nome do ator não é Justo Lourenço. É Augusto Lourenço.

Andrea Ormond disse...

Anônimo, creio que seja Augusto Lorenzo. Obrigada pelo toque.

Anônimo disse...

É Augusto Lourenço mesmo. Eu o conhecia.

Renato disse...

Ola' a todos.
Algue'm sabe me dizer se consigo encontrar esse filme para alocar no Rio ou em Minas? Ou, melhor ainda, se consigo uma co'pia para comprar?

Moacir disse...

Como vai Renato! Eu sou alucinado com a escrita do genial Lúcio Cardoso, já li a obra completa dele e já vi todas as adpatações que foram feitas de suas obras, portanto, eu tenho uma cópia muito carpichada deste filme, ok! Se vc. quiser uma é só fazer contado comigo pelo e-mail moacirfelisb@hotmail.com

ADEMAR AMANCIO disse...

O livro foi indicado pela BBC de Londres como grande obra a ser lida.Quanto ao filme,achei uma cópia no youtube,verei depois.