segunda-feira, novembro 06, 2006

Biografia Entrevista - Roberto Maya


Do ator e apresentador Roberto Maya muitas coisas podem ser comentadas, quase todas se resumindo a uma única observação: Roberto Maya é personalidade marcante, inesquecível. Não apenas por sua voz emblemática – lembrada por todos aqueles que estiveram diante de um aparelho de televisão nos últimos 20 anos – mas também pela presença em filmes, novelas e peças de teatro.

Talvez por isso, Walter Hugo Khouri tenha encontrado em Maya uma tradução palpável para Marcelo, o personagem fio-condutor da trama que construiu em grande parte de sua obra. De fato, Roberto foi Marcelo em apenas 3 ocasiões – sendo que em "Eros, o Deus do Amor" emprestou tão somente sua voz e vulto ao papel. Mas basta a lembrança de Marcelo vagando pela metrópole, para evocarmos imediatamente o voice-over inicial de "Eros" ou o olhar cínico, trocado com Serafim Gonzalez, em "Convite ao Prazer".

Por outro lado, Maya trafegou muito além desse ethos khouriano. Aluno da Escola de Arte Dramática Alfredo Mesquita, passou por acaso à radionovela e dali para o cinema, em filmes que cobrem tanto "O Quinto Poder", de Jorge Ileli, "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro de Andrade, e "As Desquitadas”, de Élio Vieira de Araújo. Um belo dia, atendendo a convites, transferiu-se para a televisão.

E aqueles que hoje estão na faixa etária dos 20 aos 30, talvez se recordem do ator principalmente na versão apresentador do cult "Documento Especial", exibido pela extinta Rede Manchete durante boa tarde dos anos 90. Na saudosa emissora carioca, Maya foi também figura importante do elogiadíssimo "Jornal da Manchete".

Nesta longa e bela entrevista que Roberto concedeu ao Estranho Encontro há, portanto, informação para todos os gostos: os bastidores de décadas no cinema, teatro e tv. Trafegando por tantas possibilidades, chegando a produções recentes como "Cafuné", de Bruno Vianna, e "A Casa da Mãe Joana", dirigido por Hugo Carvana, Roberto Maya é um daqueles mitos que precisavam contar mais. Para nosso deleite, que merecemos ouvir tantas boas histórias.


EE – Roberto, fala um pouco sobre a sua infância, os seus primeiros anos.

RM – Eu nasci em Campinas, no dia 5 de janeiro de 35. Meu pai tinha acabado de se formar em Medicina aqui no Rio de Janeiro, na Faculdade da Praia Vermelha. E foi começar a vida dele profissional em Jaguariúna, mas era originário de Campinas, como a minha mãe. Fui gerado em Jaguariúna mas nasci em Campinas.

EE – E de Campinas vocês foram para Jaguariúna, tempos depois?

RM – No início, sim, nos mudamos para lá. Tenho inclusive uma história interessante, dessa época: o meu pai e a minha mãe tinham um jacú. Sabe o que é um jacú? O jacú é uma ave grande, bonita, que não está extinta ainda. Está no caminho, mas ainda não está extinta. Eu estava um dia num berço, sozinho, tomando um sol da manhã e o jacú debruçado no meu berço. Minha mãe acha que o jacú estava interessado nos meus olhos, e que eu estava a minutos, a segundos, de perdê-los. Acabaram dando o jacú para outros, já ele andava pela nossa casa, livre...

EE – [risos]

RM – [risos] Depois disso, tornou-se forte o objetivo de ir para Campinas, aí nos mudamos.

EE – E lá você passou a sua infância e a adolescência?

RM – Sim. Meu pai foi exercer a profissão dele na cidade, e tudo aquilo. Em suma, aconteceram algumas coisas na minha vida e parei de gostar de estudar a partir do Clássico. Eu já tinha estudado no Colégio Estadual Culto à Ciência. Público. Mas enjoei do estudo depois de um determinado tempo e fui punido. Andei fazendo umas malandragens, me juntei a uma turma de garotos da barra pesada, e aí fui pro Colégio Arquidiocesano de São Paulo. Excelente, um excelente colégio. Lá eu fui interno e jogador de basquete. Tive uma boa vida lá, passei 2 anos. Uma boa vida, mas estudando...

EE – Isso com quantos anos?

RM – Uns 14 ou 16. Aí voltei para Campinas, e fui estudar no Colégio Ateneu Paulista, um colégio particular. Os colégios particulares eram uma merda [risos], o bom era o colégio público. Eu estava mal, tinha caído numa boemia terrível, e o meu pai me tirava fora de casa às 7 horas da manhã, todo dia. Ele me levava ao colégio, ao Ateneu Paulista, às 7 horas da manhã quando ele estava saindo para o trabalho: “Aqui você não fica. Aqui em casa você não fica”. E então ele me levava.

EE – E não tinha como fugir?

RM – Não, mas como eu jogava basquete, chegava no colégio e ia direto pro dormitório dos internos. O chefe de disciplina me autorizava a dormir, já que eu tinha que jogar basquete bem, para o colégio [risos]...

EE – E como a arte apareceu na sua vida? Foi nessa época?

RM – Foi uma associação de fatores. Eu inventei de continuar a estudar em São Paulo, convenci meu pai a me deixar ir, porque Campinas não me interessava mais. Meu pai deixou. Para prestar vestibular, fazer supletivo... já existia alguma coisa parecida naquela época... chamava-se Madureza. “Eu faço o Madureza, passo batido de uma vez só”. Mas não fiz nada. Então pintou o curso da Escola de Artes Dramáticas de São Paulo. A Escola de Artes Dramáticas, além de ser algo que só havia em São Paulo, ainda oferecia uma sopinha antes das aulas da noite, o que era ótimo para mim, porque podia economizar a grana do jantar e destiná-la para outras malandragens. Então entrei na Escola. Passei pouco tempo lá, seis meses no máximo.

EE – Você se lembra de quem estudou com você?

RM – Na época? A Ruthinéa de Moraes estava lá. O Francisco Cuoco. A Miriam Mehler, uma atriz que nunca saiu de São Paulo, boa atriz. O Sérgio Cardoso eu acho que era da Escola de Arte Dramática Alfredo Mesquita também. E muita gente, muita gente. Berta Zemel....

EE – E por que você passou pouco tempo lá?

RM – Logo arrumei um emprego na Rádio Nacional de São Paulo. Foi um erro. Vou te explicar por que foi um erro. Os
atores da escola não podiam ter exercício profissional, só depois do terceiro ano de escola havia exercício profissional. Existia dentro da escola, aonde montávamos espetáculos. Fazíamos carreira com exibições aqui, ali, mas só dentro da escola. E eu arrumei um emprego na Rádio Nacional, como rádio-ator. A minha estréia foi numa novela religiosa, das 6 e 15 às 6 e meia da tarde. Disseram para mim: “Cara, você está trabalhando na estação de rádio. Ou você sai ou você fica aqui”. E eu optei por sair, foi um erro. Porque eu sou um ator sem formação. Fui um ator, ou sou, não sei, um ator sem formação. Não me interessei em ter uma formação profunda de ator. Toda a minha vida fui um intuitivo.

EE – E o nome Roberto Maya, de onde veio?

RM – Meu nome é estrangeiro, complicado, ruim de pronunciar, ruim de escrever e de dizer. Então lá na Rádio Nacional ficou aquela discussão. Os caras dando palpite. Eu dizendo “Não, não, não”. Não aceitava as sugestões. Até que passa a Hebe Camargo, cantora da Rádio Nacional. Ela olha, passa e diz: “Roberto Maia!” Eu gostei. O pessoal: “Está bom? Está bom esse?” Eu disse “Tudo bem. Maia. Mas com ‘y’.” [risos] Eu não sei por quê, também [risos]. E gostei.

EE – E o seu primeiro filme foi “Teus Olhos Castanhos”, não foi?

RM – Como você sabe? “Teus Olhos Castanhos”, dirigido pelo Ibañez Filho. Outro dia ele arranjou uma cópia e exibiu esse filme. Gozadíssimo. Locação em Petrópolis, uma coisa divina, um local divino, a nossa primeira semana de filmagem. O Ibañez era casado com uma atriz chamada Aracy Cardoso, eu o conheci na televisão Continental. Ele era switch man, dirigia alguns programas. A gente se conhecia de lá e ele me convidou para trabalhar. Também fiz na mesma época outro filme, chamado “O Cacareco Vêm Aí”, dividido em dois episódios paralelos. Um episódio divertido, com Grande Otelo e Oscarito, e o outro, uma história dramática com Jayme Filho, Cyl Farney, Odete Lara, eu, José Miziara e outras pessoas. Dirigido pelo Carlos Manga, um mestre!

EE – Depois você fez alguns filmes aqui no Rio.

RM – Acho que, depois desses dois filmes, eu fiquei um bom tempo sem filmar. Fiz um pequeno papel no filme “Mulheres e Milhões”, do Jorge Ileli, saudoso Jorge Ileli. E fiz “O Quinto Poder”, um filme interessantíssimo, que recomendo a todo cinéfilo. Filmaço preto-e-branco, com uma super-produção. Trata do inconsciente, da programação subliminar, interessantíssimo. Assinado pelo Alberto Pieralisi, produzido pelo Carlos Pedregal, que foi também o autor do argumento. Gravado na Cinédia, uma super-produção, uma beleza. Outro dia soube que um cara tinha uma cópia em 16 milímetros, fui ver, e continuo dizendo que é um filmaço. Um belo elenco. Só não vou citar, posso esquecer alguém.

EE – E o “Juventude e Ternura”, que você fez com o Aurélio Teixeira?

RM – O “Juventude” era um filme do Aurélio Teixeira que a gente filmou aqui no Rio, Recife e Salvador. Aonde eu tive um convívio divertidíssimo com um homem injustiçado pelo cinema brasileiro, pela Nouvelle Vague brasileira, ou seja, pelo Cinema Novo: o Anselmo Duarte, ganhador de um prêmio internacional e que precisa ser respeitado. Aprendi a conhecer, a gostar dele, e participamos juntos de uma coisa louca. Ele estava com um problema de saúde. Coluna, perna, nervo ciático, essas coisas, ele era hipocondríaco. Está vivo até hoje, com uma saúde tremenda, 85 anos, perfeito, íntegro, bonito como ele era. Bonito pra burro, hoje ele é um velho bonito, cabelão lindo que me dá uma inveja [risos]... Mas o Anselmo disse pra mim: “Não venho nessa cidade desde o prêmio”. A gente estava no Hotel na Bahia, na avenida Sete de Setembro. “Vamos dar um rolê, eu estou mal da minha perna, estou ruim, mas vamos, vamos”. Então a gente foi descendo a avenida Sete até o centrão. [Olhos marejam. Ri.] Eu me emociono. Me emociona a emoção dele. Aí, a gente começou a descer e tal, e começou a me apontar: “Lembra disso, disso, disso? Foi aqui”. Aquelas coisas todas, e tal, as igrejas. “Vem cá, vamos entrar numa casa da Dona Fulana. Vamos entrar aqui, vamos ver as putas. De repente tem uma puta que estava aqui há 2, 3 anos. Vamos lá nas putas”. E de repente começa a juntar gente, gente. E as pessoas... porque o baiano é agradecido a quem faz coisas boas por ele. As pessoas vinham, o abraçavam, beijavam. Foi uma coisa simplesmente deliciosa e emocionante pra mim. E a perna dele ficou boa. A ciática ficou boa. Eu vivi com ele aquela emoção, uma coisa extremamente gratificante para mim, deliciosa, como eu tenho certeza de que pra ele também foi.

EE – Em 71 você também fez um filme com o Maurice Capovilla, o “Noites de Iemanjá”...

RM – Filmei com o Maurice, mas o meu relacionamento com ele foi maior na Rede Manchete do que no filme. A gente fez um filme, mas a minha participação não foi muito grande.

EE – E você fez, ainda,“Os Inconfidentes” do Joaquim Pedro de Andrade...

RM – O meu personagem era um interrogador. Interrogava o personagem do José Wilker, que era o próprio Tiradentes. E outra história interessante: eu tinha uma seqüência, no início das filmagens, e outra seqüência no final das filmagens. Ao mesmo tempo, estava fazendo uma peça de teatro chamada “Rapazes da Banda”. E eu arranjei uma malandragem ali. Alguém fez o meu papel, eu vivia trocando de papel nessa peça, e eu fui fazer a primeira seqüência. Fui de carro, tinha um Volkswagenzinho e a minha mulher foi comigo também. E a minha mulher, como é uma grande consumidora, foi procurar os lugares na cidade em que ela poderia comprar. As fábricas de antigüidade onde ela pudesse comprar. E comprou um monte daquelas lembranças que são feitas ali, encheu o nosso carro [risos]. Na hora de virmos embora, estavam filmando num pequeno museu, que tem naquela praça principal da cidade. Pequeno, o museu é pequeno. A entrada dele tem um arco, você passa pelo arco para entrar. É uma casa que foi adaptada, devia ser de um português rico. Eu tinha um assunto pra ser discutido com o diretor de produção, o Carlos Prates. Não tinha ninguém ali, estacionei meu carro, cheio de muamba. Minha mulher ficou sentada, eu subi. Era um sobrado. Discuti o que tinha para discutir com o Prates, voltei para o carro e fomos embora. Uma semana depois, ou três dias depois, me liga o Prates. “Pô, Roberto, você roubou não sei o quê do museu, naquele dia”. “Mas... Como ‘roubei’? Isso não foi assim”. Foi uma abordagem não tão agressiva, eu estou falando isso pra ser rápido, porque eu sou um pouco prolixo. Em suma, havia uma acusação de que eu seria o responsável por uma peça que teria desaparecido do museu, porque o meu carro estava lá embaixo. Alguém falou, passou a ser e acabou.

EE – Descobriram quem foi?

RM – Pode ter sido até um funcionário do museu que roubou a peça e vendeu para um traficante de artes no dia seguinte. Três dias depois é o Joaquim Pedro quem liga: “Roberto, nós temos que pedir porque sem isso o filme não vai acabar. Eu tenho uma proposta para você: alguém vai à sua casa, pega a peça, traz. Ninguém vai saber que você roubou, e tal”. Eu disse “Olha, Joaquim Pedro, [risos] quisera eu dar um jeito de arrumar essa peça pra você. Mas é impossível”. Bem, eu tinha uma outra semana de filmagem e tinha acontecido, em 1972, no espetáculo “Hair”, o seguinte: foi presa a equipe inteira, estrangeira, americana ou inglesa, não me lembro, foi toda presa em Ouro Preto. Porque eram considerados subversivos, tinham cabelo comprido e vestiam umas roupas diferentes, tal. Foram fazer uma apresentação em Ouro Preto e foram presos. Eu, então, fiquei no grilo. “Meu Deus do céu. Se um delegado desses, em plena ditadura, Ato Institucional número 5 rolando, um delegado desses me leva pra uma masmorra daquelas, me dá um pau, o que eu vou fazer?” Então, para fazer a minha segunda seqüência no filme eu fui lá simplesmente apavorado. Só andava com o grupo. Sempre, sempre junto...

EE – ... Cabeludão, não é?

RM – Acho que eu estava de cabelo comprido...

EE – No “Vai Trabalhar, Vagabundo!” estava...

RM – É, foi nessa época. Estava na moda o cabelo comprido. E assim entrei e saí da cidade. Não curti a minha segunda passagem por lá, porque podia ser preso a qualquer momento. E a tal coisa nunca apareceu. Deve estar na Europa, em algum lugar, ou na casa de um colecionador brasileiro. E até hoje tem ator do elenco que me sacaneia. “Pô, malandro, quer me vender aquela parada?”

EE – Fala um pouco sobre um filme infanto-juvenil muito legal que você fez em 75, “O Caçador de Fantasmas”, do Flávio Migliaccio.

RM – “O Caçador de Fantasmas” é um filme legal mesmo, eu gostei do trabalho do Flávio. Em relação à exigência dele com os atores, eu diria até que nem correspondi às expectativas do Flávio Migliaccio nesse filme. Sinto que nunca rendi para ele o que ele queria. Me dá essa impressão, não sei, eu sinto isso. Mas tenho uma grata recordação: uma fotografia minha com a Dirce Migliaccio, um belíssimo cabelo, um cabelo meu, não era peruca, um belíssimo cabelo. Eu vejo essa foto... ai, meu Deus, o que um cabelo não faz? [risos]

EE – E “As Desquitadas”, com Élio Vieira de Araújo?

RM – O Élio tinha vindo do Nordeste e inicialmente era mestre-de-obras aqui no Rio, depois começou a vender madeira, ganhou muito dinheiro vendendo madeira. Aí começou a ir à Fiorentina, começou a se meter nos negócios do cinema [risos]. Isso é típico, não é? [risos] Tornou-se um produtor de filmes populares.

EE – Casado já com a Olívia Pineschi?

RM – Não, antes de se casar com a Olívia. E quando ele se casou com a Olívia já estava mal de vida, porque havia perdido o dinheiro dele fazendo esses filmes. Ele fazia o filme e quem lucrava era a Paris Filmes, ele ficava sem nenhum. E assim parou de vender madeira, parou de ganhar dinheiro vendendo madeira, que vinha de Santa Catarina e que ele distribuía aqui no Rio de Janeiro. Começou a ficar pobre. A última vez em que nos encontramos foi no Leme. Ele estava cardíaco, fumava muito, e pobre. Acho que quem sustentava ele naquele tempo era a Olívia. Uma pessoa maravilhosa. Professora, atriz bissexta.

EE – Roberto, antes da gente começar a falar dos filmes que você fez com o Walter Hugo Khouri, queria que você comentasse seus trabalhos com outros diretores paulistas, mais especificamente com o Jean Garrett, no “Noite em Chamas”, de 77, depois o “Herança dos Devassos”, do Alfredo Sternheim, que foi até o último entrevistado do site. E ainda o “Sede de Amar”, do Carlão Reichenbach. Você morou nessa época em São Paulo, não é? De 77 a 81.

RM – O Jean Garrett, como diretor, sabia o cineminha certinho. Tudo certinho. Como controlar um ator. Uma visão moderna, uma visão já atualizada do cinema. Era difícil isso, uma visão atualizada do cinema. As pessoas tendiam para caras e dramas, para coisas melodramáticas, e tal. Naquela época ainda tinha muito disso. E ele sabia aonde colocar a câmera, sabia o que fazer. Tudo certinho.

EE – Queria saber da sua convivência com o pessoal na Boca. Como era?

RM – O Soberano, o restaurante. Eu adorava a Boca do Lixo. Porque toda... veja bem... a produção do melhor filme, e “a produção” eu digo “a equipe”, do melhor filme ou do pior, saíam da Boca. Porque ali era a concentração do pessoal do cinema.

EE – Foi assim que você acabou conhecendo o Sternheim e o Reichenbach?

RM – Não. Na verdade, foi o meu currículo, os convites dos filmes saíam do meu currículo mesmo. Porque naquele tempo eu estava fazendo uma peça de teatro, o maior sucesso do momento, sucesso de um ano e meio, denominada “Constantina”. Com Tonia Carrero, Paulo Goulart, Regina Braga, Karin Rodrigues, Suzana Vieira e mais gente que não estou lembrando bem. Eu estava na televisão, na Tv Tupi, eu tinha a idade certa, então as coisas vinham. Naturalmente, em força do meu exercício profissional, e tal.

EE – E o que você lembra do “Herança dos Devassos”, dirigido pelo Alfredo Sternheim?

RM – O “Herança dos Devassos” era uma produção basicamente argentina. O diretor era um argentino, cujo nome não me lembro. O Alfredo, pouco depois, assumiu o filme. E eu inclusive fiz uma coisa que lamento, me arrependo: nunca tive a oportunidade de pedir desculpas para ele porque nunca mais encontrei o Alfredo depois que parei de filmar. Eu não fazia fé no roteiro. O filme tinha uma boa produção, tinha dinheiro e tinha um diretor confuso, fraco. A tal ponto de um dia ele desistir. Ele começou a fazer o filme, parou e passou pro Alfredo. E o Alfredo terminou o filme. Mais tarde, só muito mais tarde... porque eu nem assisti ao filme, nem me interessei em assistir ao filme pronto, imagine... Dublei, mas nem me interessei em assistir ao filme. Quando, mais tarde, vi o filme na televisão, eu pensei: “Puxa vida, esse filme não era nada do que eu estava pensando, não” [risos]. É um bom filme e a minha experiência com o Alfredo é essa. Lamento não tê-la visto com melhores olhos.

EE – E do Carlos Reichenbach, o que você lembra dele? Causos do set e a postura dele dirigindo. O clima da coisa.

RM – A minha participação em “Sede de Amar” foi muito pequena e não tenho muito a dizer, não. Eu tenho do Carlão, da pessoa do Carlão. Nos contatos com ele, me impressionou pelo grau de conhecimento, pelo grau de cultura. Eu nunca fui um expoente cultural e identifiquei nele um homem muito bem posicionado nos seus objetivos, nos seus ideais políticos, nos seus ideais estéticos e na sua cultura. A minha maior experiência com ele, a minha experiência mais satisfatória, foi pessoal. Antes do filme. Porque a minha participação foi rapidíssima, não pude fazer uma avaliação maior. Um filme bom, um filme do Carlão. E um filme do Carlão ou você vê e digere, ou vê e não digere, sem entendê-lo.

EE – Agora passando para o Walter Hugo Khouri. Eu já conversei com a Monique Lafond, com o Afrânio Vital, com o próprio Sternheim, então vou tentar direcionar para perguntas não repetidas, com base no que já foi respondido. Para começar, como é que você conheceu o Khouri?

RM – O Walter era uma pessoa reservada. Então os meus contatos com ele, até 1975, sempre foram rápidos. Talvez eu tenha conhecido até mais o Biáfora do que o Walter, antes da gente filmar [risos]. Como eu disse, ele era reservado. Até que um dia o Walter foi ver a peça “Constantina”, da qual eu participava aqui no Rio, no teatro do Copacabana Palace. O Walter aparece um dia, depois do espetáculo: “Viu o espetáculo?” “Vi, gostei. Queria conversar com você.” E assim começou.

EE – Fala um pouco sobre os roteiros; ele fazia durante as filmagens?

RM – Você quer saber se o Walter mostrou um roteiro para mim? Nunca passou uma idéia geral sobre os personagens, sobre o argumento. A gente chegava no set e ele: “Hoje nós vamos filmar isso”, já com um material datilografado, já com o texto datilografado. E às vezes escrevia no set. Mas a gente não sabia o que ia filmar, qual cena era. Mas então a gente já se conhecia. Saía, íamos jantar, ia à casa dele, já conhecia a Nadyr, já conhecia a mãe dele. Eu sabia que estava sendo julgado. Estava sendo avaliado e julgado por todo mundo. Eu sabia disso [risos].

EE – Tanto que foi o Marcelo em 3 filmes [risos]...

RM – Dois, dois e meio [risos]. E nunca falaram de cinema. Falavam de tudo. De cinema, de música, mas nunca do filme. Mas foi uma convivência excepcional. Era um homem de cinema, com uma formação excelente, que eu acredito que ele tenha adquirido na Vera Cruz, só pode ter sido na Vera Cruz. Com a convivência que ele teve lá, desde 1950 e poucos. Mas, de qualquer forma, a convivência só não basta. Você precisa ter algum tipo de conhecimento e algum talento para fazer qualquer coisa. Então era um cara que sabia fazer o cinema dele. Formal, um cinema absolutamente acadêmico, do qual ele não abria mão. Sabia transformar esse cenário aqui numa maravilha da Bavária. Ele faria esse cenário aqui, através de enquadramentos, de ângulos, tomadas, e quando você visse diria “Mas como é bonito o restaurante. Será que esse restaurante é tão bonito assim?” Não. O restaurante é bonito, mas ele faria do restaurante uma coisa absolutamente maravilhosa, com uma câmera na mão. Uma câmera na mão, não. Uma câmera no tripé. Jamais na mão. E uma boa iluminação.

EE – E o Marcelo? Ele chegou a falar a respeito com você? Comenta sobre a questão do Marcelo ser ou não um alter-ego do Khouri.

RM – Essa história de “alter-ego”, “autobiográfico”... não acho que tenha nada disso. Eu não acredito, nunca vi, porque ele não era nada daquilo. Ninguém tem fantasias quando pode fazer delas uma realidade. E ele podia fazer delas uma realidade, podia seduzir todas as mulheres, podia conquistar todas aquelas mulheres. O poder fascina. Ele era o poder. Era o homem que pegava uma mulher feia e a transformava numa mulher bonita. Pegava uma mulher pelada com um corpo feio e transformava o corpo dela em algo maravilhoso. Ele tinha o poder. Não precisava buscar um alter-ego numa coisa cinematográfica porque ele podia realizar tudo isso, se quisesse. Então não vejo isso como um alter-ego. Apenas uma opção, uma escolha.

EE – E qual o porquê dessa escolha, na sua opinião?

RM – O comportamento humano sempre foi uma preocupação, sempre foi uma constante na vida dele. E esse comportamento humano veio se alterando... Quer dizer, a forma de expressar essas coisas todas, veio se alterando no momento em que os costumes também começavam a ser liberados. E ele simplesmente acompanhou o movimento, que era um movimento mundial, de libertação sexual, libertação feminina. Evoluiu um pouco mais nos filmes, na estética dos filmes, evoluiu para um caminho um pouco mais ousado, vamos dizer. Mas é uma constante, é uma constante dele.

EE – Roberto, uma questão: o Khouri teve que fazer concessões, e o “Convite ao Prazer”, filme de 1980, é um exemplo disso, algo mais comercial. Você lembra se ele estava meio de saco cheio de fazer o filme? Ou estava a fim mesmo? Não rolou nenhum descontentamento, “Vou ter que fazer concessões, botar muito sexo.”

RM – O Walter jamais faria uma coisa que ele não quisesse. A idéia, eu acredito, era de “Eu patrocino mais um filme para você, mas esse filme tem que ser da pesada.” A idéia, para ele, deve ter sido de imediato uma tentação. Ele embarcou nela direitinho, sem constrangimento, sem arrependimento, sem nada, nada. Com uma satisfação incrível. O Khouri brincava muito. A gente só filmava depois das 5 da tarde. Sempre, sempre. Eram 5, 6 horas. Algumas equipes reclamavam pra burro, mas ele acabava levando todo mundo no papo. Todos aceitavam, incorporavam, ficava sendo assim e acabou. Então, digamos, lá pelas 11 horas, meia-noite, o pique está caindo, tem um cara lá mexendo, mudando na luz, ele então botava Sarah Vaughan, alguma coisa, entre uma tomada e outra. Já colocava a Sarah Vaughan, de quem ele gostava muito, e começava: “Ai, meu Deus, como é duro ganhar 1 milhão de dólares!... Como é difícil ganhar 1 milhão de dólares!... [risos] Ai, meu Deus, quanto dinheiro essa equipe vai ganhar no próximo filme...” Aí, claro, todo mundo: “Vamos nessa, vamos nessa...”

EE – Aonde o “Convite ao Prazer” foi gravado? Aquele apartamento é exatamente aonde?

RM – Quando eu falo do talento dele... Um exemplo: o cenógrafo do filme era de televisão. Tinha um histórico, mas criar um cenário cinematográfico foi muito difícil pra ele, e esse filme foi só de locações. Fundação Álvares Penteado, você conhece? Bom, a nossa casa, a dos personagens, Sandra e eu, era a própria casa do Álvares, do Conde, hoje o local da sede da diretoria. A casa, como ela era, está lá até hoje. Igualzinho. Apenas é a sede da diretoria. Eram cenários, já eram cenários naturais, e não se tocava em nada. Mas no caso da garçonnière, o cenógrafo teve que construir. E teve dificuldades pra fazer isso....

EE – ... Isso no estúdio, claro, não é?

RM – Foi. Ele teve o espaço, “Bom, é aqui, para você fazer isso. Os recursos são esses.” Os recursos que o Galante deu. “Você tem 2.000 pra fazer um cenário aí”. E ele não conseguiu fazer. Não conseguiu fazer porque não tinha a habilidade de criar uma verdade em cima de uma mentira. Ou uma ilusão em cima de uma coisa que não é nada, apenas com efeitos visuais. O cenário que ele fez... quando a gente foi entrar... [Silêncio.] “Êpa”, eu avisei para quem estava comigo, “a gente não vai filmar hoje, não”.

EE – E o Khouri, quando viu?

RM – Quando o Walter viu aquilo, disse “Meu Deus!” Falou o diabo, mas com o jeito dele. Ele xingava com uma pompa, com um finesse sem igual [risos]. Em suma, aí o Walter disse “Eu quero isso, isso e isso.” Agora vou dizer como foi feito o apartamento: era um fundo infinito, um cantão que tinha sido de uma produtora, que havia saído dali, porque o local era um lixo. Mas era uma área enorme. E um fundão grande, um fundo neutro enorme. O Walter, então, comprou um jirau. Deve ter custado uns 1.500. As madeiras, o ferro. Colocou num canto. Para o outro canto, foram na rua do Oriente, compraram 100 metros de pano e umas almofadas velhas em algum lugar, e fizeram uma falsa cama árabe ou qualquer coisa assim. De mentira. Com aqueles panos jogados em cima, umas cortinas. Pegaram um barzinho, botaram no meio do cenário. Uma coisa infeliz, totalmente absurda se você visse. Mas na composição cinematográfica, maravilhosa. Arrumaram uma porta para entrada do apartamento... mas também só uma porta. Uma porta do tamanho de três janelas, uma porta enorme, de uma madeira enorme qualquer. Claro que essa porta foi montada ali mas não foi comprada, porque o Galante não iria comprar. Deve ter pedido emprestado e pôs nos agradecimentos, não me lembro como foi.

EE – Agora, passando para o “Eros”, um dos meus filmes preferidos do Khouri. Como foi pra você o trabalho na filmagem? Porque a câmera é subjetiva, e você aparece pouquíssimas vezes, de relance. E depois queria que você comentasse uma das locuções mais deslumbrantes do cinema brasileiro: aquele início do “Eros”, que é uma coisa de arrepiar os cabelos... Uma coisa linda, aquele início. O texto e a voz. Acho excepcional. Queria que você comentasse isso e também as filmagens.

RM – Recentemente falei para um diretor de cinema que eu não gostava do “Eros”. E ele ficou chocadíssimo comigo. Eu nem vi o filme pronto. Vi o filme em moviola, mas não vi o filme na tela. Nunca vi o filme porque não gostava. E ele ficou extremamente chocado. Eu estou ouvindo agora uma outra opinião, que vem de acordo com o que ele diz. Então preciso alugar o filme amanhã. Preciso ver, eu preciso ver isso. A proposta inicial do Walter era de uma câmera subjetiva quase absoluta. Uma mão em rápidos movimentos, um vulto em penumbra, um dorso nu que fosse, tudo em raros fotogramas, flashes, mas houve pressão. Queriam mais. Eu sentia isso no platô. O ideal seria uma coisa mais explícita, e o Walter cedeu um pouco, deixou a luz em mim aumentar um pouquinho, a presença mais ostensiva, e a subjetividade ficou meio cá, meio lá. Também achei que o meu trabalho, voice-over, foi muito ruim. Briguei muito com o Walter, porque eu queria um voice-over mais enérgico, mais forte, e ele dizia que o personagem era muito frágil. Eu dizia que não ia dar certo, que o pessoal ia dormir na platéia. Na verdade, havia pouco para eu fazer no filme, como ator. Mas foi proposto para mim. “Olha, se você quiser.” Era uma coisa que o Walter sempre dizia, quando ele falava de futuros projetos.

EE – E como ele te propôs?

RM – Quando a gente filmou pela primeira vez, ele já falava deste assunto. “Meu sonho é fazer um filme assim, assim, assim.” Ou seja, a câmera subjetiva. E eu dizia: “Pô, mas isso é o cúmulo da loucura”, é só o que o ator pode falar [risos], quer arruinar o ator [risos]. O suprasumo da loucura e da vaidade. “Você é um pavão de vaidoso.” E ele ria muito comigo. “Mas eu vou fazer. Vou conseguir um louco, e vou fazer.” Então foi proposto a mim.

EE – E você aceitou.

RM – Foi uma renúncia bem grande, mas havia a compensação do voice-over. Inclusive, os espectadores, até hoje... Um espectador que nunca tenha visto, por exemplo, se o filme for exibido na televisão... Eu às vezes encontro na rua quem vem me dizer: “Pô, cara [risos], cortaram o seu papel? O que que foi? Foi censura que cortou, e você aparece pouquinho?” Eu digo “Não, foi assim mesmo. É que eu fiz plástica”. Esse cara é um idiota, não é? Esse cara não está entendendo absolutamente nada. Eu digo “Não, é que eu fiz plástica, estava cheio de hematomas, e por isso tive que ficar de costas, e tal...” [risos]

EE – Roberto, fala para a gente também um pouco do elenco de atrizes no “Eros”.

RM – Era uma gama de atrizes simplesmente extraordinárias no filme. Uma das razões, inclusive, que teria agradado aos produtores a idéia de eu fazer, e para isso me pagaram um salário que era um belo salário, foi o fato de que não haveria constrangimentos. Esse vulto não provocaria constrangimentos em relação à nudez das mulheres, ao fato de elas terem a necessidade de se despirem na frente do personagem. Fariam absolutamente descontraídas, porque algumas já haviam filmado comigo e me conheciam, me respeitavam pela minha educação, e as que não me conheciam obteriam de imediato as informações. Saberiam que poderiam confiar em mim, assim como confiavam a sua nudez ao Walter. Sabiam que seriam protegidas, não seriam expostas.

EE – Encerrada essa parte dos filmes, eu queria fazer uma pergunta sobre o “Documento Especial”, um programa que marcou muito a minha geração. Fala um pouco do programa e dessa fase da sua vida.

RM – Eu prefiro começar falando um pouquinho de jornalismo. Eu não sou jornalista. O que eu sou? Leitor! [risos] Fui convidado pelo Moysés Weltman, falecido, da Manchete, quando a Rede estava sendo inaugurada. Tinha acabado de fazer uma novela na Tv Globo, chamada “Final Feliz”. A Lillian Lemmertz trabalhava nessa novela também. Uma das atrizes preferidas do Walter, excelente atriz. E o Moisés me convidou uma semana antes de a Manchete estrear. Uns 10 dias antes, 15 dias antes, me convidou pra fazer o “Jornal da Manchete”. “Que é isso? Como?” Eu pensei, mas não falei nada. Agradeci o convite e disse que aceitaria, com muita satisfação.

EE – Aí inicialmente você foi fazer o "Jornal da Manchete"?

RM – Fui fazer o “Jornal da Manchete”. Deixei terminar essa novela, “Final Feliz”, que estava acabando. E nisto aconteceram coisas interessantíssimas. Para você ter uma idéia, no “Jornal” eram 8 apresentadores, eu acho. Um cenário absurdo, errado, totalmente errado. Ingênuo. Vi e identifiquei na hora. “Desculpa, mas de cinema eu entendo.” E quando vi o cenário, pensei “Que absurdo, eles não sabem ainda que o cenário não é esse. E o cenário está aqui, pronto.” Eles não entendiam que eles tinham o cenário e que não usavam. Meu Deus do céu. Então eu fui, fui fazer o programa com 8 apresentadores. Oito! Eram 2 bancadas enormes, com o fundo projetado atrás, uma droga de um fundo projetado atrás... Então eu disse: “Meu Deus do céu, tem que arrancar essas trepadeiras de trás, e o cenário está pronto.” Atrás estava o aquário, com iluminação adequada. “Bota aquele aquário, com os caras trabalhando, aquelas luzinhas.” Tudo prontinho, prontinho. O que hoje fazem em fundo projetado, um trabalhão de computação gráfica, no nosso estava pronto, ali. Mas botaram uma parede na frente, tapando!

EE – E a apresentação do "Jornal"?

RM – Bom, para você ter uma idéia, era uma coisa tão louca, que no terceiro dia fiquei ali sentado, não disse uma palavra [risos]. Mas o tempo foi passando, fui conquistando o meu espaço, e chegou um momento em que eu apresentava, era o titular do “Jornal”. O Bianchini e eu éramos os titulares. Um cara chamado Antônio Carlos Bianchini, acho que ele está hoje na Rádio Globo, de manhã. Bianchini e eu apresentávamos o “Jornal”.

EE – Aí você tinha conquistado seu espaço dentro da emissora...

RM – O Nelson Hoineff veio dos Estados Unidos e chegou pra mim: “Olha, cara, vai ser feita uma segunda edição e eu vou dirigi-la. Não me interessa se você trabalha ou não na primeira. Eu quero você na segunda edição também, porque considero você o único apresentador moderno deste país! Os outros todos são leitores de teleprompter.” Eu também lia teleprompter, mas a minha linha era absolutamente intimista, natural, e eu participava. Às 5 horas estava lá. Quero saber o que eu estou falando, tenho que entender o que eu estou falando e de quem eu estou falando, qual a minha posição a respeito disso. Voltando ao Nelson: “Esse jornal vai ser legal, por quê? Porque ele não vai ser patrulhado. Onze e meia da noite o pessoal da casa já está dormindo. Ou está numa boate ou está dormindo.” Então eu passei a fazer primeira e a segunda edição [risos].

EE – E o Documento Especial?

RM – Às vezes eu dizia, me referindo ao jornal das 8 horas: “Este jornal tem que ser feito por uma pessoa sem essa porcaria desse cenário, com aquele cenário lá fora”. Eu vivia dizendo isso. “Vocês não estão vendo?” Aí eu já tinha liberdade para falar tudo. “Vocês não enxergam, pô? O cenário é esse.” E tanto eu falei que passou a ser aquele cenário. Bom, aí eu comecei a dizer outra coisa: “Esse jornal tem que ser feito por um só.” Eu achava que seria eu [risos], me considerava mais preparado, mais inteligente. Não tinha o diabo da carteirinha de jornalista, o Bianchini tem a carteirinha. E assim foi. Eu falando, falando, até que um dia fiz o “Jornal” sozinho. Não me lembro quando foi. “Estou fazendo o ‘Jornal’ sozinho!” Todo mundo ficou me odiando, inveja, esse tipo de coisa. Disputa é assim mesmo. Aí eu ganhei um carro, um Fiat Premium. Estava retirando o carro numa autorizada, lá na avenida Brasil, e não sabia quem ia fazer a escalada... Sabe o que é “escalada”?

EE – Explica pra gente.

RM – Escalada é aquela chamadinha que aparece antes do programa. Ela sempre é gravada uma hora antes, ou ao vivo, como for. Eu tinha que fazer a escalada. Aí liguei porque fiquei em dúvida se seria eu ou o Bianchini. Um dia era eu, um dia era o Bianchini. Apesar de eu chegar mais cedo, de eu gostar de chegar mais cedo, a hora mudava conforme fosse a escalada. Ligo e me dizem: “Você não precisa vir aqui, a partir de hoje o ‘Jornal’ vai ser feito por uma pessoa só. E vai ser o Bianchini.” [risos] Eu deixei passar uns 15 dias e me demiti [risos]. Mas passou um tempinho, o Nelson disse: “Olha, tem uma parada aí: ‘Documento Especial’. É isso, isso, isso. Nós vamos enganar, de início, vai parecer um programa meio policialesco. 2 ou 3 a gente faz assim, e depois entramos numa linha conceitual.” Era interpretar a Constituição de 88, que dá liberdade editorial e liberdade de expressão para todo cidadão brasileiro. Uma coisa que a televisão não tinha reconhecido até então. E foi o que aconteceu. Essa é a história. Tudo da cabeça do Nelson.

EE – Tem alguma reportagem que tenha sido especial, dentre as tantas...

RM – Todas foram sempre especiais. Política, violência, corrupção, amor, exclusão social, guerra, religião, fome, contravenção. O Brasil, enfim. 2 ou 3 Troféus Imprensa, Prêmio Especial do Festival de Vídeo em Cannes, generosas citações na imprensa. O Nelson diz: “Daqui a 50 anos vão estar falando da gente.” Uma vez fomos fazer uma humoradíssima reportagem sobre nudismo em Santa Catarina. Fizemos um segundo programa. Aí no segundo programa, a equipe ficou nas mãos de uma mulher. Repórter e produtora. Na nossa equipe eram 5 pessoas: operador, câmera, operador de som, porque nós não botávamos lapela. Era som de vara, nada de microfone na cara do sujeito, nada disso. Então tinha um câmera, um operador de som, um operador de vídeo, um produtor, um repórter. Cinco pessoas. Uma equipe muito grande, inclusive, para um programa desse gênero.

EE – Aí nessa reportagem de Santa Catarina foi apenas uma pessoa?

RM – Não, equipe técnica e só uma mulher fazendo produção e reportagem. Uma mulher pra fazer as 2 coisas. Vem o material, está rolando a edição, um cara edita, aí vai pra edição final. Tudo ótimos, situações deliciosas! Belos depoimentos. Às vésperas, faz-se a edição final, onde é o garimpo total. “Mas só tem homem pelado? [risos] Não tem mulher! O que aconteceu? Vocês agora estão mudando, antigamente só tinha mulher pelada, e agora só tem homem!” Por que no programa anterior já tinha tido bastante homem, só que mais democrático: meio a meio. Metade homem, metade mulher. E quem estava editando comentou que só havia homem no segundo. Vamos ver [risos]. “9 masculinos e 2 femininos! [risos] O que é isso? O cara está certo, [risos] o que que nós vamos fazer?”. Aí pra garimpar... Mas essa é barriguda. Essa, tem a bunda feia, uma bundinha feinha. Essa está toda tortinha. Essa está não sei o que mais... “Mas tem que entrar, cara. Tem que entrar mulher.” Aí conseguimos botar 2 terços de homem e 1 terço, pelo menos, de mulher. Foi uma coisa que... passou a ser satisfatória [risos]. Mas os machistas chiaram. Ligavam e diziam: “Vocês viraram viados?”

EE – Roberto, voltando ao cinema, como você vê os períodos diferentes ao longo da sua carreira? Os anos 60, 70, 80, mesmo depois. O que você sente de diferente na produção dos filmes no cinema brasileiro, nessas décadas. Ao mesmo tempo, fale um pouco da sua participação em produções recentes.

RM – Bom... Eu trabalhei em filmes de ponta, em produções modestas, e o que eu poderia dizer é que o aparato era, sempre foi, mais ou menos parecido. O número de membros da equipe sempre foi mais ou menos parecido. Uma produção era um pouco mais generosa, outra produção era um pouco menos generosa, mas mesmo em se tratando de filmes de resistência, de filmes de sobrevivência, as coisas eram mais ou menos parecidas.

EE – Mesmo depois do “Eros”, que é de 81?

RM – ... Então, depois de 81 eu parei totalmente de filmar. Em 83 eu fiz a novela e fui pra Manchete, no jornalismo. E passei dessa época até recentemente, até o ano passado, sem absolutamente participar de filme nenhum. Surgiu um convite para fazer um filme, no ano passado, do Ivan Cardoso, que é o “Sarcófago Macabro”. No qual, inclusive, eu não estou como ator, o filme tem um apresentador. Um filme divertidíssimo, com toda a loucura do Ivan, e é um filme pobre financeiramente, mas com um tipo de produção ao qual eu estava acostumado. Uma boa equipe, um bom diretor de fotografia, uma equipe profissional, película. E participei depois de um outro filme, “Cafuné”, também um filme de resistência, de um diretor denominado Bruno Vianna, novo. Esse filme foi feito em vídeo, com uma equipe modesta, atores modestos, não de mídia. Mas uma equipe também sempre nesse patamar que eu conheci. 20 pessoas, 22 pessoas, sempre trafegando por aí. Um apoio razoável. Meu papel é pequeno, mas excelente. O filme já está sendo exibido, fui a uma sessão especial e quase morri! Os exibidores acharam o filme longo, e mandaram tirar 20 minutos. Nessa, virei figurante de luxo. Não recomendo o filme, foi desfigurado, mas o Bruno tem uma versão integral, legendada em inglês, inclusive, que é excelente. Belo filme, vi num cineminha simpático e “off-Broadway” no Rio, em Santa Teresa. E recentemente eu fui convidado para trabalhar no filme do Carvana, “A Casa da Mãe Joana”. Nesse, eu me espantei com o aparato. Equipamento cinematográfico e eletrônico de ponta. Contei na equipe de produção, quer dizer, eu contei na ficha técnica que está afixada no estúdio, lá na... na cidade do cinema, um monte de estúdios de cinema e que foram construídos com benefícios fiscais em Jacarepaguá, atrás do aeroporto. A equipe tinha mais de 60 pessoas. Sem contar com a refeição, hein? Sem contar com a turma da refeição, que é terceirizada, e parte do serviço de transporte, que também é terceirizado. Vans e vans trabalhando com a equipe. Eu achei isso uma coisa de louco. Ontem, inclusive, eu estava comentando com uma atriz, a Maria Gladys, e a Maria disse: “É que você não tem filmado muito”, com aquele jeitinho dela, “é que você não tem filmado muito, malandro. Você não está sabendo das coisas.” E agora, diz a Maria, que as coisas são assim. Não foi pra mim porque nem o filme do Ivan foi, nem o filme do Bruno. Não faz deles filmes menores, mas não foram. Não tinham esse aparato. Foi também a primeira vez que eu trabalhei com câmera acoplada. Câmera de vídeo acoplada, som direto. O Bruno teve som direto também, mas não era em película. Câmera acoplada, que é uma coisa muito boa, te favorece na edição. Terminou de filmar, já sabem o que você tem. Já devem estar limpando, já devem estar preparando a edição. Essa é a grande vantagem que eu vejo entre o último filme que eu fiz, com o Walter Hugo Khouri, o “Eros”, em 81, para o que eu estou fazendo agora.

EE – Como última pergunta, a que eu sempre faço. Queria um comentário seu a respeito dos seus filmes. O que fica do Roberto Maya para o cinema; o que representa seu trabalho como o ator para o cinema brasileiro.

RM – É terrível, mas eu devo dizer que nunca me levei a sério. Talvez seja até uma coisa negativa, seja ruim. Talvez eu nunca tenha me respeitado. Eu diria que se fosse começar uma carreira hoje, seria um excelente ator, coisa que eu não fui. Mas hoje seria um excelente ator, porque hoje estou preparado para isso. Coisa que eu devia estar aos 25 anos, como hoje um garoto de 20 está preparado, ele começa a se preparar muito cedo. Eu não tive competitividade. Para mim, as coisas vinham que era uma beleza. Uma coisa absurda, como esse mercado já era grande quando eu comecei, e como havia pouca mão-de-obra. Eu não sei se porque a grana era curta, ou se porque era uma coisa vista com maus olhos, não sei. Mas era muito fácil, bastava você querer. Chegava na Fiorentina, ou na Gôndola e dizia: “Eu quero”. Então ia ter pra você. Hoje tem 300 não só de garotos, de garotas. Tem 300 velhos e 300 velhas falando “Eu quero” [risos]. E digo mais: para fazer o personagem no “Cafuné”, eu fui fazer teste. Me ligaram, para fazer teste. Eu pensei: “Ou eu mando para aquele lugar ou eu vou fazer o teste. Mas espera aí. Se eu mandar eles, eu não vou ganhar isso. E eu quero fazer, eu vou fazer o teste. Eu vou topar esse desafio. Eu vou fazer o teste porque vou ganhar esse personagem.” Não servia para mim, a minha idade já havia passado, mas fui fazer o teste. Não conhecia ninguém, nada. Sentei diante da câmera fixa, como em fotografia para passaporte. Um garoto, ator, as pessoas, produção, por ali. Aí o diretor faz uma pergunta pra mim. Eu começo a distorcer a resposta e começo a falar não de mim, mas do personagem. E começo a falar do personagem, até que de repente, o garoto, que é assistente de direção, começa a acreditar, apavorado, em tudo o que eu estava falando [risos]. E o diretor também, até aquele momento. Quando eu percebi que o diretor estava acreditando, pensei: “Pô, se ele está acreditando no que eu estou falando...” Eu estava falando um monte de besteiras, numa arrogância muito grande, coisas que só um idiota total pode falar a seu respeito. E percebi, “O diretor está entrando também nessa. Ele está achando que é sincero isso.” Como eu estava com uma camiseta de algodão barata, ainda falei, mostrando a camiseta, o nome de uma loja bem cafona e cara: “95. Custa 95” Quando eu falei isso, o diretor sacou, entendeu, riu: “Chega, chega, pára, pára que eu estou com pressa. Está eleito”. [risos] E fui fazer o personagem do filme.

17 comentários:

Anônimo disse...

Ssensacional, Andrea, sensacional.
Sou fã do blog. De carteirinha, há muito tempo.
Certamente, vc é uma autoridade no assunto, uma das maiores do Brasil. E olha que eu gosto bastante de tudo que envolve nosso cinema.
Abração!

Anônimo disse...

Andrea, a entrevista com o Roberto Maya ficou excelente. Embora ele modestamente minimize sua importância como ator acho que deixou sua marca de forma muita positiva no campo audiovisual brasileiro. Espero que participe de muitos outros filmes.

Anônimo disse...

Parabéns, Andréa, por nos brindar com mais uma entrevista impecável e inteligente - tanto as perguntas como as respostas. Adorei você ter perguntado sobre as locações, um aspecto fundamental dos filmes, porém tão negligenciado pelos pesquisadores do cinema. Eu já tinha sacado que o palácio do "Convite ao Prazer" é a fabulosa "Casa Rosada" dos Álvares Penteado que hoje é da FAAP, a maior mansão art déco em São Paulo, mas a garçonnière me deixou (e a todo mundo que viu o filme) intrigado e impressionado. Agora está explicada! É nesses aspectos pouco valorizados, como as locações, que se revelam os verdadeiros mestres, os estetas, os artesãos do cinema, e em termos de locações o Khouri era insuperável.

Eu só conhecia o Roberto Maya através do "Documento Especial" da Manchete, e só recentemente pude conferir suas marcantes atuações através do Canal Brasil. É um privilégio assistir aos filmes do Roberto Maya no Canal Brasil e quase que simultaneamente, saber mais sobre os seus filmes, de sua própria boca, através dessa entrevista - isso vale como um verdadeiro curso de cinema. Estamos aguardando ansiosamente a próxima entrevista.

Anônimo disse...

Andréa, havia prometido para mim mesmo que não faria comentário em nenhum blogue até decidir se continuo ou não com o meu. Mas depois de ler essa entrevista sou obrigado a descumprir a promessa hehehe!
Maravilhosa entrevista com esse excelente e modesto ator, a melhor que vc já fez...até a próxima :)
Beijão!

Anônimo disse...

É isso ai Andréa!!! Coincidência...na semana passada eu indiquei o teu blog para uma colega minha que está pesquisando sobre os filmes do Khouri que tenham o personagem "Marcelo"!!!
Continue assim!!!!
Parabéns!!!

Anônimo disse...

Lembro-me muito bem na virada dos anos 80 para os 90, como eu ficava até altas horas da madrugada para assistir na extinta TV manchete e depois no CINE BRASIL na BAND, aqueles maravilhosos filmes nacionais, foi na ocasião que assisti: BONITINHA MAS ORDINÁRIA, TERROR E EXTASE, FILHOS E AMANTES, RIO BABILÔNIA e tantos outros, qque agora com seu BLOG estou tendo a oportunidade de relembra-los, mas de todos os que eu mais gostava eram os filme do Khouri: O PRISIONEIRO, CONVITE AO PRAZER e AMOR ESTRANHO AMOR(este locadado quando a fita ainda exitia das locadoras)OBRIGADO por me dá esta oportunidade de reviver aqueles tempos da minha adolscência.

Anônimo disse...

Oi Andrea. Mais uma grande entrevista, como de hábito. Está virando costume isso. Numa entrevista no Canal Brasil, ele falou a mesma coisa: que nunca se levou a sério, nem se acha grande ator. Mesmo assim, se ele não é grande o que toda essa Retomada é ? São pessoas humildes como ele que precisamos e não de metidos a tudo. No mais, quero dizer que a nova edição da ZINGU! de novembro está no ar com colaboração sua, do genial Sérgio Andrade, do grande Marcelo Carrard e ainda com a estréia do amigo EDUARDO AGUILAR....Dossiê sobre John Huston e uma longa entrevista com o assistente de câmera Concórdio Matarazzo. Conca esteve presente em mais de 25 filmes na Boca e foi o assistente preferido de Ody Fraga, Jean Garret, entre outros. Por isso pra quem tiver tempo dê uma passada em www.revistazingu.blogspot.com

Anônimo disse...

Andrea,parabéns por mais uma excelente entrevista,putz,sempre curti o trabalho do Roberto,e lembro que eu sempre assistia o Documento Especial,era muito bom...
e a Zingu tb está excelente,parabéns de novo!

Andrea Ormond disse...

Carlos, Márcio, Jorge, Sergio, Cassiano, Gélikom, Matheus, Dr. Lorax, obrigada a todos vcs, a todos os leitores da entrevista e ao Roberto Maya, em especial. Uma pessoa super gentil, de um humor que lembra a Ipanema dos 70, cheio de histórias qe se multiplicam e tornaram esta entrevista, na realidade, um bate-papo inesquecível.

Anônimo disse...

as COISAS são assim tela de TV é ilusão mais ter ideias...
é problema.

Anônimo disse...

as COISAS são assim tela de TV é ilusão mais ter ideias...
é problema.

Anônimo disse...

SOUL MASSAPE GOSTEI DAS SUAS PALAVRAS SOBRE O FILME DA SEMANA PASSADA 26/11/2006

Anônimo disse...

parabens para o roberto, ele era otimo no documento especial

Anônimo disse...

Aih.....parabens a sua reportagem...Eu não sabia que o Roberto foi um ator nessa vida...Lembro dele perfeitamente no programa Documento Especial...agora sinceramente...ele na apresentação do Jornal da Manchete era muito chato..teve um dia que ele deu uma bana pra algumém ao final do joenal em pleno dia 31/12. O carlos Bianchini ficou serio ao lado dele..enfim.valeu a entrevista!!

Rodrigo Hammer disse...

Roberto Maya é gênio e você conseguiu entrevistá-lo à altura. Meus sinceros parabéns!

Aurélio Blogado disse...

Quem não conhece o César da novela Final Feliz? Quem matou o César? Acho que foi o personagem Luis Augusto Branco que também está em Paraíso Tropical como o pai de Daniel Bastos. óTimo ator o Roberto Maya.

Unknown disse...

Conheço o Roberto Maya pessoalmente e uma excelente pessoa e um excelente ator,tenho o prazer de conviver com ele todo dia