Um dos grandes cineastas brasileiros que mais merecem um novo olhar preciso e despido de preconceitos sobre sua obra, Alfredo Sternheim estreou no cinema ainda garoto, aos 14 anos, quando a maioria dos colegas nem pensava em seguir qualquer carreira profissional.
De figurante em filmes da Vera Cruz até a direção de curtas e posteriormente de duas dezenas de longas-metragens, a trajetória de Alfredo envolveu passagens pelo mítico Cineclube Dom Vital, onde pôde assistir a palestras de convidados como Rubem Biáfora e Walter Hugo Khouri. Aproximando-se de Khouri, trabalhou inicialmente em “A Ilha” e fez a assistência de direção na obra-prima “Noite Vazia”, de 1964.
Mais tarde – já em 1972 – filmaria “Paixão na Praia” com a estrela de “Noite Vazia”, Norma Bengell. “Paixão na Praia” foi sua primeira e brilhante incursão na direção de longas, que seguiria em uma trajetória generosa nos anos 70 criando obras de rigor estético apurado como “Pureza Proibida” e “Anjo Loiro”.
Somando esse trabalho de realizador com a atividade de crítico em inúmeros jornais e revistas, além de autor de livros referenciais para pesquisadores e público – caso do recente “Cinema da Boca - Dicionário dos Diretores” –, Alfredo conta nesta entrevista um pouco da sua vida, extraindo de cinco décadas de atividade a segurança e o discernimento de quem consegue pensar sobre a arte cinematográfica sem perder contudo o olhar apaixonado, a vocação lúdica de artesão.
EE – Alfredo, vamos começar falando um pouco sobre as suas origens. Pai, mãe, irmãos.
AS – Nasci em São Paulo, 31 de julho de 1942. Sou o segundo dos dois filhos de um alemão e de uma marroquina, Marrocos ainda era um protetorado espanhol na época. Meus pais se conheceram em 1936 no Rio de Janeiro, ambos judeus. Ele se estabeleceu no Brasil, fugindo do nazismo, e ela veio na companhia da mãe para visitar uns parentes que já moravam no Rio. Como a guerra civil espanhola estourou, ela foi ficando e acabou se casando. Cresci em um ambiente cercado de cultura...
EE – ... Aproveitando o gancho, você se lembra de algum episódio da infância ou da adolescência que tenha sido marcante para sua formação?
AS – Há vários, como a chegada da televisão em casa. Só existiam dois canais em 1952 e através da tv descobri o teatro, o teleteatro com Sérgio Cardoso e Nydia Lycia, com Bibi Ferreira e... Dercy Gonçalves [risos]. Foi pela tv que assisti ao Hamlet e em 1954 descobri a ópera: “Aida”, “Lucia di Lammermor”, “Lo Schiavo”... Eram episódios emocionantes. Isso sem falar dos filmes com legendas em português: “Endereço Desconhecido”, “A Carta”, etc.
EE – Aliás, como o cinema apareceu na sua vida?
AS – Desde criança já gostava de cinema. Aos 10 anos já queria ser ator. Minha mãe tinha um conhecido espanhol que trabalhava como técnico na Vera Cruz, e quando fui visitar os estúdios um dia, depois do término da filmagem de “Sinhá Moça”, fiquei deslumbrado com os cenários, as máquinas e a cidade cenográfica. Em 1956, aos 14 anos, trabalhei dois dias como figurante na Vera Cruz em “Osso, Amor e Papagaios”. Nesses dois dias, fiquei enlouquecido pela mecânica da filmagem e decidi ser ator e diretor. Mas quando me vi na tela em 14 cenas, desisti de ser ator
EE – De qualquer forma, para um garoto de 14 anos deve ter sido uma experiência fora de série.
AS – Sem dúvidas. Passei a ler mais ainda sobre cinema e em 1958, antes de completar 16 anos, fui ao cineclube Dom Vital, quando então começou uma fase maravilhosa. Descobri outras pessoas que tinham a mesma paixão. Entre elas, Gustavo Dahl e Fernando Seplinski, que foi crítico do Estadão. Descobri clássicos no Museu de Arte como “Intolerância”, “Navigator”, “A Carne e o Diabo”. Mais do que nunca, passei a ter certeza de que queria ser diretor.
EE – E quando você, de fato, ingressou profissionalmente no cinema?
AS – No cineclube, além dos debates, aconteciam muitas palestras. E um dos palestrantes foi o Walter Hugo Khouri. A oportunidade de ingressar no cinema profissionalmente deu-se em 1961, quando ele disse que precisava de um segundo assistente e continuísta para “A Ilha”. Me oferecei, ele aceitou, e lá fui eu para Bertioga, no litoral de São Paulo. As filmagens duraram 90 dias, 30 a mais do que o previsto e, para minha felicidade, parte de “A Ilha” acabou sendo feita nos estúdios da Vera Cruz.
EE – "A Ilha” é, por sinal, conhecido pelos problemas fora das telas. O que houve?
AS – Muita chuva, tempo fechado, ventanias. Por isso foi necessário criar uma praia artificial nos estúdios, para rodar as externas noturnas. Nisso a minha responsabilidade aumentou, pois fazia a continuidade. Mas ficou perfeito. Ninguém nota a diferença entre externas diurnas, feitas em Bertioga, e externas noturnas, nos estúdios.
EE – Em 1964, também com o Khouri, você fez a assistência de direção no clássico “Noite Vazia”. Qual a influência do “Noite Vazia” para o seu aprendizado?
AS – No “Noite Vazia”, o aprendizado acabou sendo mais na parte humana. Pude constatar na ingenuidade dos meus 21 anos, e 21 anos naquela época eram bem diferentes, com acesso a menos informação existencial, como a natureza humana é complicada. Como o egocentrismo costuma ser forte nas pessoas, a mistificação... Um dos meus “professores” nessa compreensão humana foi o saudoso Mário Benvenuti, que com a sua contagiante alegria de viver, me apontou os bizarros aspectos do comportamento das pessoas. Sou-lhe eternamente grato.
EE – Depois de ter convivido com o Khouri, tanto como o palestrante no Dom Vital quanto diretor nos sets, qual a sua opinião sobre ele, em termos artísticos, estéticos?
AS – O Khouri era repudiado por parte da imprensa especializada porque “não expressava a realidade brasileira.” Vivia-se em clima de esquerda festiva, mas havia alguns críticos que o elogiavam: Biáfora, Ely Azeredo, Moniz Viana. Só posteriormente lhe deram maior reconhecimento. Desde que vi “Estranho Encontro”, eu gostava de seu cinema, esteticamente cuidado e com preocupação de valorizar o sentimento humano, a atuação. No set ele criava um clima legal e raramente se impacientou com minhas falhas. Pelo contrário, ele estimulava o meu aprendizado. Em “A Ilha”, por exemplo, aprendi muito. Fiz de continuidade a assistência, e assistência de montagem com o também fantástico Máximo Barro. Acompanhei a dublagem, enfim, acompanhei o filme até na exibição, levando as cópias para o cinema.
EE – Você citou o Rubem Biáfora, outro nome de peso para o cinema brasileiro. Vocês se conheceram no Dom Vital e anos depois você passaria a ser colega de redação dele, no “O Estado de São Paulo”. O que você lembra do Biáfora, pessoal e profissionalmente?
AS – O Biáfora já era um crítico respeitado e polêmico quando o conheci. Tinha uma grande capacidade de descobrir talentos sem precisar de bibliografia, de referências. Naquela época não havia internet, ele não lia nada da imprensa estrangeira, mas graças ao Biáfora descobriu-se que existia um cinema japonês brilhante, além do Kurosawa. Me deslumbrei com a beleza de “Ravina”, dirigido por ele, e escrevi um artigo entusiasmado. Foi aí que ele rompeu a distância, tornando-se meu amigo. Em março de 1963, quando numa discussão sobre cinema o Seplinski pediu demissão do cargo de segundo crítico do Estadão, ele me convidou para escrever. Mas ele não queria que eu entrasse na redação, tinha receio de que minha aparência de moleque, eu não tinha completado 21 anos, criasse problemas na vetusta redação. Naquela época era o contrário de hoje: atualmente só jovens predominam nos jornais, idosos e maduros são raros. Fiquei até 1967, escrevi mais de 800 textos. Mas nem sempre foi fácil me relacionar com o chefe Biáfora. Ele tinha uma personalidade forte, determinada.
EE – Como era isso?
AS – Biáfora era mais azedo, porém autêntico na expressão dos sentimentos, bem menos contemporizador do que o Khouri. Biáfora era mais turrão, o que dificultava a sua vida, as suas relações com outros. Mas tinha um ótimo caráter.
EE – Ainda na esfera jornalística, você teve participações antológicas na revista “Filme Cultura”. Duas me marcaram em especial: as entrevistas com o Luiz Sérgio Person e com o José Medina. O que você lembra dessas pessoas durante as entrevistas, como elas interagiam, qual era o clima no ar?
AS – Duas grandes pessoas. O Person era exuberante, sério e divertido ao mesmo tempo. Me arrependo, por um equívoco meu, de não ter dado atenção à possibilidade de ser assistente dele em “São Paulo S/A”. Fiz uma confusão, achava que outra pessoa, antipática, era ele. O Medina, sinto orgulho de ter colaborado para uma pequena fase de brilho em sua velhice. Foi encantador. Almoçamos juntos e depois fiz a entrevista em sua casa na rua França Pinto, onde morava com os netos. Um sujeito alegre, um grande cineasta, seu “Fragmentos da Vida”, de 1919, é maravilhoso.
EE – Antes de passarmos diretamente para os seus filmes, gostaria de perguntar para você quais as diferenças e as semelhanças entre os trabalhos como crítico e como realizador?
AS – Ser crítico é fisicamente mais fácil do que ser realizador. Eu me julgo um cara de sorte por ter sido crítico e cineasta ao mesmo tempo, creio que uma área melhorou a minha atuação em outra. Ser crítico faz com que muitos tenham posturas arrogantes, agressivas. Eu sempre me preocupei em ser uma ponte entre filme e público, procurava mais os aspectos positivos dos filmes. Talvez por temperamento e principalmente por conhecer o outro lado do cinema, por vivê-lo intensamente, nunca desrespeitei ninguém, nem o pior filme. Sempre evitei o uso de palavras estigmatizantes, jamais usei o termo “canastrão”. Acho definitivo, rude. Nunca tive preconceito com o cinema de consumo popular. Lembro que alguns colegas, na época da “Folha da Tarde”, ficavam escandalizado quando elogiava Os Trapalhões. Não há dúvida de que a influência do Biáfora foi marcante, no sentido de me fazer descobrir gente e filmes por conta própria. E como diretor, o Khouri não me influenciou tematicamente, mas no respeito pela linguagem, na disciplina profissional. Acho que, como cineasta, sou mais influenciado por um Louis Malle ou Zurlini da vida. Não sei dizer.
EE – Você fez curtas importantes como o “Noturno”. Fale um pouco sobre eles.
AS – Do “Noturno”, meu segundo curta, gosto muito. Capta o clima de São Paulo do entardecer até o amanhecer sem narração, sem locução. Algo que não era muito comum na época. Com fotografia linda do Rudoph Icsey, representou o Brasil em Veneza e ganhou o prêmio Governador de Estado de 1967, de melhor documentário. No ano seguinte ganhei de novo com “Flávio de Carvalho”, um curta biográfico com o próprio...
EE – ... O Flávio era tão difícil quanto dizem? [risos]
AS – [risos] Não, a primeira impressão era a de um homem seco e egocêntrico. Mas Flávio falava pausado, era generoso e com uma mente extremamente aberta. Sua criatividade múltipla parecia pretensiosa em uma época onde já se valorizava a especialização. Tinha uma postura e conduta britânica, pontual. E eu gosto de pontualidade. Era um artista plástico ousado também em outras áreas: a engenharia, a arquitetura, os figurinos. Me deu muitas alegrias. Gostei também de fazer, a partir de “A Batalha dos Sete Anos”, três curtas sobre cinema nacional para o INC: “A Batalha”, “O Ciclo Vera Cruz” e “Alberto Cavalcanti”.
EE – Agora, Alfredo, vamos passeando por alguns dos seus longas-metragens. Procure comentar os bastidores, os causos, puxando pela memória. Primeiro a estréia, o “Paixão na Praia”...
AS – O “Paixão na Praia” foi meu primeiro longa, filmei em 18 dias, em julho de 1970. O filme ficou encalacrado na censura em 71 e só foi lançado em 72 nos cinemas. Quer dizer, filmagem em 70, ano de lançamento 72. Eu tinha apenas 18 latas grandes de negativo: já viu o aperto, além da típica insegurança de um estreante, daí ter sofrido um pouco nas filmagens. Em especial com Norma Bengell, uma grande atriz em grande desempenho, mas uma pessoa de difícil convivência no trabalho, pelo menos naquela época. Fiquei feliz de ter possibilitado grandes oportunidades para o quase estreante ator Ewerton de Castro (ele e Lola Brah ganharam vários prêmios) e para o diretor de fotografia Antonio Meliande, então estreando no longa. Depois, sofri com a Censura. Hoje teria dado um ritmo melhor. Não foi culpa do montador, o grande Sylvio Renoldi, mas do diretor estreante.
EE – E o “Anjo Loiro”, de 73?
AS – Do “Anjo Loiro”, de 1973, gosto muito ainda hoje. Creio que tem grande calor humano, um clima algo irônico, meio Almodóvar, que ainda nem existia. Fui feliz na escolha do elenco total, em especial Benvenuti e Vera Fischer que já tinha talento, mas poucos queriam enxergar por conta do preconceito contra a Miss Brasil que ela foi. É pena que depois o filme tenha sido interditado e retalhado pela Censura Federal, cujo diretor era o Rogério Nunes. Na época, a Polícia Federal do governo Médici tinha como chefe o general Antonio Bandeira. Faço questão de lembrar essas pessoas que tanto mal me fizeram com suas decisões absurdas.
EE – E que acabaram sacrificando o trabalho de muita gente...
AS – A mais absurda comigo foi a proibição de “Anjo Loiro” quando o filme estava na quinta semana de exibição, um sucesso estrondoso. Um ato estúpido referendado pelo general Antonio Bandeira e pelo Rogério Nunes. Ato covarde que me prejudicou bastante. Aliás, o que me magoa hoje em dia é ver que existem verbas oficiais para pesquisa sobre filmes proibidos pela censura mas que, segundo informações que recebi de uma das responsáveis por essa pesquisa, no caso dos filmes da Boca ou das “pornochanchadas”, como disseram, vão ficar para depois, em outro bloco. Ou seja, uma pesquisa sobre Censura também faz censura, age com intolerância, faz peneira sob critérios pessoais, subjetivos. Triste.
EE – Fala um pouco do “Pureza Proibida” de 74, que foi produzido pela Rossana Ghessa...
AS – Verdade. O “Pureza Proibida” surgiu de um convite da Rossana, intermediado pelo meu amigo Carlos Fonseca, jornalista e produtor que morreu em 2005. O argumento é da atriz Monah Delacy, que faz a madre superiora, uma grande atriz, uma mulher inteligentíssima. Chamava-se “A Freira e o Pescador”, mas veio o título lindo, sugerido pelo meu amigo e crítico Edu Jancsz. Foi filmado em Arraial do Cabo e Cabo Frio, uma filmagem nada fácil por conta de um acidente de carro com o Carlo Mossy, que fazia o padre, e que me obrigou a alterar duas seqüências...
EE – ... Você se lembra de quais?
AS – Assistindo ao filme não se percebe. Talvez em uma onde o Zózimo Bulbul diz que “o padre mandou dizer que...”. É imperceptível. O “Pureza” tem uma fotografia estupenda do já então veterano Ruy Santos, e gostei de fazê-lo porque, como meus longas anteriores, trata do amor, da paixão e da repressão. Uma luta que, como tema, sempre me atraiu. Através desse filme que tem o Zózimo Bulbul de galã, descobri como é mais intenso o preconceito racial. Tanto na mídia como junto ao público. Eu escolhi o Bulbul porque o achei bonito e bom ator, sem nenhuma conotação com a negritude. O ator podia ser branco, oriental, qualquer coisa. Mas nos estados do Rio para baixo, o filme fracassou. Acima, um grande sucesso de bilheteria. Qual a explicação? Eu devia ter lembrado na época que o “Orfeu do Carnaval”, do Marcel Camus, foi um campeão de bilheteria no mundo todo, menos em um país: Brasil. Por quê?
EE – Esse clima paroquial que ainda existe no país...
AS – Outro exemplo: o episódio “Reencontro”, do inédito “Aquelas Mulheres” infelizmente ficou inacabado. Era coerente com o tema da insatisfação amorosa e da luta para mudar esse quadro. Lilian Lemmertz estava maravilhosa, como sempre. Seus parceiros, Roberto Bolant e Sérgio Hingst, no papel de marido, também. Uma pena que o produtor, um jornalista, não concluiu.
EE – Você tem filmes visionários, rodados em plena ditadura. Um deles, o “Corpo Devasso”.
AS – “Corpo Devasso” é outro filme que me orgulho muito. Embora tenha sido concebido em função do ator-produtor David Cardoso, acho que logrei um bom filme na linha de “Anjo Loiro”. Com o apoio do David que me deu ampla liberdade criativa dentro do orçamento e do pré-estabelecido antes do início, pude fazer um filme bonito, sensual e ousado. Em plena época de ditadura militar coloquei a questão homossexual em cena, sem falso pudor ou caricatura.
EE – E em 81 você fez “As prostitutas do Dr. Alberto”, um WIP brasileiro.
AS – “As Prostitutas” foi concebido a pedido do produtor Galante. Bolei uma história que aproveitasse um cenário de prisão, que ele tinha no estúdio construído para outro filme. Com humor e ação, bolei uma história sobre transplante de genes, até coloquei em uma cena a minha inspiração: o livro “Os Meninos do Brasil”, do Ira Lewin, um filme com o Gregory Peck como Joseph Mengele, o criminoso nazista. Só que levei a trama com certo humor e erotismo, claro. Serafim Gonzalez, que é o pai do Marcelo Antony na novela Belíssima, fez o médico-vilão com muita eficiência. Gosto também dos filmes seguintes, e entre eles “Brisas do Amor” e “Tensão e Desejo”, filmados na cidade praiana de Mongaguá. O primeiro se prende a um esquema do tipo “Grande Hotel”, com vários personagens e situações que se entrelaçam. Algumas são cômicas, outras têm suspense. “Tensão e Desejo” é um film noir em cores e com o erotismo desejado pelo público brasileiro. Tem uma atriz maravilhosa, Sandra Graffi, que não obteve da mídia a valorização merecida.
EE – Já nos meados dos anos 80, acho corajosa a sua atitude de não usar pseudônimos nos filmes de conteúdo sexual explícito. Como foi isso?
AS – Nos filmes com sexo explícito continuei a contar histórias, a ter minha preocupação em emocionar, mas com um novo elemento em cena: genitálias em atividade. Me descondicionei do preconceito e fui avante. Caso me negasse, parava de fazer filmes. O nosso cinema já estava estragado pela política gregária da antiga Embrafilme, que favorecia alguns poucos em detrimento de muitos. Nessa fase me tornei uma pessoa melhor. E como sempre procurei viver a vida com verdade, transparência, detesto a mentira, a dissimulação, não vi necessidade de adotar pseudônimos. Não tinha vergonha do que fazia. Mas, não nego, essa atitude me estigmatizou mais do que eu esperava, em especial no meio das pessoas mais “pensantes”, mais intelectuais. Haja intolerância.
EE – Qual a sua opinião sobre o cinema brasileiro atual?
AS – Só digo uma coisa: nos anos 60 e 70, o cinema da Boca se auto-sustentava e no Rio também existiam os independentes, os cineastas que não estavam acomodados no mecenato oficial que se instalou através da Embrafilme e que se perpetuam até hoje. Criou-se castas de cineastas que, muito bem servidos por esse mecenato oficial, jamais fizeram filmes por conta própria, sem esse apoio. Creio que na família de Luiz Carlos Barreto isso seja freqüente. Daí existirem cineastas que colecionam fracassos e vivem com alto poder aquisitivo. Não digo que não deve existir ajuda oficial. Deve sim, mas com mais parcimônia, mais cuidado, sem esbanjamentos. Casos como “Chatô” são constrangedores em um país com tanta miséria. Acho que o mecenato oficial fez com que muitos de nossos cineastas perdessem a capacidade de dialogar com o público. Há um excesso de cineastas autorais e alguns são apenas pretensiosos. É melhor parar por aqui, caso contrário a bronca fala mais alto. Mas creio que o cinema voltará a ser feito com menos festividade e de forma mais racional. O próprio processo digital vai impor essa linha.
EE – No “Dicionário da Boca”, escrito por você e lançado pela Coleção Aplauso, fica claro esse posicionamento, demonstrado em maior profundidade.
AS – O “Cinema da Boca - Dicionário dos Diretores” foi uma idéia do Rubens Ewald Filho, que exigiu mais esforços do que eu pensava. Emocionalmente me abalou, as recordações de colegas que já se foram me perturbaram mais do que eu pensava. Procurei ser objetivo, e creio que consegui, sem fazer juízo de valor de ninguém, nem a favor e nem contra. Assim, pessoas que eu detestava lá aparecem, bem como outras por quem tive profundo afeto. Estou orgulhoso, creio ter resgatado uma fase profícua de nosso cinema que é freqüentemente esnobada. Já nos livros sobre o David Cardoso e a Suely Franco fui apenas o editor das memórias dos biografados. Se esses livros têm méritos, os méritos são de David e Suely. Fui apenas o “Go-Between”, título de “O Mensageiro”, de Losey [risos].
EE – Alfredo, para terminar, uma pergunta que sempre faço: qual a visão que você tem do seu trabalho. O que fica de tudo o que você fez para o cinema brasileiro, para o público e para os pesquisadores?
AS – É difícil dizer, fazer um juízo a respeito próprio. Creio que fiz um bom cinema sem me acomodar no mecenato oficial, nos orçamentos super-faturados como fizeram e fazem muitos de nossos cineastas. Respeitei a linguagem cinematográfica e o público e tenho orgulho de ser um sujeito que, ao mesmo tempo, conseguiu fazer cinema e exercer a crítica cinematográfica. Exercer o jornalismo cinematográfico como uma ponte entre filme e público, sem atitudes predatórias e estigmatizantes, sem nunca ter usado adjetivos e rótulos. Me orgulho de ter, na “Folha da Tarde”, divulgado bastante o cinema nacional, sem preconceitos. Eu colocava na primeira página chamada para lançamentos. Só lamento que, por despeito ou sei lá por que, boa parte da crítica e dos programadores culturais não me deram a devida atenção. Quem sabe, ainda vão me descobrir, me reavaliar. Enfim, amei e amo intensamente o cinema, e com amor procurei servi-lo. E espero prosseguir, ter condições físicas e financeiras de prosseguir. Não nego que fico muito ressentido quando vejo diretores de muitos fracassos estarem vivendo hoje de forma nababesca, porque superfaturaram filmes feitos com a renúncia fiscal ou outros benefícios. O escândalo envolvendo Guilherme Fontes, no “Chatô” e em outro projeto, me revolta. É mais um caso chocante de desperdício de dinheiro, que merecia o total repúdio da categoria artística.
De figurante em filmes da Vera Cruz até a direção de curtas e posteriormente de duas dezenas de longas-metragens, a trajetória de Alfredo envolveu passagens pelo mítico Cineclube Dom Vital, onde pôde assistir a palestras de convidados como Rubem Biáfora e Walter Hugo Khouri. Aproximando-se de Khouri, trabalhou inicialmente em “A Ilha” e fez a assistência de direção na obra-prima “Noite Vazia”, de 1964.
Mais tarde – já em 1972 – filmaria “Paixão na Praia” com a estrela de “Noite Vazia”, Norma Bengell. “Paixão na Praia” foi sua primeira e brilhante incursão na direção de longas, que seguiria em uma trajetória generosa nos anos 70 criando obras de rigor estético apurado como “Pureza Proibida” e “Anjo Loiro”.
Somando esse trabalho de realizador com a atividade de crítico em inúmeros jornais e revistas, além de autor de livros referenciais para pesquisadores e público – caso do recente “Cinema da Boca - Dicionário dos Diretores” –, Alfredo conta nesta entrevista um pouco da sua vida, extraindo de cinco décadas de atividade a segurança e o discernimento de quem consegue pensar sobre a arte cinematográfica sem perder contudo o olhar apaixonado, a vocação lúdica de artesão.
EE – Alfredo, vamos começar falando um pouco sobre as suas origens. Pai, mãe, irmãos.
AS – Nasci em São Paulo, 31 de julho de 1942. Sou o segundo dos dois filhos de um alemão e de uma marroquina, Marrocos ainda era um protetorado espanhol na época. Meus pais se conheceram em 1936 no Rio de Janeiro, ambos judeus. Ele se estabeleceu no Brasil, fugindo do nazismo, e ela veio na companhia da mãe para visitar uns parentes que já moravam no Rio. Como a guerra civil espanhola estourou, ela foi ficando e acabou se casando. Cresci em um ambiente cercado de cultura...
EE – ... Aproveitando o gancho, você se lembra de algum episódio da infância ou da adolescência que tenha sido marcante para sua formação?
AS – Há vários, como a chegada da televisão em casa. Só existiam dois canais em 1952 e através da tv descobri o teatro, o teleteatro com Sérgio Cardoso e Nydia Lycia, com Bibi Ferreira e... Dercy Gonçalves [risos]. Foi pela tv que assisti ao Hamlet e em 1954 descobri a ópera: “Aida”, “Lucia di Lammermor”, “Lo Schiavo”... Eram episódios emocionantes. Isso sem falar dos filmes com legendas em português: “Endereço Desconhecido”, “A Carta”, etc.
EE – Aliás, como o cinema apareceu na sua vida?
AS – Desde criança já gostava de cinema. Aos 10 anos já queria ser ator. Minha mãe tinha um conhecido espanhol que trabalhava como técnico na Vera Cruz, e quando fui visitar os estúdios um dia, depois do término da filmagem de “Sinhá Moça”, fiquei deslumbrado com os cenários, as máquinas e a cidade cenográfica. Em 1956, aos 14 anos, trabalhei dois dias como figurante na Vera Cruz em “Osso, Amor e Papagaios”. Nesses dois dias, fiquei enlouquecido pela mecânica da filmagem e decidi ser ator e diretor. Mas quando me vi na tela em 14 cenas, desisti de ser ator
EE – De qualquer forma, para um garoto de 14 anos deve ter sido uma experiência fora de série.
AS – Sem dúvidas. Passei a ler mais ainda sobre cinema e em 1958, antes de completar 16 anos, fui ao cineclube Dom Vital, quando então começou uma fase maravilhosa. Descobri outras pessoas que tinham a mesma paixão. Entre elas, Gustavo Dahl e Fernando Seplinski, que foi crítico do Estadão. Descobri clássicos no Museu de Arte como “Intolerância”, “Navigator”, “A Carne e o Diabo”. Mais do que nunca, passei a ter certeza de que queria ser diretor.
EE – E quando você, de fato, ingressou profissionalmente no cinema?
AS – No cineclube, além dos debates, aconteciam muitas palestras. E um dos palestrantes foi o Walter Hugo Khouri. A oportunidade de ingressar no cinema profissionalmente deu-se em 1961, quando ele disse que precisava de um segundo assistente e continuísta para “A Ilha”. Me oferecei, ele aceitou, e lá fui eu para Bertioga, no litoral de São Paulo. As filmagens duraram 90 dias, 30 a mais do que o previsto e, para minha felicidade, parte de “A Ilha” acabou sendo feita nos estúdios da Vera Cruz.
EE – "A Ilha” é, por sinal, conhecido pelos problemas fora das telas. O que houve?
AS – Muita chuva, tempo fechado, ventanias. Por isso foi necessário criar uma praia artificial nos estúdios, para rodar as externas noturnas. Nisso a minha responsabilidade aumentou, pois fazia a continuidade. Mas ficou perfeito. Ninguém nota a diferença entre externas diurnas, feitas em Bertioga, e externas noturnas, nos estúdios.
EE – Em 1964, também com o Khouri, você fez a assistência de direção no clássico “Noite Vazia”. Qual a influência do “Noite Vazia” para o seu aprendizado?
AS – No “Noite Vazia”, o aprendizado acabou sendo mais na parte humana. Pude constatar na ingenuidade dos meus 21 anos, e 21 anos naquela época eram bem diferentes, com acesso a menos informação existencial, como a natureza humana é complicada. Como o egocentrismo costuma ser forte nas pessoas, a mistificação... Um dos meus “professores” nessa compreensão humana foi o saudoso Mário Benvenuti, que com a sua contagiante alegria de viver, me apontou os bizarros aspectos do comportamento das pessoas. Sou-lhe eternamente grato.
EE – Depois de ter convivido com o Khouri, tanto como o palestrante no Dom Vital quanto diretor nos sets, qual a sua opinião sobre ele, em termos artísticos, estéticos?
AS – O Khouri era repudiado por parte da imprensa especializada porque “não expressava a realidade brasileira.” Vivia-se em clima de esquerda festiva, mas havia alguns críticos que o elogiavam: Biáfora, Ely Azeredo, Moniz Viana. Só posteriormente lhe deram maior reconhecimento. Desde que vi “Estranho Encontro”, eu gostava de seu cinema, esteticamente cuidado e com preocupação de valorizar o sentimento humano, a atuação. No set ele criava um clima legal e raramente se impacientou com minhas falhas. Pelo contrário, ele estimulava o meu aprendizado. Em “A Ilha”, por exemplo, aprendi muito. Fiz de continuidade a assistência, e assistência de montagem com o também fantástico Máximo Barro. Acompanhei a dublagem, enfim, acompanhei o filme até na exibição, levando as cópias para o cinema.
EE – Você citou o Rubem Biáfora, outro nome de peso para o cinema brasileiro. Vocês se conheceram no Dom Vital e anos depois você passaria a ser colega de redação dele, no “O Estado de São Paulo”. O que você lembra do Biáfora, pessoal e profissionalmente?
AS – O Biáfora já era um crítico respeitado e polêmico quando o conheci. Tinha uma grande capacidade de descobrir talentos sem precisar de bibliografia, de referências. Naquela época não havia internet, ele não lia nada da imprensa estrangeira, mas graças ao Biáfora descobriu-se que existia um cinema japonês brilhante, além do Kurosawa. Me deslumbrei com a beleza de “Ravina”, dirigido por ele, e escrevi um artigo entusiasmado. Foi aí que ele rompeu a distância, tornando-se meu amigo. Em março de 1963, quando numa discussão sobre cinema o Seplinski pediu demissão do cargo de segundo crítico do Estadão, ele me convidou para escrever. Mas ele não queria que eu entrasse na redação, tinha receio de que minha aparência de moleque, eu não tinha completado 21 anos, criasse problemas na vetusta redação. Naquela época era o contrário de hoje: atualmente só jovens predominam nos jornais, idosos e maduros são raros. Fiquei até 1967, escrevi mais de 800 textos. Mas nem sempre foi fácil me relacionar com o chefe Biáfora. Ele tinha uma personalidade forte, determinada.
EE – Como era isso?
AS – Biáfora era mais azedo, porém autêntico na expressão dos sentimentos, bem menos contemporizador do que o Khouri. Biáfora era mais turrão, o que dificultava a sua vida, as suas relações com outros. Mas tinha um ótimo caráter.
EE – Ainda na esfera jornalística, você teve participações antológicas na revista “Filme Cultura”. Duas me marcaram em especial: as entrevistas com o Luiz Sérgio Person e com o José Medina. O que você lembra dessas pessoas durante as entrevistas, como elas interagiam, qual era o clima no ar?
AS – Duas grandes pessoas. O Person era exuberante, sério e divertido ao mesmo tempo. Me arrependo, por um equívoco meu, de não ter dado atenção à possibilidade de ser assistente dele em “São Paulo S/A”. Fiz uma confusão, achava que outra pessoa, antipática, era ele. O Medina, sinto orgulho de ter colaborado para uma pequena fase de brilho em sua velhice. Foi encantador. Almoçamos juntos e depois fiz a entrevista em sua casa na rua França Pinto, onde morava com os netos. Um sujeito alegre, um grande cineasta, seu “Fragmentos da Vida”, de 1919, é maravilhoso.
EE – Antes de passarmos diretamente para os seus filmes, gostaria de perguntar para você quais as diferenças e as semelhanças entre os trabalhos como crítico e como realizador?
AS – Ser crítico é fisicamente mais fácil do que ser realizador. Eu me julgo um cara de sorte por ter sido crítico e cineasta ao mesmo tempo, creio que uma área melhorou a minha atuação em outra. Ser crítico faz com que muitos tenham posturas arrogantes, agressivas. Eu sempre me preocupei em ser uma ponte entre filme e público, procurava mais os aspectos positivos dos filmes. Talvez por temperamento e principalmente por conhecer o outro lado do cinema, por vivê-lo intensamente, nunca desrespeitei ninguém, nem o pior filme. Sempre evitei o uso de palavras estigmatizantes, jamais usei o termo “canastrão”. Acho definitivo, rude. Nunca tive preconceito com o cinema de consumo popular. Lembro que alguns colegas, na época da “Folha da Tarde”, ficavam escandalizado quando elogiava Os Trapalhões. Não há dúvida de que a influência do Biáfora foi marcante, no sentido de me fazer descobrir gente e filmes por conta própria. E como diretor, o Khouri não me influenciou tematicamente, mas no respeito pela linguagem, na disciplina profissional. Acho que, como cineasta, sou mais influenciado por um Louis Malle ou Zurlini da vida. Não sei dizer.
EE – Você fez curtas importantes como o “Noturno”. Fale um pouco sobre eles.
AS – Do “Noturno”, meu segundo curta, gosto muito. Capta o clima de São Paulo do entardecer até o amanhecer sem narração, sem locução. Algo que não era muito comum na época. Com fotografia linda do Rudoph Icsey, representou o Brasil em Veneza e ganhou o prêmio Governador de Estado de 1967, de melhor documentário. No ano seguinte ganhei de novo com “Flávio de Carvalho”, um curta biográfico com o próprio...
EE – ... O Flávio era tão difícil quanto dizem? [risos]
AS – [risos] Não, a primeira impressão era a de um homem seco e egocêntrico. Mas Flávio falava pausado, era generoso e com uma mente extremamente aberta. Sua criatividade múltipla parecia pretensiosa em uma época onde já se valorizava a especialização. Tinha uma postura e conduta britânica, pontual. E eu gosto de pontualidade. Era um artista plástico ousado também em outras áreas: a engenharia, a arquitetura, os figurinos. Me deu muitas alegrias. Gostei também de fazer, a partir de “A Batalha dos Sete Anos”, três curtas sobre cinema nacional para o INC: “A Batalha”, “O Ciclo Vera Cruz” e “Alberto Cavalcanti”.
EE – Agora, Alfredo, vamos passeando por alguns dos seus longas-metragens. Procure comentar os bastidores, os causos, puxando pela memória. Primeiro a estréia, o “Paixão na Praia”...
AS – O “Paixão na Praia” foi meu primeiro longa, filmei em 18 dias, em julho de 1970. O filme ficou encalacrado na censura em 71 e só foi lançado em 72 nos cinemas. Quer dizer, filmagem em 70, ano de lançamento 72. Eu tinha apenas 18 latas grandes de negativo: já viu o aperto, além da típica insegurança de um estreante, daí ter sofrido um pouco nas filmagens. Em especial com Norma Bengell, uma grande atriz em grande desempenho, mas uma pessoa de difícil convivência no trabalho, pelo menos naquela época. Fiquei feliz de ter possibilitado grandes oportunidades para o quase estreante ator Ewerton de Castro (ele e Lola Brah ganharam vários prêmios) e para o diretor de fotografia Antonio Meliande, então estreando no longa. Depois, sofri com a Censura. Hoje teria dado um ritmo melhor. Não foi culpa do montador, o grande Sylvio Renoldi, mas do diretor estreante.
EE – E o “Anjo Loiro”, de 73?
AS – Do “Anjo Loiro”, de 1973, gosto muito ainda hoje. Creio que tem grande calor humano, um clima algo irônico, meio Almodóvar, que ainda nem existia. Fui feliz na escolha do elenco total, em especial Benvenuti e Vera Fischer que já tinha talento, mas poucos queriam enxergar por conta do preconceito contra a Miss Brasil que ela foi. É pena que depois o filme tenha sido interditado e retalhado pela Censura Federal, cujo diretor era o Rogério Nunes. Na época, a Polícia Federal do governo Médici tinha como chefe o general Antonio Bandeira. Faço questão de lembrar essas pessoas que tanto mal me fizeram com suas decisões absurdas.
EE – E que acabaram sacrificando o trabalho de muita gente...
AS – A mais absurda comigo foi a proibição de “Anjo Loiro” quando o filme estava na quinta semana de exibição, um sucesso estrondoso. Um ato estúpido referendado pelo general Antonio Bandeira e pelo Rogério Nunes. Ato covarde que me prejudicou bastante. Aliás, o que me magoa hoje em dia é ver que existem verbas oficiais para pesquisa sobre filmes proibidos pela censura mas que, segundo informações que recebi de uma das responsáveis por essa pesquisa, no caso dos filmes da Boca ou das “pornochanchadas”, como disseram, vão ficar para depois, em outro bloco. Ou seja, uma pesquisa sobre Censura também faz censura, age com intolerância, faz peneira sob critérios pessoais, subjetivos. Triste.
EE – Fala um pouco do “Pureza Proibida” de 74, que foi produzido pela Rossana Ghessa...
AS – Verdade. O “Pureza Proibida” surgiu de um convite da Rossana, intermediado pelo meu amigo Carlos Fonseca, jornalista e produtor que morreu em 2005. O argumento é da atriz Monah Delacy, que faz a madre superiora, uma grande atriz, uma mulher inteligentíssima. Chamava-se “A Freira e o Pescador”, mas veio o título lindo, sugerido pelo meu amigo e crítico Edu Jancsz. Foi filmado em Arraial do Cabo e Cabo Frio, uma filmagem nada fácil por conta de um acidente de carro com o Carlo Mossy, que fazia o padre, e que me obrigou a alterar duas seqüências...
EE – ... Você se lembra de quais?
AS – Assistindo ao filme não se percebe. Talvez em uma onde o Zózimo Bulbul diz que “o padre mandou dizer que...”. É imperceptível. O “Pureza” tem uma fotografia estupenda do já então veterano Ruy Santos, e gostei de fazê-lo porque, como meus longas anteriores, trata do amor, da paixão e da repressão. Uma luta que, como tema, sempre me atraiu. Através desse filme que tem o Zózimo Bulbul de galã, descobri como é mais intenso o preconceito racial. Tanto na mídia como junto ao público. Eu escolhi o Bulbul porque o achei bonito e bom ator, sem nenhuma conotação com a negritude. O ator podia ser branco, oriental, qualquer coisa. Mas nos estados do Rio para baixo, o filme fracassou. Acima, um grande sucesso de bilheteria. Qual a explicação? Eu devia ter lembrado na época que o “Orfeu do Carnaval”, do Marcel Camus, foi um campeão de bilheteria no mundo todo, menos em um país: Brasil. Por quê?
EE – Esse clima paroquial que ainda existe no país...
AS – Outro exemplo: o episódio “Reencontro”, do inédito “Aquelas Mulheres” infelizmente ficou inacabado. Era coerente com o tema da insatisfação amorosa e da luta para mudar esse quadro. Lilian Lemmertz estava maravilhosa, como sempre. Seus parceiros, Roberto Bolant e Sérgio Hingst, no papel de marido, também. Uma pena que o produtor, um jornalista, não concluiu.
EE – Você tem filmes visionários, rodados em plena ditadura. Um deles, o “Corpo Devasso”.
AS – “Corpo Devasso” é outro filme que me orgulho muito. Embora tenha sido concebido em função do ator-produtor David Cardoso, acho que logrei um bom filme na linha de “Anjo Loiro”. Com o apoio do David que me deu ampla liberdade criativa dentro do orçamento e do pré-estabelecido antes do início, pude fazer um filme bonito, sensual e ousado. Em plena época de ditadura militar coloquei a questão homossexual em cena, sem falso pudor ou caricatura.
EE – E em 81 você fez “As prostitutas do Dr. Alberto”, um WIP brasileiro.
AS – “As Prostitutas” foi concebido a pedido do produtor Galante. Bolei uma história que aproveitasse um cenário de prisão, que ele tinha no estúdio construído para outro filme. Com humor e ação, bolei uma história sobre transplante de genes, até coloquei em uma cena a minha inspiração: o livro “Os Meninos do Brasil”, do Ira Lewin, um filme com o Gregory Peck como Joseph Mengele, o criminoso nazista. Só que levei a trama com certo humor e erotismo, claro. Serafim Gonzalez, que é o pai do Marcelo Antony na novela Belíssima, fez o médico-vilão com muita eficiência. Gosto também dos filmes seguintes, e entre eles “Brisas do Amor” e “Tensão e Desejo”, filmados na cidade praiana de Mongaguá. O primeiro se prende a um esquema do tipo “Grande Hotel”, com vários personagens e situações que se entrelaçam. Algumas são cômicas, outras têm suspense. “Tensão e Desejo” é um film noir em cores e com o erotismo desejado pelo público brasileiro. Tem uma atriz maravilhosa, Sandra Graffi, que não obteve da mídia a valorização merecida.
EE – Já nos meados dos anos 80, acho corajosa a sua atitude de não usar pseudônimos nos filmes de conteúdo sexual explícito. Como foi isso?
AS – Nos filmes com sexo explícito continuei a contar histórias, a ter minha preocupação em emocionar, mas com um novo elemento em cena: genitálias em atividade. Me descondicionei do preconceito e fui avante. Caso me negasse, parava de fazer filmes. O nosso cinema já estava estragado pela política gregária da antiga Embrafilme, que favorecia alguns poucos em detrimento de muitos. Nessa fase me tornei uma pessoa melhor. E como sempre procurei viver a vida com verdade, transparência, detesto a mentira, a dissimulação, não vi necessidade de adotar pseudônimos. Não tinha vergonha do que fazia. Mas, não nego, essa atitude me estigmatizou mais do que eu esperava, em especial no meio das pessoas mais “pensantes”, mais intelectuais. Haja intolerância.
EE – Qual a sua opinião sobre o cinema brasileiro atual?
AS – Só digo uma coisa: nos anos 60 e 70, o cinema da Boca se auto-sustentava e no Rio também existiam os independentes, os cineastas que não estavam acomodados no mecenato oficial que se instalou através da Embrafilme e que se perpetuam até hoje. Criou-se castas de cineastas que, muito bem servidos por esse mecenato oficial, jamais fizeram filmes por conta própria, sem esse apoio. Creio que na família de Luiz Carlos Barreto isso seja freqüente. Daí existirem cineastas que colecionam fracassos e vivem com alto poder aquisitivo. Não digo que não deve existir ajuda oficial. Deve sim, mas com mais parcimônia, mais cuidado, sem esbanjamentos. Casos como “Chatô” são constrangedores em um país com tanta miséria. Acho que o mecenato oficial fez com que muitos de nossos cineastas perdessem a capacidade de dialogar com o público. Há um excesso de cineastas autorais e alguns são apenas pretensiosos. É melhor parar por aqui, caso contrário a bronca fala mais alto. Mas creio que o cinema voltará a ser feito com menos festividade e de forma mais racional. O próprio processo digital vai impor essa linha.
EE – No “Dicionário da Boca”, escrito por você e lançado pela Coleção Aplauso, fica claro esse posicionamento, demonstrado em maior profundidade.
AS – O “Cinema da Boca - Dicionário dos Diretores” foi uma idéia do Rubens Ewald Filho, que exigiu mais esforços do que eu pensava. Emocionalmente me abalou, as recordações de colegas que já se foram me perturbaram mais do que eu pensava. Procurei ser objetivo, e creio que consegui, sem fazer juízo de valor de ninguém, nem a favor e nem contra. Assim, pessoas que eu detestava lá aparecem, bem como outras por quem tive profundo afeto. Estou orgulhoso, creio ter resgatado uma fase profícua de nosso cinema que é freqüentemente esnobada. Já nos livros sobre o David Cardoso e a Suely Franco fui apenas o editor das memórias dos biografados. Se esses livros têm méritos, os méritos são de David e Suely. Fui apenas o “Go-Between”, título de “O Mensageiro”, de Losey [risos].
EE – Alfredo, para terminar, uma pergunta que sempre faço: qual a visão que você tem do seu trabalho. O que fica de tudo o que você fez para o cinema brasileiro, para o público e para os pesquisadores?
AS – É difícil dizer, fazer um juízo a respeito próprio. Creio que fiz um bom cinema sem me acomodar no mecenato oficial, nos orçamentos super-faturados como fizeram e fazem muitos de nossos cineastas. Respeitei a linguagem cinematográfica e o público e tenho orgulho de ser um sujeito que, ao mesmo tempo, conseguiu fazer cinema e exercer a crítica cinematográfica. Exercer o jornalismo cinematográfico como uma ponte entre filme e público, sem atitudes predatórias e estigmatizantes, sem nunca ter usado adjetivos e rótulos. Me orgulho de ter, na “Folha da Tarde”, divulgado bastante o cinema nacional, sem preconceitos. Eu colocava na primeira página chamada para lançamentos. Só lamento que, por despeito ou sei lá por que, boa parte da crítica e dos programadores culturais não me deram a devida atenção. Quem sabe, ainda vão me descobrir, me reavaliar. Enfim, amei e amo intensamente o cinema, e com amor procurei servi-lo. E espero prosseguir, ter condições físicas e financeiras de prosseguir. Não nego que fico muito ressentido quando vejo diretores de muitos fracassos estarem vivendo hoje de forma nababesca, porque superfaturaram filmes feitos com a renúncia fiscal ou outros benefícios. O escândalo envolvendo Guilherme Fontes, no “Chatô” e em outro projeto, me revolta. É mais um caso chocante de desperdício de dinheiro, que merecia o total repúdio da categoria artística.
18 comentários:
Estava ansioso por essa entrevista e valeu a pena a espera. Tive a honra de trabalhar com o "Alfredinho" em "Tensão e Desejo", eu exercia a função de Assist. de dir. e continuista, mas tenho consciência de que fui muito mais um continuista do que um assist., ainda não tinha a noção exata do papel dessa função e o "Alfredinho" muito gentilmente se sobrecarregou executando-a a maior parte do tempo sem q. sequer eu me desse conta, ao término pude perceber com clareza o suporte q. ele havia me dado. Recentemente tivemos uma breve aproximação que espero se prolongue, o meu amadurecimento me permitiu perceber com clareza a generosidade e gentileza do 'Alfredinho', q. acho não tirei o devido proveito na época, e gostaria muito de rever "Tensão e Desejo", foi um orgulho poder ter participado desse filme, e sim, tendo vivenciado esses anos todos com idas e vindas no fazer cinema por conta da política cultural q. se prática nesse País e assino embaixo a enorme lucidez do olhar dfo "Alfredinho" sobre o assunto.
Genial entrevista do Alfredinho Andréa. Infelizmente, vi somente "A Herança dos Devassos" dele, que não guardo boas recordações. Mas isso é pouco, pretendo ver mais coisas dele, mas passa muito pouco no Canal Brasil. Ele está certíssimo em desprezar Barreto e Cia e ele tem grande moral de fazer isso. Acho muito legal a sua iniciativa de entrevistar ele Andréa, mas uma vez, você demonstrou ser como eu digo a "melhor amiga do cinema brasileiro". Abraços, Matheus.
Oi Andréa!! Adoro Pureza Proibida e achei o máximo a entrevista com o Alfredo. Muito bom saber como os filmes foram feitos, é uma viagem!! Continue assim, quero ler mais entrevistas!!!
Beijos da Veri
Andrea!
Eu te escrevi um e-mail, e devo dizer que estou absolutamente encantado com teu blog!
Eu nunca vi tamanho conhecimento e um texto tão bom sobre o cinema brasileiro quanto o teu.
Passei meses estudando a Boca do Lixo e reconheço que, se tivesse descoberto o blog antes, meu trabalho teria um acréscimo e tanto.
Parabéns! Ganhaste um leitor assíduo.
Andréa!!!
Faço coro as palavras do internauta Carlos Guimarães!!! Mais uma vez...uma grande entrevista feita por uma grande entrevistadora!!!
Bjs
Cassiano
Grande Sternheim! Nota mil a entrevista, e adorei saber mais sobre este que é um dos meus cineastas preferidos, cujos filmes "Pureza Proibida" e "Lucíola, O Anjo Pecador", entre tantos outros de igual beleza, eu vejo e revejo toda hora.
Andréa, de todas suas excelentes entrevistas, essa é a minha preferida. O que transparece nas palavras do Alfredo é um homem de grande caráter, integridade e principalmente, amor pelo cinema. "Anjo Loiro" é inesquecível. E o comentário do Edú tb ajuda muito a perceber a grande figura humana que ele deve ser. Beijos!
ANDRÉA querida, mais uma entrevista fantástica com um dos Heróis da Boca do Lixo. Pensei que só eu havia visto AS PROSTITUTAS DO DR ALBERTO que é simplesmente um luxo e deveria ser relançado no Canal Brasil ou sabe-se lá em outro espaço. Mais uma grande contribuição sua para os Estudos de Cinema no Brasil e acho que daquí há algum tempo vc poderia lançar suas entrevistas em um livro, seria fantástico não acha? Força menina, Boa Sorte !!!
Ótima entrevista, grande papo com o genial Sternheim. Congratulations
Edu, Matheus, Veri, Carlos, Cassiano, Carlos, Sergio, Marcelo, Walner: sempre adorei os filmes do Alfredo, tomara que a entrevista ajude a divulgar mais a obra de um cineasta imprescindível para o cinema brasileiro. Obrigada e beijos a todos :)
Olá, parabéns pelo Blog!!
sou de Mongaguá e gostaria de saber como faço para ter acesso aos Filmes, Brisas do Amor e Tensão e Desejo?
Desde já agradeço a atenção, Obrigado.
Estou redigindo um comentário para este fantástico blog à altura do meu querido amigo e colega cineasta Alfredo e, como não poderia deixar de ser, igualmente, à magnífica ilustradora de palavras e de sentimentos: minha amiguíssima Andréa. Aguardem, por favor!
Carlo Mossy
Sinto-me honrado,pois numa plêiade de monstros sagrados que o Alfredinho dirigiu,eu também fiz uma participação modesta no filme "Violência na Carne",na pele do Luis Eugênio,que fazia um caso do personagem de Helena Ramos.
Sou fã do trabalho do Alfredinho.
Um abração do,
ANDRÉ LUIS GAETTA
ator
procuro por dulce damasceno de brito.
alguem saberia do paradeiro??
contato:
rochavirgilio@gmail.com
diretor do Jornal Copacabana
necessito saber o paradeiro do alfredo e sobre seus filmes pois tenho interesse comercial neles, grato.
lupi rj
tel (021) 8302-8010
email lupiprd@gmail.com
Glaucia Karine Olá, parabéns pelo Blog!!
sou de Mongaguá e gostaria de saber como faço para ter acesso aos Filmes, Brisas do Amor e Tensão e Desejo?
Desde já agradeço a atenção, Obrigado.
Ola Alfredo, eu sou a Sandra aquela que partecipou com duas pontinhas no filme Pureza Proibida. Sou do arraial do Cabo mas vivo a 35 anos na Europa. Gostaria tanto de rever o filme todo. Como eu posso comprar? Sandra
Excelente entrevista,ótimas perguntas e repostas à altura.Assisti vários filmes do cineasta,''Anjo Loiro'' é inesquecível e ''Corpo Devasso'' é um clássico-absoluto.
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