segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Biografia Entrevista - Monique Lafond


Entrevistar Monique Lafond era para mim um sonho de infância. Musa de gerações de cinéfilos, o encontro foi marcado em lugar inspirador: a Ímpar Produções, localizada em um edifício no centro nervoso de Copacabana – o mítico bairro, que em 1979 serviu de pano de fundo para a sua brilhante performance em “Eu Matei Lúcio Flávio”.

A sala é iluminada pelo colorido solar do verão carioca, os móveis funcionalmente distribuídos, e o clima induz ao bate-papo sem fim, à medida que os assuntos se multiplicam. Adepta de um senso de humor irresistível, Monique é aquele tipo de personalidade que não deixa assunto sem resposta.

Com uma trajetória espantosa para qualquer atriz no mundo – lá se vão cinqüenta e quatro filmes! – parece aceitar com pragmatismo o fato de que é muito difícil viver de arte no Brasil. Desde o teatro, passando aos trabalhos no cinema com os mais diversos profissionais possíveis, tentamos traçar uma retrospectiva sobre a sua extensa carreira. Assim, descobrimos em Monique também uma excepcional contadora de causos, que transforma suas lembranças em uma visita guiada ao set de filmagem.

Encerrada a entrevista, a impressão que fica é a de que muita coisa ainda precisa ser dita. Portanto, espero que a curiosidade sobre a excepcional carreira cinematográfica de Monique Lafond seja ao mesmo tempo preenchida e renovada. E que por trás do mito de beleza e sensualidade, os leitores aprendam a gostar também da mulher inteligentíssima e especial.


ESTRANHO ENCONTRO – Monique, vamos no início buscar um pouco da sua infância. Fala sobre a sua família, pai, mãe...

MONIQUE LAFOND – Eu sou filha de franceses, de pai e mãe, tenho dupla nacionalidade. Meu nome é Monique de Gormaz Lafond; o nome espanhol era do meu avô. Então o meu nome artístico é Monique Lafond, meu nome próprio mesmo! Muita gente pensa que meu nome é artístico, mas não, é nome de família. “Ah, mas e o Jorge Lafond?” Ele me pediu para colocar o nome, na época. O Jorge me ligou, disse “Monique querida, será que eu posso usar o seu nome Lafond, como meu nome artístico?” Eu disse “olha, Jorge, não tem o menor problema em ceder, só quero que você escreva diferente. Não ‘l, a, f, o, n, d’? Quero que você ponha dois efes, dois dês, sei lá! Porque é meu nome de família. Não é um nome que eu tirei da sacola e estou usando”. Não é que o danadinho botou “Lafond”, sem mudar nada, durante anos! Aí as pessoas encarnavam na minha mãe. “A senhora, esse seu filho!... Jorge Lafond!...” E a minha mãe, bem sem-vergonha respondia: “É, a Monique e o Jorge são filhos da mesma placenta!” [risos] Então virou uma piada lá em casa. A minha família era bem doida, francesa é mais desprendida, não tem essa coisa da família brasileira, grudada nos filhos, jogavam a gente pro mundo: “Vai à luta”.

EE – Você tem irmãos?

ML – Sou eu mais três irmãos, tenho uma irmã também do primeiro casamento do meu pai.. Meu pai era um artista, ele mexia com flores. Ele fazia decorações de casamentos, então era uma pessoa super querida, volta e meia encontro alguém na rua. “Você é filha do Lafond, puxa, ele quem fez o meu buquê! Fazia as decorações das festas do Copacabana Palace. Ele era o máximo, nos anos 50 e 60 tinha cinco lojas de flores. Um artista mesmo, ele quem fazia corbeilles, decorava as vitrines com desenho em flores, tipo a Torre Eiffel, ele fazia ela toda em flores, ficava lindo! Inclusive era ele quem escrevia os cartõezinhos quando um empresário queria mandar flor para uma atriz e não tinha o dom da escrita. Quando homens queriam mandar flores para as suas amantes! “Ah, Lafond, escreve pra mim, você sempre tão romântico”. O meu pai bolava, escrevia com a letra dele, fingindo que era o cara.

EE – E, no meio disso tudo, quem incentivou você a pensar na carreira artística?

ML – Eu comecei porque minha mãe projetou em mim o desejo de ser bailarina. Ela queria ter sido bailarina e a família não deixou, minha mãe era princesinha, filha de conde, tinha uma história de nobreza na Espanha. Com a guerra de 1940, ela veio para o Brasil, eles se conheceram aqui. Nos meus onze anos, mamãe me levou escondida do meu pai, para fazer um teste com mais de 500 crianças, para um espetáculo musical chamado “Música Divina Música”... a versão da Noviça Rebelde, que estava em cartaz na Broadway.

EE – E depois?

ML – Depois do teste, fui fazendo teatro e meu pai fingia que não sabia de nada, pois ele não queria se incomodar. Mais tarde ele entendeu, fui fazer uma peça muito importante. Chamava-se “Os Pais Abstratos”. Com a Glauce Rocha, maravilhosa, o Jorge Dória e a Darlene Glória, que é a irmã Helena, mas eu não consigo chamar a Darlene de irmã Helena, então é Darlene mesmo [risos]. Sou fã da Darlene. E a gente ficou dois anos no espetáculo. Ali eu aprendi muito, porque a Glauce era a minha tutora, a Darlene aquela mulher vivida que chegava e me mostrava as coisas, “olha, Monique, não segue esse caminho, segue esse, e tal”. Eu viajei com eles o Brasil todo. Sem mamãe, sem papai do lado, com a família dos “Pais Abstratos”. Nessa entressafra eu fui modelo também, enquanto aguardava outros trabalhos como atriz, naquela época o ator mais velho tinha mais campo, não é o que acontece hoje. Fotografei muito, desfilei, enfim.

EE – Então o cinema apareceu mais ou menos nessa época...

ML – O cinema foi meio intercalando com essa atividade. Eu já tinha começado a fazer cinema, no filme “Até que o Casamento Nos Separe”, do Flávio Tambellini, que é o pai do Flávio Tambellini Jr., filme que era a versão da peça “Os Pais Abstratos”. E no filme o Flávio Tambellini Jr., fazia o meu irmãozinho. Hoje o Tambellini é um grande diretor e produtor de cinema. Bem, depois eu comecei a fazer os filmes dos Trapalhões. Na época em que todo mundo tinha preconceito em fazer comédia, fazer programa de humor. Quem trabalhava em linha de show, não era convidado para fazer novela! As pessoas perguntavam: “Mas você acha legal fazer Os Trapalhões?” Eu acho o máximo, agradeço ao meu público de hoje, de 40, 50 anos, é o meu público dos Trapalhões. Depois eu tive que sair porque realmente estava virando uma Trapalhona, pois além dos filmes participava dos programas de tv, não era mais a minha intenção, queria alcançar outros desafios.

EE – Por outro lado, você também pôde aprender mais sobre o ofício cinematográfico, trabalhando com o J. B. Tanko, por exemplo.

ML – Com certeza. E era uma disciplina total. Cinco horas da manhã tocava um sino pra todo mundo acordar, tomar café, desinchar a cara, começar a maquiagem. Comecei com o Tanko num filme para adolescente, “Salve-se quem Puder, aí vem o Rally Da Juventude”, com o Antônio Marcos, o cantor. E aí, como era uma galera muito jovem, tudo de bugre, de carro, a gente precisava de um monitor e de uma empregada, que fazia comida. Igual ao de colégio mesmo. “Vamos acordar!” [risos]. Era assim, o set era esse. Era engraçado pra mim, acordar cinco horas, meu Deus. Eu sempre fui ruim nisso de acordar cedo, mas filmagem não tem jeito, tem que acordar cedo, aproveitar a luz. Você tem uma luz até 4, 5 horas da tarde. Enfim, é sacrifício. Acordar cedo, estar bem, se concentrar. Sem interferência da mamãe, do papagaio, do periquito. Se expor, se doar. Um exercício interessante. Eu gostei.

EE – E seu primeiro papel de destaque viria com “As Moças Daquela Hora...”, do Paulo Porto.

ML – É. “As Moças” era uma história de três episódios, e o primeiro papel de protagonista. Eu fui lançada, vamos dizer assim, com esse filme. Era o Paulo Porto, além de ser um excelente diretor, era um excelente ator. Então nada melhor do que um bom diretor ser ator e dirigir. Com isso ele sabe extrair do ator tudo de bom. E um fato curioso é que naquela época eu era virgem, virgem mesmo. Então eu fazendo um papel de uma menina que era desvirginada e que tinha uma cena de amor. E eu falava “Mas Paulo... como é que eu vou fazer uma cena de amor? Eu não sei, eu nunca fiz”. Ele “Ah, Monique, quando você tiver que fazer uma expressão de amor, finge que você está saboreando uma caixa de chocolate” [risos]. Então, eu deitada naquela situação, o fotógrafo com a câmera na mão em cima de mim gravando, e o assistente em pé na cama, o diretor disse “Ação!”, aí eu viajei na tal caixa de chocolate...

EE – E foi filmado aonde, Monique?

ML – O meu personagem entrava em todas as cidades. Rio de Janeiro, Bahia, mas a minha cidade era Três Corações, em Minas.

EE – Verdade, o repórter fala na hora. “Aqui em Três Corações, o caso da menina do hímen complacente”...

ML – É, isso, imagina [risos]. Foi engraçado também porque eu tinha uma cena em que o meu marido me expulsava de casa, pensava que eu não era virgem porque eu tinha o hímen complacente. E me expulsava de casa e eu saía numa praça, dava um tapa na cara dele, jogava o lençol e atravessava a praça nua. Só que para o público que estava me assistindo atrás, isso eram três horas da manhã, eu estava nua realmente, de bumbum de fora, atravessando a praça. E já supondo que lá na frente tivesse gente querendo ver alguma coisa, eu colei esparadrapo na minha frente inteira e continuei a caminhar toda altiva [risos].Você não imagina a cara de decepção das pessoas do outro lado da praça: “Oh!!!” Fiz um tapa-sexo legal! Essa cena foi filmada de madrugada, a produção tinha certeza de que ia dar o maior tititi na cidade. Foi a última cena que eu gravei do meu personagem. Dali me enfiaram dentro de uma Kombi e a gente veio para o Rio, já imaginou se eu tivesse ficado, levaria uma surra com certeza! Era todo mundo atrás das persianas, aqueles olhinhos brilhando, olhando. Mas essa foi a surpresa engraçada. Me lasquei de esparadrapo e me diverti muito. E você sair também do seu habitat, pra filmar, é muito agradável.

EE – Como o Paulo Porto era, dirigindo?

ML – Ele era um carinho só, uma pessoa super atenciosa. E é muito bom ser bem tratada, acho que é o mínimo que a gente pode pedir num set. É com respeito, até para saber trabalhar as limitações. “Isso aqui eu não consigo, como é que eu faço?” O diretor pode achar que você é capaz de fazer aquilo, mas ele precisa saber extrair aquilo sem que te bloqueie, sem que você fique com problemas de achar o caminho.

EE – Um filme também interessante é o “Ipanema Adeus", do Paulo Roberto Martins.

ML – O Paulo na verdade fez um filme autobiográfico. Na realidade é um filme sobre a vida dele, ele estava passando por aquilo. Ele me chamou, eu não estava num momento bom, no meu íntimo. Eu antigamente não gostava do filme, hoje até gosto, mas antigamente não gostava porque me remetia a um momento em que eu não estava bem. Estava meio em busca, meio querendo saber qual era, estava botando a ansiedade em cima da comida, estava mais gordinha e tal. Lembro que era o Durán que fazia a assistência. O Jorge Durán ajudou demais da conta. Porque como o Paulo era iniciante, o Durán que na realidade ajudou a conduzir esse filme.

EE – E o Paulo fez o quê depois, você tem notícia? Ele nunca mais dirigiu.

ML – Não sei, ele começou a mexer com estúdio, música. O filho dele, Bernardo, é músico.

EE – Aquela cidade para aonde vocês vão, é na Bahia mesmo?

ML – É. Era Porto Seguro e Arraial d’Ajuda. Hoje em dia são lotados de restaurantes, mas antes não havia nada, só um único hotel na cidade. A gente pegava a bicicleta, largava o carro. O carro que era o carro da cidade [risos].

EE – Mas para fazer isso o Paulo Martins não tinha a mesma estrutura da Ventania Filmes, do Paulo Porto, não é? Os amigos ajudavam?

ML – O Paulo se cercou muito bem, tinha um elenco de peso, um argumento bacana que a gente ajudava a construir e a elaborar situações. A idéia do roteiro estava na cabeça dele. Acho que ele botou dinheiro sim, a Embrafilme também parece que entrou com uma parte, não me lembro. Mas, enfim, você contrata um bom fotógrafo, uma boa continuísta, a Fernanda, era maravilhosa, hoje está na Globo, um bom montador, pronto! É claro, se uma boa história não for bem registrada e bem montada, vai dançar. É mais fácil até uma história ruim sobressair com bons atores, uma boa montagem, bom som, etc.

EE – Em seguida você fez o “Enigma Para Demônios”, do Carlos Hugo Christensen.

ML – O Christensen me viu numa peça de teatro que eu estava fazendo. E ele gostou de mim, acreditou que eu pudesse fazer esses dois papéis , que eu tinha uma carga, que eu ia conseguir fazer aquela coisa dramática. Ele me deu então duas oportunidades: de fazer o papel da menina e o da mãe da menina. Eu era muito nova, tinha 21 anos. Novíssima pra fazer mãe.

EE – E como foi a preparação, justamente. Para uma menina de 21 anos encarar esses dois papéis?

ML – Eu fui pesquisar figurino, eu mesma, com pessoas que eu conhecia. E o próprio clima de Ouro Preto ajudava. Você viajar, ajuda muito. E tínhamos leitura todas as noites. Todo mundo numa mesa enorme, ficava estudando, estudando “Você bate texto, corrige pontuação, intenção e vai ouvindo o colega”. E todos se ajudavam. Lícia Magna, Mário Brasini, o Fernando Ianelli, o José Mayer, vindo de Belo Horizonte. A gente ficou quase sessenta dias em Ouro Preto, enclausurados, mas o Christensen era bárbaro. Ele ia pro set de filmagem com tudo decupado. Por exemplo, vamos filmar hoje nesse quarto. Filmar a cena tal. Ele já sabia aonde colocar a câmera, decupava a cena inteirinha, o que é o certo. O cara já ia pro set, sabendo cada tomada, qual lente, que enquadramento, que corte que ele ia fazer! Então o trabalho rendia, você trabalhava, era fazer a luz e tocar o barco.... Uma cena que podia ser feita em quatro dias, ele fazia em dois. Porque cinema tem essa coisa. Não é televisão, que você chega, faz a cena de 30 segundos em 30 segundos. Em cinema você faz a cena de 30 segundos, às vezes em três dias. Por isso que eu sempre falo que fazer cinema é mais difícil, sim. É mais técnico. Manter o humor, uma unidade, para não sair de continuidade, sem se perder. Não é igual à tv que a gente faz a cena, termina, joga fora o texto atrás do sofá. Em cinema tem a continuísta para ajudar, mas se você também é um ator esperto, você ajuda a continuísta e se ajuda no seu interno, é disciplina. Se você já sabe que o próximo plano é do outro lado, você já vai fazer aquela frase virando, pra ter um corte bacana, pra ter um movimento seu também, de expressão. Além disso, manter uma energia de uma cena durante dois, três dias, com os problemas da vida. Porque não é todo dia que você está na mesma sintonia do dia anterior. Então é difícil, você tem que ter um controle, ter humildade, saber ser equipe! Acho um desafio maior o cinema. É um trabalho mais apurado, mais de garimpar mesmo.

EE – Monique, vamos passar, então, para uma das razões de ser deste site. O “Estranho Encontro” se propôs desde o início a missão de rediscutir a obra de Walter Hugo Khouri, muitas vezes esquecida num pé de página da cinematografia nacional. Você é a primeira entrevistada a ter trabalhado diretamente com ele. Gostaria que você falasse das suas impressões gerais para depois comentarmos filme a filme.

ML – Claro. Bom, o Khouri me assistiu também num filme. E marcou um encontro comigo, um jantar. E a gente foi, ele muito doce. Era uma pessoa... ele era uma dama, o Khouri. Eu digo “dama” porque ele tinha uma alma feminina. De saber abordar, mas sem ser gay, não era uma coisa gay, não. Ele gostou de mim e já me deu um monte de livros de teatro, de psicologia. Me chamou para fazer esse filme com ele, que foi?...

EE – “Paixão e Sombras”.

ML – “Paixão e Sombras”, com a Lilian Lemmertz. Com a Lilian Lemmertz, que maravilha! A Lilian era uma pessoa super doce. Por mais que fosse durona. E brigava com o Khouri [risos]. Ela não pegava leve não, ela pegava na boa. E de muita personalidade. Uma mulher muito forte, uma senhora atriz. Era tudo de bom estar com ela, dava uma segurança! A gente foi pra São Bernardo do Campo, aquele filme foi feito nos estúdios da Vera Cruz. O Khouri e o irmão dele, o William, eram sócios. Os estúdios já estavam fechados há muito tempo, não existiam mais produções por lá. E o tema era justamente esse: que aquele lugar ia ser transformado em supermercado! O filme era um manifesto contra o que os caras estavam fazendo. Imagina filmar tudo dentro de um estúdio mesmo, você não via a luzinha do sol. Você acordava, se enfiava no estúdio e saia à noite, dormia... era duro. Vou dizer a você. E era frio. Até dá para ver que a gente está bem agasalhado. Tinha o Fernando Amaral, que era o câmera, e um elenco pequeno. O Khouri ia fazendo as cenas day by day. Ele realmente criava na máquina. Tinha uma maquinazinha, pequenininha, e ele entrava no trailer. “Khouri e a cena de amanhã?” “Ah, daqui a pouco a gente vê”. A gente nunca sabia o que ia fazer, na realidade.

EE – Então ele dava diretrizes para vocês, no geral.

ML – É, ele traçava o perfil do personagem. O que ele queria, ele sabia. Fulano, Cicrano, Beltrano. E os textos, os diálogos é que iam acontecendo dentro do próprio set. Aí o que ele fazia? Ele botava uma música, um jazz maravilhoso, porque ele era fascinado por jazz. Toda vez que eu ouço uma Billie Holiday eu volto pro estúdio, eu volto pro lado do Khouri, eu elevo meu pensamento a ele. Porque era uma coisa impressionante. No set, o dia inteiro tinha música. E como não havia som direto naquela época, às vezes a gente filmava com fundo musical e dava o maior clima, bem a cara do Khouri. E na dublagem, na sonorização ele tirava o fundo... era uma forma dele deixar o nosso estado de espírito em harmonia com aquilo que ele queria dizer. E ele sempre colocando um docinho, uma caixinha de marrom glacê, sempre tinha um mimo, uma história de alimentação, de regime também. Ele era enlouquecido por regime. Naquela época era o regime do Dr. Atkins. “Mas, Khouri, como é que eu vou comer esse monte de gordura e vou emagrecer?” Ele pegava o livro e mostrava. Era um psicólogo, querendo te conhecer, como é que você funcionava. Fazia também uma massagem, um shiatsu. Ele era bem alternativo. Ao lado de uma esposa maravilhosa...

EE – ... A Dona Nadir, faleceu.

ML – ... A Nadir faleceu?

EE – Em dezembro.

ML – [pausa] É mesmo? Não sabia que ela tinha falecido [pausa]. E ela mexia com restaurante macrobiótico, a vida inteira [pausa]. Tinha um excelente restaurante no Largo do Arouche em São Paulo. Acho que ele pegou um pouco esse estilo e levou pro estúdio. A gente sempre comia umas coisas diferentes...

EE – Ainda quanto à família, o Rogério Duprat era primo dele e responsável pela trilha sonora de grande parte dos filmes. O Duprat costumava freqüentar as gravações?

ML – Não. O Duprat eu nunca vi. Mas sabia que era primo dele, um músico da maior competência. O Khouri se cercava também de um bom iluminador, o Antonio Meliande, que hoje está na Globo e já me fotografou em alguns filmes. Ele trabalhava sempre com os mesmos técnicos. Tinha o Miro, que fez todos os filmes. A mesma camareira. Ele era bem conservador, nesse sentido. E era prazeroso porque toda vez que eu ia fazer um filme com ele, a nossa “família” se encontrava, e todos tinham uma satisfação. E um respeito enorme. Se eu consegui nos outros filmes me manter com um certo distanciamento, pra que me respeitassem até nas cenas de maior exposição, com o Khouri eu não precisava dizer nada. Todo mundo já saía do set, já vinha a camareira com a toalha, era bárbaro! Ficava claro o respeito, como tinha que ser. Então era bom por isso. Porque ele, além de tudo, por mais que o filme dele fosse o ego dele, o sempre “Marcelo”, ele tratava bem as mulheres, estavam sempre bonitas. Havia um cuidado com as cenas de nudez, nunca uma coisa vulgar, mal fotografada, baixa! A gente podia ficar à vontade com ele. Eu argumentava “Mas, Khouri, por que que eu tenho que ficar nua nessa cena?” Eu virei a cabeça dele várias vezes. “Deixa essa personagem dessa pessoa aqui ficar nua, porque ela gosta” [risos]. Argumentei com ele e consegui. Tem filme que você vai me ver de camisola, eu não estou nua.

EE – Quando isso aconteceu, por exemplo?

ML – No “Eros, o Deus Do Amor”. Eu fazia dupla com a Patricia Scalvi. E não é uma coisa fácil, tirar a roupa. Pra mim não é até hoje. Por mais que eu tivesse tirado. Então eu queria sempre que o roteiro tivesse um embasamento, eu questionava o nu ali. E como o Khouri não tinha roteiro, era mais fácil de pedir, de me safar de certas exposições, porque ele entendia perfeitamente. Era um homem requintado, ele achava que uma mulher com roupa ficava mais sensual do que uma mulher sem roupa. Claro, como a maioria das pessoas de bom gosto pensam. Era uma felicidade gravar com o Khouri. É uma grande saudade que eu tenho, tenho mesmo.

EE – Você notava a postura dele em relação à crítica brasileira? Há um certo não-reconhecimento.

ML – Ou adoravam o Khouri ou criticavam, dizendo que ele copiava o Bergman. Eu achava que ele tinha uma certa mágoa, sim, mas ao mesmo tempo ele sabia que ele tinha o estilo dele. E ele conseguia fazer, corria atrás, sabe? Ele arrumava parceiros. Era o [Antonio Polo] Galante, o Enzo Baroni, o Aníbal Massaini. Produtores que iam captar com ele, mas apostando também no taco dele. Porque ninguém vai sair captando recursos assim E nos filmes, ele imprimia uma história. Você não pode querer que todas as classes gostem. Não é um Francisco 1, Francisco 2, enfim, que cai no gosto popular. É um filme diferente, é um filme do estilo do Khouri. Khouriano mesmo.

EE – Como foi a captação para “As Feras”? O projeto ficou parado durante anos.

ML – O Khouri queria ter feito a continuidade comigo e com a Lúcia Veríssimo mais tarde. Veio o Aníbal conversar comigo e com a Lúcia. O que foi feito era um dos três episódios de um longa. Só que o episódio ficou tão bonito, filme de época, anos 50, numa locação belíssima, figurinos, carros! Ficou tão bonito que eles não botaram o episódio no filme. Fizeram um outro episódio mais comercial e lançaram o filme. E esse episódio ficou na gaveta, esperando uma idéia genial “Khouri, mas...” “Deixa aí, um dia a gente faz um longa”. E cinco, dez anos se passaram e vieram com uma conversa pra mim. “Monique, vamos fazer um longa”. Mas eu já estava tão de saco cheio dessa coisa de homossexualidade, sempre tem problemas quando você faz. Sempre estão olhando torto, sempre há uma crítica, uma censura. “Não, eu não vou poder fazer”. Porque eu já tinha feito o “Giselle” e o “Amor Maldito”.

EE – A gente vai falar sobre isso.

ML – Então eu disse, “Aníbal, eu sinto muito, mas não posso fazer. Já está ali o episódio e agora fazer um longa em cima dessa história, dez anos depois, a relação dessas mulheres”. Acho até que ficaria interessante, mas eu não estava preparada naquele momento pra segurar essa onda. Nem a Lúcia queria mexer nisso. A Lúcia já estava estrelando novela. E nesse episódio ela estava começando carreira. Mais dez anos eles fizeram esse outro roteiro, “As Feras”, com o Nuno Leal e tudo o mais. Esse filme só foi exibido aqui no Rio num cineminha, lá na Barra da Tijuca, ficou em cartaz uma semana. É a máfia da distribuição, uma outra história.

EE – Então, depois de “As Feras”, vamos para os três restantes. Sobre o “Paixão e Sombras” você tem algum toque, alguma coisa a mais que você lembre?

ML – O “Paixão e Sombras” representou o Brasil no Festival de San Sebastian, na Espanha. E fui eu, Khouri e Ana Carolina. A Ana estava levando o seu primeiro longa debaixo do braço, escondido. A gente foi pro festival assim, estávamos os três juntos. E lá eu vi as estrelas internacionais, ficamos hospedados num palácio maravilhoso. Imagina! Eu tímida, ainda... Mas foi muito bacana ter tido a oportunidade de representar o Brasil com aquela idade.

EE – “Eros, Deus do Amor”, seu segundo trabalho com Khouri. Na minha opinião, um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro, mesmo internacional. Queria compreender como foi para vocês, atrizes, contracenarem com uma câmera, já que o protagonista não aparece. Apenas “a voz e o vulto” do personagem.

ML – Às vezes o Khouri fazia a câmera. Ele ficava ali atrás, e já fazia isso em outros filmes. O fotógrafo preparava tudo e era ele que ficava irradiando pra gente “Isso, isso”. Ele ficava contracenando. Volta e meia, atrás da câmera, ele fotografava. Como é que ele assinava mesmo?...

EE – “Rupert”.

ML – É, e assinava também o cenário, um monte de outras coisas. Ele tinha uma relação com o ator, de ficar ali, de estimular. Um ursinho que empurrava a gente pra frente. Preparava a cena, a luz. Enfim, tinha sempre tudo muito bem preparado, cenário era preparado, figurino era preparado. E aí ele pegou um casting doido daquele, todas as mulheres, eu com um personagem pequenininho.

EE – Ele conversava sobre o que era o Marcelo ou deixava subentendido?

ML – A gente sabia que o Marcelo era ele. “Ô, Khouri, você vem dizer isso?” A gente sabia que era uma projeção, que era sempre ele mesmo. E sempre tinha a Ana. Eu fui a Ana várias vezes nos filmes dele. Então tinha sempre uma coisa de psiquê, sempre um questionamento. Ele era super curioso, o Khouri.

EE – E no “Eu”, Monique, como é que foi?

ML – A gente filmou em Ilhabela. Mosquito a dar com pau, todos eles viciados em Autan, então não adiantava nada. A gente esfregava azeite de oliva na pele, virei uma salada! O Tarcísio Meira era maravilhoso, dava o texto em todas as cenas. Geralmente viria um assistente para dar o texto, que substitui o ator que não está em cena. Ele vinha, se colocava ali. É a tal da disciplina, humildade! E nós todos moramos juntos, durante quase dois meses, naquela casa bárbara. Morar com pessoas não é fácil, não. Morar, acordar, a TPM do povo ativa [risos]. Os egos... e aí uma querendo mais atenção que a outra... Então você tem que ter um olhar bem generoso, para entender essas coisas, os egoísmos, as limitações de cada um. O set era dentro de uma casa com praia particular. Fizemos várias externas na ilha, no mar e em São Paulo filmamos as festas que o Marcelo ia e a Ana aparecia. Aliás é o filme do Khouri que ele mais saiu da toca. Eu adorei compor essa personagem, fui elogiada por esse trabalho. Eu só fiquei chateada com a Revista Manchete. Porque na época teve a capa da Manchete no Rio, com o Tarcísio e as meninas, não me chamaram pra capa e eu morava no Rio! E eu fiquei muito chateada. Fui até fazer um programa do Clodovil na época. Fui morrendo de medo, pisando em ovos, comecei a rezar pra dar tudo certo, pra que ninguém quisesse puxar meu tapete, pra que tudo conspirasse a favor. Só sei que eu comecei a contar essa história pro Clodovil, ele ficou tão doido, e nós estávamos no ar na Manchete e ele saiu me defendendo, sentando o pau na casa e me valorizando. Foi super gentil! Eu me sobressaí muito bem naquela personagem. E aí de repente você é excluída. Esses não-reconhecimentos é que magoam.

EE – Mas agora a gente parte para um momento em que houve o reconhecimento total. Terminado esse pacote Khouri [risos], voltamos de 1987 para 1979, ano do “Eu Matei Lúcio Flávio”.

ML – Eu acho que em termos de oportunidade esse foi o filme que mais me deu abertura. Porque a Margarida Maria era uma personagem de ficção, e ela trafegou em todos universos. Foi muito desafiador porque para essa personagem eu fui convidada a substituir uma outra atriz. Veio o convite “Monique, quer fazer?” “Vamos lá, claro que quero fazer”. Agora, a primeira cena que me botaram pra fazer é aquela cena que eu estou num camburão, morta.

EE – E que está no meio do filme, não é?

ML – É, que está no meio do filme. Então, naquela época, a primeira cena lá na Prainha, me chega um camburão de verdade, o caixote lá, a gaveta estava cheia de sangue, tudo... O contra-regra foi limpar. Aí foram jogar álcool, jogar fogo, desinfetar. Eu tinha deitar nua ali dentro. Nem com uma roupinha, tinha ficar nua, porque era justamente o take do camburão. Foi a minha primeira cena. Eu pensei “Pô, essa cena só pode ser teste. Não é possível, só pode ser teste”. E chegou o Hélio Silva, que era o fotógrafo: “Monique, vem cá, toma uma cachacinha aqui [risos]... pra te dar uma coragem, engrenar uma primeira, porque essa aí esta difícil”. Eu tirei um golinho assim, eu não bebia cachaça. E aí tive que me deitar naquele caixão...

EE – ... e sem lençol, nada...

ML – ... Sem nada! Eu nua, com mais dois figurantes vestidos. Quando o Jece intercepta o camburão, abre as portas traseiras, estamos lá os três engavetados. E ficamos dentro daquele camburão, no escuro, no gelado, os três se mijando de medo, pois era barra! [sussurrando com o canto da boca; risos].

EE – [risos] O que vocês falavam dentro do camburão?

ML – Íamos falando qualquer abobrinha, para descontrair! Dava aquele eco, aquele camburão, tudo de alumínio, de lata. “Meu Deus, isso só pode ser teste, eu tenho que vencer esse teste”. Claro, porque é uma situação dificílima pra qualquer um. Aí nesse mesmo dia ou no dia seguinte, tinha a cena do meu enterro, eu dentro do caixão, entrando num túmulo. Uma coisa que abaixava assim. Foi num cemiteriozinho que tinha ali no Recreio dos Bandeirantes, e minha alma ficou aliviada quando me disseram que era um cemitério só de crianças. Aí eu falei “Bom, meno male, vamos lá”. Mas era flor, mosquito, véu, e eu não conseguia fechar os olhos pra morrer. Eu disse “Calmon, eu vou morrer de olho aberto. Ficar com os olhos tremendo não vai dar certo”. Aí ele ainda fez aquela cena do Jece fechando os meus olhos, e eles tornando a abrir. Ficou forte, interessante. As pessoas perguntavam “Monique, você tomou o quê pra fazer esse filme?” Tinha gente que vinha com comentário assim. “Você se drogou?” Não. Não era nem a minha época de ter essas experiências ainda. Foi bacana porque eu me dei mesmo. Porque eu penso que o ator é um instrumento, a gente tem todas as energias dentro da gente. Do bem, do mal, do que você quiser. E a gente ativa essas coisas no momento de um trabalho desses. É claro que você vai se identificar, captar mais uma coisa ou outra, dependendo até das suas vidas anteriores, porque eu acredito nisso. Que a gente carrega um “chip” com referências, vivências de outras vidas. E de repente eu tive com a Margarida Maria uma identificação, foi fluindo de forma natural, como ela se drogava, como ela vivia. Então ela vinha pronta, inteira.

EE – E como você foi elaborando a Margarida Maria?

ML – Eu acho que o que me ajudou muito também foi o trabalho de arte do Oscar Ramos, se não me engano. Ele fazia toda a parte do visual. Naquela época as pessoas não faziam muito isso, não elaboravam muito. Então ele pintou o meu cabelo bem loira, cortei os cabelos e usei uns figurinos. Fui me montando. O figurino ajuda muito. A composição, a maquiagem, os adereços. Quando você vê, você já está no set com outro andar, outro olhar, com uma carga diferente. O Oscar me ajudou a compor essa mulher. Ele conseguiu me olhar e acreditar. E quanto ao personagem, é o meu filme preferido. Porque eu sei que eu estou inteira ali, em tudo o que eu fiz. É, em termos de oportunidade mesmo, essa foi a minha melhor.

EE – E talvez pelo fato de você ter experimentado uma visibilidade muito grande através de filmes como “Emanuelle Tropical”, “A Serpente” e “Retrato Falado de Uma Mulher Sem Pudor”, as pessoas acham que os artistas levam uma vida meio hollywoodiana, deitados em berço esplêndido.


ML – Infelizmente, não sei hoje, mas antigamente eram pouquíssimos os atores que conseguiam ter um percentual dentro de uma produção. Ou era top de linha, tipo o Tarcísio, que devia ter um percentual da produção, ou não. Vai ter o cachê pra fazer aquele filme e pronto. Então eu nasci na época errada! O Khouri falava: “Monique, se você estivesse na França, com o número de filmes que você fez, já tinha comprado um castelo” [risos]. Mas é assim. Que nem a “Playboy”. Tinha um cachê pra fazer e não eram esses apartamentos que eles dão hoje. A gente não enriquecia com isso, porque não havia esse olhar de hoje. Hoje é uma outra história. Nos anos 80 quando eu fiz era um cachê. Então, o que acontece? Na época dos filmes mais eróticos, por exemplo, eu vivia disso. Na realidade não era nem o que eu quisesse fazer, não. Eu não tinha muita opção. Ou eu fazia, ou eu não fazia. E como eu me sustentava, eu optei por fazer. Mas, no íntimo, tem filmes que eu não gostaria de ter feito, mas eu fiz. Mas também não me violentei em fazê-los. Eu sempre arrumava uma coisa na minha cabeça, um argumento, uma saída para me salvar numa história ruim, pra que eu ficasse com um pouco de dignidade ali e me salvasse, vamos dizer assim. Então eu conseguia me salvar em alguns filmes que eu digo “Ai, socorro, estou fora desse filme!” Mas é a vida da gente, nem tudo é pizza, e também não se tinha alternativas. Não ia trabalhar num banco àquela altura do campeonato. Nem vender roupa numa loja, se eu tinha uma carreira em que eu fazia três, quatro filmes por ano... Sempre foi mais assim, cinema. Já fiz cinqüenta e quatro filmes. Isso até quando o Collor deixou.

EE – E um ano depois do “Lúcio Flávio” você participou de “Giselle”, dirigido pelo Victor di Mello.

ML – Foi um convite do Victor. O filme teve uma repercussão louca, eu não apareço nua, nada, nada. Um selinho, eu acho, uma coisinha. E achei bacana a proximidade que eu tive com a história da favela naquele momento, a favela da Maré, uma barra pesadíssima. A falta de higiene, a falta de alimentos, de remédios, de tudo, que essas pessoas têm. E acho que ainda têm, de uma outra maneira. Maquiado, vamos dizer. O Victor e a produtora do Mossy tinham a maior experiência. Tiveram muita sorte, eu acho. Acho que pegaram aí um gancho dos “Emanuelles” da vida.

EE – Outro filme cult hoje em dia é o “Fuscão Preto”...

ML – [risos]

EE – [risos] Com a Xuxa...

ML – Eu acho que a Xuxa namorava o Pelé na época. Ela chegava, fazia o dela e ia embora. Então eu mal tinha um diálogo com a Xuxa. E é um filme infanto-juvenil. Um filme pra galera jovem. O carro, o Fuscão. A gente filmou numa cidade, acho que chamada Mogi das Cruzes. Lá existe uma fábrica de papel, a maior que tem. E a cidade inteira cheira a... cocô. Então o que era angustiante era você administrar esse cheiro. Depois de algumas horas você já se habituava. Às vezes dava um frescor, a fábrica parava, vinha um ar puro, mas quando voltava de novo era de enlouquecer, esse cheiro. Agora, era bacana pra caramba. Porque era uma coisa de jovem, com aquele cantor também, o Almir Rogério.

EE – E “Os Campeões”, do Carlos Coimbra? Até hoje o único filme de ficção brasileiro sobre Fórmula-1.

ML – Deu até tiro [risos]. Teve uma briga de um garoto, lá da torcida de não sei o quê, com o contra-regra. Pegou e deu um tiro. Fomos parar na delegacia, foi a maior loucura. Não machucou ninguém, mas tem umas confusões às vezes sérias. Por exemplo, no “Enigma Para Demônios”. Como o filme era meio de energias esquisitas, Demos e tal, um morreu, o carro da Lícia Magna caiu numa ribanceira com atores dentro. O contra-regra morreu. Teve uns desastres assim. Aí no final das filmagens foi rezada uma missa. Porque é esquisito, você mexer com essas coisas. É energia. Bom, mas sobre “Os Campeões”: primeiro, o Bógus. Que saudade do Bógus. Tamara Taxman, minha amiga. O Tony [Correia], que era o produtor do filme. O Coimbra, cinema nacional na cabeça, tudo de bom, uma pessoa doce, fácil de lidar, de chegar. Não era um diretor estrela. Agora, o que era de enlouquecer era o barulho dos carros [risos]. Porque era aquela coisa o dia inteiro.

EE – E é mais um exemplo de filme infanto-juvenil, no qual você atuou.

ML – Eu gostei muito de trabalhar com filme infantil. Além desse e dos outros dos Trapalhões, eu fiz um outro filme também, o “Ladrão de Bagdá”. E “O Pequeno Polegar”, esse ficou guardado na gaveta, tinha dono demais! Foi com o incrível Ankito. Um filme bárbaro, com efeitos produzidos na Argentina, dirigido pelo Vitor Lima. Naquela época não se tinha aqui o recurso que hoje se tem...

EE – Você trabalhou com outro diretor mitológico, além do Khouri e do Christensen. O David Neves. Como era a atmosfera da direção?

ML – David era maravilhoso. David me chamava de “Lafond”. Não, não era isso, era “Belafond! Ô, Belafond!” Era um carinho, mandava sempre uma lembrança. Mas o David era tão amigo que ele esquecia que eu era atriz. E aí ele não me chamava para as coisas. Eu dizia “Pô, David, me chama pra trabalhar!” Eu fiz “Luz Del Fuego” e “Fulaninha” com ele, na realidade são pequenas participações. É uma participação pra fazer parte da galera. Mas eu acho que ele não conseguia me enxergar como atriz. Era muito próximo, a gente saía muito junto, mesma turma, mesmas pessoas. E também isso é uma coisa meio mal trabalhada na minha cabeça. Quando você se aproxima, você vira muito amigo de uma outra pessoa, e ela não consegue te ver por um lado profissional.

EE – Então você nem viveu o lado dele diretor, não é?

ML – Acabou sendo muito pouco. Ainda mais um cara amigável, boêmio mesmo, toda vida. Ele também estava sempre cercado de muita gente boa. Bonachão, boa praça, com ele podia tudo. Muito liberal. Mas eu acho que às vezes era um pouco festivo demais [risos]. Nessas duas participações eu nem posso fazer comentário. Eram externas, abertas, cheias de gente, duas câmeras. Tinha sempre uma movimentação menos intimista. Então nem posso dizer sobre essa coisa do set, dos atores. Mas o David me passava uma pessoa assim. Tudo era bom, tudo era ótimo, smile, sempre estava festejando.

EE – Você antecipou “Amor Maldito”, o primeiro filme brasileiro a abordar integralmente a temática lésbica. Como você conheceu o argumento?

ML – “Amor Maldito” era um roteiro do José Louzeiro. Uma história com a Wilma Dias, que já está falecida, muito amiga minha. A gente fazia um caso de amor das duas, baseado numa história real. Então, “Amor Maldito” realmente aconteceu. É a história de duas mulheres que se casaram, em [no bairro de] Jacarepaguá, se não me engano. E o Zé Louzeiro acompanhou esse caso jornalisticamente e escreveu o roteiro. A pedido da Adélia Sampaio, que também trabalhava com ele. Acharam o tema curioso, resolveram apostar e fizemos o filme. Só que com muito pouco dinheiro, uma produção mais simples. Mas feito com muita dignidade, e é todo passado dentro de um tribunal, e algumas externas, contando o passado das duas em flashback. Enfim, acho que a gente soube contar a historinha, agora...

EE – E as repercussões?

ML – Não teve nem muito, não. O que tem é, assim... o olhar das pessoas que censuram esse tipo de coisa, elas me confundirem com a personagem. Até minha mãe me confundia com a personagem da novela, que dirá os vizinhos! Então esse discernimento de você separar o seu eu do que você está fazendo ali é que às vezes é complicado. Ainda mais no Brasil, em que todo mundo se olha, todo mundo se curte. Aqui todo mundo invade. Há um olhar cultural brasileiro, que invade o seu espaço. Lá fora ninguém está nem aí. Cada um faz o seu, toca a sua vida. Não importa se você é lésbica, se você não é, se você beija, enfim. Não há importância. E aqui, só agora, nos anos 2000 e poucos, as novelas estão abordando um pouco mais esse tema, estão digerindo melhor. Pelo menos em relação às mulheres. Quanto aos homens não vi isso ser abordado de uma forma mais natural, menos estereotipado. Na época do filme era muito preconceituoso. Então até eu tinha vergonha. Sempre um olhar de crítica, é complicado. Complicado porque acho que atrapalhou, sim. Não vou dizer a você que não atrapalhou. Só me chamavam pra fazer aquilo. “Ah, quer fazer?” Eu dizia “Não”. Porque eu tinha feito parecia que eu era a única atriz que topava fazer, não era assim. Hoje em dia, todas as grandes estrelas já fizeram papéis de homossexuais. Sônia Braga, Christiane Torloni, por aí vai.

EE – Indo pros anos 90, a bomba do Collor, a destruição de um monte de perspectivas, engrossando esse caldo de atraso cultural.

ML – Pois é, eu enlouqueci... Eu vivia de cinema e fazia pouquíssima televisão. Era mais chamada pra fazer cinema, que era a coisa que eu mais gostava de fazer. Aí com esse corte eu voltei pro teatro. Porque era uma forma de continuar atuando e de trabalhar a minha auto-estima. Havia pouquíssimas produções cinematográficas. Eu entrei na produção do “Lara”, da Ana Maria Magalhães. Fiquei cinco anos esperando ela captar, coitada. Tivemos reunião até na casa do Embaixador da França, para mostrar o que já tinha sido filmado, para o filme ser finalizado. Eles chamam o “marketing de grandes empresas”. É muito difícil hoje em dia, mesmo com as leis. Mexe com ações, cotas de participação, um monte de coisa. O Brasil ainda não entendeu que isso pode ser uma indústria, uma indústria de ganhar dinheiro. Só lá fora eles entenderam, aqui a gente não tem essa referência. E aí o Collor foi um desastre, porque ele cortou tudo, de todo mundo. E comecei a dar aulas de teatro, a mexer com a Terceira Idade, e há sete anos ministro a “Oficina de Teatro na Idade da Sabedoria”, atualmente no Teatro Gláucio Gil, em Copacabana.

EE – Eu ia até perguntar sobre os projetos atuais, o que você tem feito?

ML – A minha ocupação maior hoje em dia é a minha produtora, a Ímpar Produções. A gente trabalha com vídeo multimídia, vídeos institucionais, cd-rom, website. O site é
http://www.imparproducoes.com.br. Esse ano de 2005 fizemos vários trabalhos, o site do Teatro Rival, o livro “Cem Anos de Uniformes”. Eu dou aula porque é a forma com que exercito o meu mental e coloco vivo o que eu aprendi, o que eu posso passar pras pessoas. Esse trabalho para maiores de 40 é um trabalho social, resgatando a auto-estima, a dignidade. Vou estar a partir de 7 de março, no Teatro Gláucio Gil, em Copacabana, todas as terças, às 10 da manhã. Dou ouvido, dou carinho, a gente troca, na realidade. É um resultado de felicidade mesmo. Das pessoas agradecerem e chorarem e darem beijo. É tudo de bom, botar as cabecinhas pra funcionar. Não deixar as pessoas em casa, focando só doença. Melhora a depressão, melhora tudo. É uma terapia. E a gente vai trabalhando com a limitação de cada uma, não tem problema, não tem um cunho profissional, não. Vamos nos divertir, dar risada!

EE – Duas perguntas, para finalizar. Na primeira delas, a sua opinião a respeito do cinema brasileiro.

ML – Eu acho que o cinema brasileiro evoluiu muito no aspecto técnico, acho que cresceu muito. Hoje em dia você vê uns equipamentos bárbaros, você vê uns movimentos de câmera...uma infra meio hollywoodiana! Porque não é só você ser um bom diretor, tem que saber usar da melhor forma o equipamento. Acho que as personagens femininas, da década de 70 pra cá, melhoraram tanto... Hoje tenho a satisfação de ver que o roteirista está com um olhar para a mulher que não é só o da mulher objeto do desejo, como era. Há um peso diferente pros personagens femininos, com mais conteúdo, mais história. Amadureceu no nível de roteiro, de idéias. Hoje são menos pessoas filmando, está mais difícil, captação, oportunidade. Antes se fazia teatro de terça a domingo, agora só se faz quinta e olhe lá. Pra conseguir um patrocínio para um espetáculo também é difícil, está tudo atravancado. E com esse governo tão difícil de a gente conseguir as coisas. Pro brasileiro eu tiro o chapéu. Pras pessoas que estão conseguindo produzir, conseguindo botar na tela, conseguindo vencer, arrancar. Agora, é um trabalho árduo, sim. Não é fritar bolinho, não. É árduo.

EE – Foram cinqüenta e quatro filmes, por enquanto. Como você resumiria a sua trajetória?

ML – Eu acho que o que fica é o registro de uma época. Quando as atrizes não faziam certos personagens, quando havia um preconceito. Uma época que a gente ajudou a alavancar. Eu, a Sandra Barsotti, tantas pessoas. Do filme em que a personagem feminina era objeto do desejo, sim. Mas ali foi a nossa alavancada pro que é hoje. Se nós não tivéssemos passado por aquele processo, também não estaríamos no atual, muito mais evoluído. Eu torço para que a gente possa ganhar o mundo mesmo, e que o Brasil enxergue essa indústria como indústria. Realmente aposte nisso. Abrir mais campos, para as pessoas trabalharem. Você pode ser ator fazendo teatro, na rua, no quintal, no colégio. Tem que estudar, tem que botar em prática, tem que fazer.

20 comentários:

Anônimo disse...

parabéns pelo trabalho, Andrea; trabalho de fôlego e necessário...

Anônimo disse...

Que maravilha, Andréa! Monique é uma das minhas musas do cinema brasileiro. Linda e talentosa atriz. Parabéns por mais esse resgate.
Beijos :)

Anônimo disse...

Pô, a Monique Lafond é o máximo!!!! Parabens pelo trabalho, Andréa, show de bola. Bjaum!!!

Anônimo disse...

Andréa: Maravilha de entrevista!! E´difícil escolher elogios para o seu trabalho, ele é merecedor de todos. Espero q. brevemente vc. consiga entrevistar a Scalvi, a parceira de Lafond em "Eros,..."

Anônimo disse...

Oi Andréa,
Adorei a entrevista com a Monique, super completa, está de parabéns! Para ler e reler ;)))
Veri

Anônimo disse...

que maravilha essa entrevista,nunca mais tinha ouvido falar na Monique...

Andrea Ormond disse...

Beijos a todos e obrigada tb ao pessoal da comunidade da Monique no Orkut. E claro, obrigada pela paciência da Monique em contar tantas histórias interessantes, que com certeza dão um livro de memórias fabuloso. Edu, vou para São Paulo mês que vem, gostaria bastante de entrevistar a Scalvi :)

Anônimo disse...

Fala Andréa!! Não esqueça de me procurar, caso não tenha, pegue via e-mail (yaguilar@terra.com.br) os meus tels de contato, como vc. sabe, eu retomei o contato com a Scalvi muito timidamente via orkut, mas vou me esforçar p/ armar as condições prá sua entrevista.

Anônimo disse...

Andréia, ando te devendo uma !
Bela entrevista com a Monique a colocando na galeria das grandes atrizes brasileiras. Parabéns mesmo, a parte do WHK é memorável e bem como a do camburrão (!!!) do filme do Calmon. Ele pode ser uma boa entrevista também né ? quem sabe pra próxima entrevista desse fantástico blog. Outro: o Mossy conhece muito bem, o Fernando José, acho que ele ainda está 100%, seria uma entrevista legal. Sobre as coisas que você me pediu postarei no Guru das Sete Cidades !!
Bjos,
Matheus.

Andrea Ormond disse...

Oi Edu, vou confirmar melhor que dia estou indo, deve ser em meados de Abril. Devo ficar um tempo em Sp e antes te mando um email :) Se vc conseguir marcar com a Scalvi, fico agradecida :) Beijos.

Matheus, respondi lá nos comments do Guru :) Beijos.

Anônimo disse...

Olá Andréa.
Fantástica sua entrevista, parabéns!! Muito bem conduzida, acima de tudo.
É muito bom termos nomes importantes do nosso cinema resgatados dessa forma, numa entrevista-biografia super interessante como essa.
Continue com essas entrevistas.

Anônimo disse...

Fantástica Andréia!

Vc continua exuberante em suas palavras, registrando com rara sensibilidade um passado que é tão presente e de forma tão carinhosa. É difícil ser carinhoso na escrita. Você, querida amiga, cada vez mais se aproxima de uma verdade que advém do teu âmago e atinge o nosso âmago. Monique Lafond, nesta entrevista, está sendo pintada em toda sua beleza de mulher e artista. Irretocável.
Beijos
Carlo Mossy

Anônimo disse...

Fantástica Andréia!

Vc continua exuberante em suas palavras, registrando com rara sensibilidade um passado que é tão presente e de forma tão carinhosa. É difícil ser carinhoso na escrita. Você, querida amiga, cada vez mais se aproxima de uma verdade que advém do teu âmago e atinge o nosso âmago. Monique Lafond, nesta entrevista, está sendo pintada em toda sua beleza de mulher e artista. Irretocável.
Beijos
Carlo Mossy

Andrea Ormond disse...

Teo, obrigada, já estou com outras entrevistas engatilhadas, com o tempo vou postando :) Um abraço!

Mossy, amigo, obrigada por seu carinho, talento e sensibilidade. Vc sabe o quanto eu respeito e admiro o seu trabalho, que tantos frutos ainda vai dar ao cinema brasileiro :) Um beijo.

Beth Marino disse...

Descobri agora "estranho encontro" e estou amando...principalmente porque está me proporcionando saborear polêmicas históricas do cinema brasileiro. Eu tive o privilégio de trabalhar com a maravilhosa Monique...linda,concentrada e solidaria.Gostaria de saber mais sobre vc Andréia. Muito obrigada.

paulo alves disse...

continua a gata de sempre,volte ao cinema

Michael Carvalho Silva disse...

Monique Lafond é sem sombra de dúvida uma das mais belas, talentosas e ilustres atrizes brasileiras de todos os tempos. Nunca mais me esqueci dela em filmes como "Emmanuelle Tropical," "Giselle," "Retrato Falado De Uma Mulher Sem pudor," "Eu Matei Lúcio Flávio," "Eu" do saudoso Walter Hugo Kouri e de seus filmes antigos feitos com os trapalhões. Ela é simplesmente maravilhosa e o meu finado pai Luíz também era louco por ela. E com razão.

Michael Carvalho Silva disse...

Monique Lafond estava no auge de sua beleza em "Emmanuelle Tropical." Monique será para sempre a eterna Emmanuelle Brasileira. Belíssima.

Unknown disse...

ANDRÉA QUERIDA, ACABEI DE RELER O NOSSO BATE PAPO AQUI NO SEU BLOG, É A MELHOR JORNALISTA QUE ME ENTREVISTOU ! E JA SE PASSARAM 21 ANOS !! BRAVO E OBRIGADA , BEIJOS

Michael Carvalho Silva disse...

Sempre achei que o saudoso Jorge Lafond fosse mesmo irmão da Monique Lafond já que os dois tinham o mesmo sobrenome e eram dois atores brasileiros famosos e profissionais. Fiquei muito surpreso quando descobri que Monique e Jorge não verdade não tem nenhum parentesco. Descanse em paz, Jorge querido. Amém.