sexta-feira, outubro 28, 2005

Real Desejo


“Discutir a relação” não é um passatempo que encante a gregos e troianos. Principalmente porque o debate muitas vezes se torna um exercício de vitimização, em que o inquiridor investe-se de todo o poder do mundo, prega o inquirido numa cruz e concede a ele tão somente a alternativa de confirmar os pecados o mais rápido possível, para que saia logo dali. Pessoas auto-centradas impossibilitam o diálogo e acusam, acusam sempre.

Este pequeno prefácio se aplica ao casal de personagens de “Real Desejo” (1990), uma espúria mas interessante tentativa de se fazer um filme “cabeça”, em um tempo onde a ignorância dos anos Sarney-Collor imperavam.

O grande problema do filme é sua incapacidade de encontrar um termo, talvez por conta da dificuldade de produção, no abismo da Embrafilme e muito longe da chamada "retomada". Parece uma daquelas redações de garotos de colégio, com problemas em casa: não que o roteiro não seja inteligente e o realizador não seja talentoso, mas saiu tudo tão ruim e tão forçado, que no final das contas a impressão possível é a de total nulidade.

Gilda de Oliveira (Ana Maria Magalhães), famosa atriz de cinema, vive um relacionamento em crise com o ator Paulo Cavalcante (Paulo César Peréio). Acompanhamos Gilda por um dia e início de outro, concretizando a conhecidíssima “fuga de si mesma para ver se a personagem se encontra”.

Como isto ocorre? Bem, a narrativa é costurada através de certas descontinuidades temporais, um quebra-cabeças que vai se encaixando. Gilda vê Paulo na estação da Luz, corre atrás dele, mas Paulo entra em um vagão e some. Será esta a metáfora essencial? Gilda procura-o; e ele se dissipa no éter, no nada, alheio a seu desejo.

A seguir, vemos a cantora Rosa Maria dividindo o assento de trem com a atriz. O corte temporal é explicado a posteriori, pois, na realidade, Gilda está naquele instante voltando de uma escapadinha num lugar ermo, fugindo depois de ter combinado programa com um bandido, ladrão de carros. Pois é, a “fase prostituta” – geralmente associada com a libertação de desejo sexual reprimido de personagens femininas – também está presente no filme.

Gilda encontra amigos, fãs, motoristas de táxi pegajosos – um deles promete-lhe sexo fácil e a garantia de não pagar a corrida. Disfarça, não aceita, mas bem que simpatiza com a côrte, até o momento que ele vai com sede demais ao pote. Chegando no aeroporto de Congonhas – destino do trajeto –, é pega de surpresa ao ver Paulo gravando uma cena com a amante, aos beijos. Como bons civilizados, não estapeiam-se, conversam sobre a vida e outros assuntos bastante vagos.

Em certa hora descobrimos que houve um tempo em que a idéia de ter um filho interrompeu a evolução do caso entre os dois atores. Paulo queria-o loucamente, Gilda preferia manter o corpo bonito. Por singela coincidência, Gilda finalmente decide tê-lo. Donde conclui-se: o instinto maternal surgiu apenas na iminência do abandono; mais uma mãe fálica a caminho, desejando o bebê apenas como instrumento de terapia pessoal.

Não sabemos a quantas andou a união dos dois. “Real desejo” termina deixando em aberto esta hipótese, crucial para dar sentido ao filme. Novamente salvam-se detalhes: a direção de Augusto Sevá procura ser correta, mas a forçação de barra do roteiro e da atuação do elenco joga tudo pelo ralo.

Só Peréio levanta um pouco a moral, mesmo não estando no auge do brilhantismo – leia-se “Eu te amo” (1981), de Arnaldo Jabor. Mas um Peréio sozinho (e displicente, preguiçoso), não faz o verão de uma obra, que no fundo é puro non-sense. Para o país atônito e decadente do início dos anos 90, no entanto, andava até de bom tamanho.

4 comentários:

Anônimo disse...

Tinha curiosidade de saber se mais alguém conhecia esse filme. Deparar-me com um texto crítico tão saboroso foi uma surpresa. Uma pergunta: existe algum filme brasileiro que você não tenha visto, Andrea? Parabéns pelo blog!

Ricardo Montero disse...

Tinha gravado e assisti apenas ontem de noite. Meio que um pastiche de Eu Te Amo, ainda por cima com o mesmo Pereio. Não achei o Real Desejo assim ruim (mesmo porque não acho o Eu Te Amo assim tão bom). A despeito de algumas forçadas de barra no roteiro (como o programa com o ladrão de carros), gostei muito das atuações de Pereio e Ana Maria Magalhães. A beleza madura dela também chama a atenção, assim como as belas imagens de Sampa na entrada da década de 1990. Saldo final: nota 7/10.

Anônimo disse...

Só um detalhe: este filme apesar de aparece como 1990 foi produzido em 1986. Era muito comum na época da finada Embrafilme, devido a burocracia. Há filmes que foram lançados 10 anos após a filmagem.

Andrea Ormond disse...

Anônimo, entre o início da produção e a exibição em Gramado (30 de julho de 90) o filme pegou a fase dos anos Sarney-Collor e o abismo da Embrafilme, como eu disse no texto.