terça-feira, junho 22, 2010

Das Tripas Coração


Segundo filme de Ana Carolina, “Das Tripas Coração” (1982) inaugura a década dos 1980 para a cineasta. Anos antes do neon-realismo e do plano Sarney, conta-se aqui a história de um internato prestes a ser lacrado por um interventor (Antonio Fagundes) que tem a sacrossanta sorte de sentar-se à mesma mesa com Dina Sfat, Myriam Muniz, Nair Bello e Xuxa Lopes, antes de fechar o negócio.

As bacantes são, diga-se logo, ponto de partida e ancoradouro do que se passa no filme. No meio estão o padre (Ney Latorraca) e o faxineiro (Flanela, Álvaro Freire), ressaltando a todo tempo a incomunicabilidade de um espectador ingênuo e careta para com os personagens, que alucinam.

Nem mesmo o interventor – que num delírio se transmuta em professor (Guido) e dá a senha do filme – , consegue comandar o triângulo formado com Renata (Dina Sfat) e Miriam (Xuxa Lopes). Único varão entre inúmeras viragos, o moço não contém a rebordosa.

Afinal, morto e enterrado o mito do homem fundante – seja o cowboy, o pai herói ou o amante infalível –, a figura de Guido é deglutida pela histeria que anima a trama.

O fantasma de Freud, se arrastasse correntes pelos corredores gélidos da mansão, daria pulinhos ao ver a quantidade de acting outs, com direito inclusive a síncope de uma das professoras (Christiane Torloni).

Por outro lado, as diretoras Renata e Miriam encarnam aquele duplo que Narciso olharia com lágrimas nos olhos, julgando serem um signo só. Fusionam-se, amam-se, odeiam-se, rivalizam, opõem a frieza de uma (Renata) e o fogo da outra (Miriam) até que ambas, na libido inclemente, avancem sobre Guido.

Além deste, outros dois combos femininos também caminham pelo local: o das inspetoras – Muniza (Muniz) e Nair (Bello) – e o das faxineiras – Amindra (Cristina Pereira), Itapemirim (Maria do Carmo Sodré), Florzinha (Isa Kopelman) e Penha (Stela Freitas).

Nair seria algo próximo de uma senhora esperançosa, lembrando as histórias de antanho, mas que em dado momento aparece impagável de barba, as mãos socadas nos bolsos. Muniza introjeta a carranca e os jatos de frases feitas em espanhol – figura rabugenta levada pela soberaníssima Muniz, que retornava depois de “Mar de Rosas” (1977), estréia de Ana Carolina na direção.

Outra egressa de “Mar de Rosas”, Cristina Pereira encara o avental de Amindra, com sotaque lusitano e os olhos arregalados, liderando o coro das faxineiras – tchurma que, longe do conceito tradicional do coro grego, não se contenta em comentar as barbaridades da trama e participa ativamente para engrossar o caos. Desastradamente sensuais que só.

No entorno, encontramos as aluninhas, mademoiselles em flor. A púbere Maria Padilha tem, aliás, cenas memoráveis – com as amigas, berrando cânticos recheados de palavrões; com Patrício Bisso e Célia Helena, professores de visões, digamos, opostas sobre a educação feminina. A garota ainda libera a micção no meio de uma missa comandada pelo Padre e corre atormentada sob os olhares persecutórios do Cristo crucificado.

A imagem do Cristo – que sutilmente passa de escultura a ator, vociferando – é desses momentos oníricos que, filmados, não se apagam. Remete à pintura de Dali, solta no ar, entre o claro e o sombrio.

“Das Tripas Coração” expõe, portanto, sucessão de chistes, retalhos de sonhos, humor dantesco, feminilidade, intervenção – seja esta sob o prisma da educação, da religião ou da venda da escola. Não se supõe do filme linearidade, mas a urgência da cineasta-roteirista que dizia alô, tocada por uma pulsão personalíssima.

A dualidade homem/mulher está, de fato, presente no filme, mas não encerrada em si mesma. Nem a divisão de papéis entre homens e mulheres deve ser vista de maneira absoluta. O homem se anuncia entre as gladiadoras do sexo oposto, apesar de surgir quantitativamente na tela em menor número – nas figuras priápicas do Padre, de Flanela e de Guido.

Ana Carolina levaria cinco anos até colocar em cartaz “Sonho de Valsa” (1987) – estrelado por Xuxa Lopes, participação de Cristina Pereira –, último filme da trilogia iniciada por “Mar de Rosas”. Na idiossincrasia típica do cinema brasileiro, duas décadas se ergueriam até chegar a “Amélia” (2000) – com Lopes, Muniz e Pereira no elenco – e ao média-metragem “Gregório de Matos” (2002) – Lopes, novamente.

Produziu poucas obras – além das citadas, “Getúlio Vargas” (1974), “Indústria” (1969) e “Lavra-dor” (1968). De geração diversa daquela de Walter Hugo Khouri – que assistiu em “As Amorosas” (1968) –, está mais próxima dos loucos cabeludos da Escola São Luiz, que assustavam o lúmpen da rua do Triunfo à procura do mecenato.

Fato é que os sessentaoitistas cresceram, uns morreram de câncer, outros de tédio, muitos salvaram as utopias nos bolsos e elaboraram o luto do fogo eterno que viveram. Ana Carolina encaixa-se neste quadro, carregando – como o Cristo, bruma no ar – a cruz de ser “uma diretora brasileira”. Colocar-lhe esta única pecha é raspar a superfície. A delícia está em conjugá-la com sua evidente originalidade, na esperança de que outras realizadoras continuem a vir, povoando nosso audiovisual Olimpo.

5 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Querida Andrea,
Tenho paixão pelo cinema de Ana Carolina.
Essa trilogia foi, inclusive, minha monografia do curso de jornalismo.
Adoro os três filmes, e tenho carinho especial pelo último, Sonho de Valsa.
Um beijão

Sergio Andrade disse...

Eu, pelo contrário, adoro Mar de Rosas, gosto médio de Das Tripas e detesto Sonho de Valsa rsss
Felizmente ela se recuperou com Amelia.

Beijos!

Adilson Marcelino disse...

Querido Sérgio,
Você já viu que a gente diverge muitas vezes em cinema nacional, né? rsrsrs
Eu adoro todos três - e Mar de Rosas é genial mesmo. Só que Sonho de Valsa tem realmente um lugar especial no meu coração.
Fora que adoro Xuxa Lopes, e aqui ela tem um papel sob medida.

Olha eu aqui invadindo seu espaço, Andrea rsrsrs
Beijos

Sergio Andrade disse...

Pois é, Adilson, temos essas divergências mesmo, mas sempre de forma respeitosa e saudável hehe!

Também sou fã da Xuxa Lopes, mas Sonho de Valsa me parece ser um filme onde todas as cenas são telegrafadas.
Mas como vi apenas na época do lançamento, uma revisão se faz necessária.

Desculpe a "invasão", querida Andrea :)
Bjs

Andrea Ormond disse...

Meninos, invasão nada, bate-papo apaixonado. Querem coisa melhor do que isto? Adoro! :) Fico com o "Mar de Rosas", mas tenho uma ligação grande com o "Das Tripas". Muito pela linha do fusionamento entre La Sfat e La Lopes, em que a Ana Carolina fez um arranjo inteligente ali, daria um filme apenas sobre este setor do filme. Beijos pra vocês dois :)