Formado em geologia e ex-membro do CPC da UNE, Antonio Carlos da Fontoura é uma ovelha desgarrada. Solta no Zen, flanando entre o kitsch e a censura livre; o maldito e o amor do público. Entre 1968 e 1973 criou duas figuras carimbadas, moradoras de luxo em diversas listas de filmes queridos: “Copacabana Me Engana” e “Rainha Diaba”.
Antonio Carlos abandonou o cinema, voltou, trocou pela Tv, retornou ao cinema. Enquanto isso achou a umbanda, o rock, a capoeira. “Espelho de Carne” varou as madrugadas e os tabus dos anos 80. “Cordão de Ouro” foi traficado em VHS. “Ver Ouvir” deu um alô para as artes plásticas. E os adolescentes de hoje abraçaram “Somos Tão Jovens”, a biografia de Renato Russo.
Lá pelas tantas, escuto a frase: “Eu não sei dirigir cinema”. Quem imaginaria que o raciocínio tão esdrúxulo tivesse cruzado, certa vez, a cabeça de Fontoura? Pior ainda: no meio do set de “Rainha Diaba”, a travesti dos mil balangandãs. Neste longo e reflexivo depoimento, vemos um dos maiores diretores brasileiros revelar as angústias, as alegrias da criação e uma emocionante humildade.
As horas passaram, a primavera exigiu todo o talento do ar-condicionado. Terminei as perguntas e comecei a folhear um livro, que os leitores descobrirão logo abaixo. Aqui vai o meu presente de Natal para todos, a última postagem do “Estranho Encontro” em 2013. Boas festas, deliciem-se e muito cinema brasileiro no próximo ano!
Antonio Carlos abandonou o cinema, voltou, trocou pela Tv, retornou ao cinema. Enquanto isso achou a umbanda, o rock, a capoeira. “Espelho de Carne” varou as madrugadas e os tabus dos anos 80. “Cordão de Ouro” foi traficado em VHS. “Ver Ouvir” deu um alô para as artes plásticas. E os adolescentes de hoje abraçaram “Somos Tão Jovens”, a biografia de Renato Russo.
Lá pelas tantas, escuto a frase: “Eu não sei dirigir cinema”. Quem imaginaria que o raciocínio tão esdrúxulo tivesse cruzado, certa vez, a cabeça de Fontoura? Pior ainda: no meio do set de “Rainha Diaba”, a travesti dos mil balangandãs. Neste longo e reflexivo depoimento, vemos um dos maiores diretores brasileiros revelar as angústias, as alegrias da criação e uma emocionante humildade.
As horas passaram, a primavera exigiu todo o talento do ar-condicionado. Terminei as perguntas e comecei a folhear um livro, que os leitores descobrirão logo abaixo. Aqui vai o meu presente de Natal para todos, a última postagem do “Estranho Encontro” em 2013. Boas festas, deliciem-se e muito cinema brasileiro no próximo ano!
ESTRANHO
ENCONTRO – Fontoura, você sempre esteve muito perto dos jovens nos
seus filmes. O curta sobre Os Mutantes, o “Copacabana Me Engana”,
o “Ciranda, Cirandinha” e outros. Incomoda o fato de não ser
mais tão jovem?
ACF –
Não tenho nenhum problema com isso. É realmente uma temática que
me interessa muito, e acho tão legal ser como sou agora que não se
torna uma preocupação. Curiosamente, cada vez me envolvo mais com
grupos jovens. Criei um com a minha neta de quinze anos e os amigos
dela. Desenvolvemos projetos para cinema. O bom é que aí não sou o
Fontoura, sou apenas mais um cara junto deles. Tão bacana. Sempre
tive muita curiosidade e interesse pelas coisas novas. A juventude é
uma delas. Não sou o tipo de pessoa do “ah, no meu tempo!” Meu
tempo é hoje. Como dizia o Vinícius de Moraes, “meu tempo é
quando”. Meu tempo é agora e sei lá quantos anos eu tenho. Só
sei que estou há setenta e quatro neste planeta, mas isso não é um
problema. Problema seria não estar. A alternativa é muito pior
[risos]...
EE –
[risos] É, a pá de cal seria terrível... Na entrada da produtora,
vi o adesivo da Rota 66 e, aqui na sala, esses posters pop, com a
biblioteca imensa, logo atrás, até o teto. Não deixa de ser a
marca de todo babyboomer: entre o pop e a intelectualidade...
ACF – A
minha primeira formação foi mais intelectual. Até os vinte anos de
idade eu lia qualquer coisa que você possa imaginar. De Marx a
Proust, até não sei o quê. Era um garoto que, ao chegar na casa de
alguém, em vez de procurar a brincadeira, procurava a biblioteca.
EE –
E olha que você falou Marx e Proust: os extremos [risos]...
ACF –
[risos] Tem os dois lados... Eu lia, não sabia bem por quê,
mas lia tudo. Já na adolescência, com uns quinze, dezesseis anos,
comecei a ler e a falar em inglês. Minha formação nunca foi muito
europeia, sempre mais americana. Lia pocket books, porque eram
mais baratos. Acho que, se somar tudo, na minha vida li mais em
inglês do que em português.
EE –
O quê, por exemplo?
ACF –
Tudo, mas comecei lendo science fiction. Pouca teoria, muita
ficção. E veio junto o interesse por arte visual. Não apenas a
arte pop, mas quando a arte pop surgiu me gerou o “Ver Ouvir”,
que acho meu melhor curta. Arte renascentista, Picasso, seja lá o
que fosse, eu achava legal, bonito, mas foi a arte pop que conversou
comigo. Em 67 vi a exposição do “Nova Objetividade Brasileira”,
no MAM: o Hélio Oiticica apresentando a mesa de sinuca. Logo em
seguida, o Rubens Gerchman, o Antonio Dias e o Roberto Magalhães
fizeram uma exposição da Galeria G-4. Fiquei chapado, porque a
pintura estava conversando comigo. Quis filmar “O Que Você Deve
Ouvir”, que acabou virando o “Ver Ouvir”. A cultura pop, a
cultura rock, a cultura hipster, todas elas penetraram bastante em
mim. Ao mesmo tempo, havia o background do Centro Popular de
Cultura. Trabalhei com teatro político, teatro de agitação. Vivia
os dois opostos mesmo: o intelectual e o pop. E acho que o que eu
faço, de certa maneira, é cultura pop.
EE –
Fico imaginando você no CPC. Não é bem o exemplo de militante
materialista-dialético-ortodoxo...
ACF –
Sou um geólogo que não esperava se tornar cineasta. Mal trabalhei
em geologia, fui logo para o CPC, como escritor e ator. Escrevia
esquetes de agitação, fazia o papel do Super-Homem, na rua. Me
chateava nas reuniões do Partido Comunista. Parei de ir, mas adorava
as pessoas. O Vianinha, o Ferreira Gullar, o Carlos Estevam, o Joel
Barcellos, o Arnaldo Jabor. Nem todo mundo era tão comunista assim:
mas a gente tinha o sonho de inventar um país diferente. Em dado
momento cheguei à conclusão de que o meu caminho não era o
coletivo. Eu precisava encontrar algo meu. Foi quando acabou o CPC.
Não fui para o Grupo Opinião, mas colaborei na peça Opinião,
escrevi a parte da contracultura americana, coloquei canções do Bob
Dylan, do Peter Seeger, da esquerda americana. Eu me sentia de
esquerda. Agora percebo que não tenho mais um lado só. Tenho
esquerda, direita e centro.
EE –
Você levou pro Opinião uma outra visão do fenômeno político.
ACF –
Acho que não cheguei a levar muita coisa para o Opinião, mas amava
a proposta deles e eram todos meus amigos, Quando o cinema surgiu
para mim foi justamente porque eu não queria mais participar de um
grupo, nem queria trabalhar com geologia. Tinha interesse nas
narrativas, queria contar histórias e aí apareceu o curso do Arne
Sucksdorff. Participei, com um bando de gente: Alberto Salvá, o
Arnaldo Jabor, Eduardo Escorel, Lauro Escorel, Luiz Carlos Saldanha.
Eu achava muito bacana porque não era intelectual. Era um curso
prático, para aprender a operar câmera blimpada, moviola, gravador,
técnicas de cinema direto. Meu primeiro curta tinha isso de cinema
direto: o “Heitor dos Prazeres”, de 65. O “Ver Ouvir”, de 66,
não. Era uma viagem inteiramente impressionista dentro do mundo do
Gerchman, do Dias, do Magalhães. Adoro este filme.
EE –
O nascimento para o cinema foi com os curtas. E o nascimento físico?
ACF –
Em São Paulo. Meu pai era carioca, mudou-se para lá para dirigir a
Cacex, predecessora do Banco Central, que funcionava na estrutura do
Banco do Brasil e controlava os bancos do país. Nasci em berço de
ouro, no Jardim Paulista, era sócio do Paulistano, mas vivia preso,
muito protegido, minha mãe havia perdido dois filhos antes de mim,
no parto, eu consegui nascer e claro que precisava sobreviver.
EE –
E se você fechasse os olhos e tentasse lembrar uma imagem da
infância, uma cor. Qual seria?
ACF –
Branco, provavelmente. Porque não tinha muita cor. Algumas
lembranças são lendas, outras me lembro de fato. Vivia em um mundo
imaginário, vigiado, cuidado. Ao mesmo tempo eu era o inteligente,
sabia tudo de mitologia grega. Era prisioneiro daquela família
bem-intencionada, mas bem paranoica. Meu único espaço livre era a
minha mente.
EE –
Bela frase.
ACF – E
viemos para o Rio em 1950, para Copacabana. Foi assim que comecei a
minha relação com o bairro. Permaneci lá até uns vinte e cinco
anos, quando fui morar com a Odete Lara, na Lagoa. Vivemos juntos por
três anos, ela era um grande mito, a rainha do Pasquim.
EE –
Afinal de contas, Fontoura: você tinha ciúmes do Sig [o ratinho,
criado por Jaguar]? [risos]
ACF –
[risos] O Sig era apaixonado pela Odete, mas quem não era?
Ela havia terminado com o Vianinha durante a peça “Se Correr o
Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”. Eu ia ver a peça todo dia e
começamos a namorar. Saí da casa da minha mãe e fui viver com a
Odete. Além de grande atriz ela era uma tremenda cantora. O João
Gilberto telefonava: “Loira, posso ir aí?” João Gilberto, Tom
Jobim, Vinícius: “Detinha, vem cá, pra gente conversar”. Assim
íamos, eu e ela. O Vinícius dentro da banheira, fumando charuto,
tomando uísque e a gente batendo papo. Todo dia uma festa em
Ipanema, o Baden Powell tocando, o Vinicius cantando. Odete era
convidada fixa. Um período gostoso. Nesse tempo eu dirigi o “Ver
Ouvir” e mais tarde o “Copacabana Me Engana”. Mas antes eu já
havia sido crítico de cinema, no “Diário Carioca”. Acredito que
em 1965. Éramos três no jornal: eu, David Neves e Glauber Rocha.
EE –
Lembra de algum filme que você tenha escrito sobre?
ACF – O
filme que inspirou “Copacabana Me Engana”: “O Milagre de Anne
Sulivan”. Adorava a maneira como a câmera se movia, me inspirou
bastante. Eu também era godardiano, mas o estilo do “Copacabana Me
Engana” foi mais ou menos espontâneo. Por causa dos meus curtas,
em 68 eu já convivia com o pessoal de cinema, que se reunia na
Líder. Mas nunca me considerei Cinema Novo. Mais uma vez, eu gostava
era das pessoas: do Leonzinho [Hirszman], do Glauber [Rocha],
do [Paulo César] Saraceni. Muitos filmes daquela época
falavam de intelectuais de esquerda, perdidos no caos do Brasil e
tentando encontrar um caminho. Mas o meu filme, não. Era sobre um
garoto bobo de direita, morando em um apartamento em Copacabana, sem
saber o que fazer da vida.
EE –
Fontoura, parafraseando o trailer do filme: que tipo de gente mora em
Copacabana?
ACF –
Todo tipo. Eu foquei mais na classe média. De certa forma também
fiz um filme político: sobre a classe média que apoiou o golpe. Só
que não era um filme de ideias, era um filme de personagens. Ele, o
garoto perdido, prestando vestibular há três anos, sem saber o que
desejava, mas queria ter um carro, morar numa casa com piscina. Acho
que fiz esse filme para não ser aquele cara. Foi a maneira que eu
encontrei de me distanciar dessa realidade pequeno-burguesa. Que
também era a minha, mas segui um caminho diferente.
EE –
E aqueles planos no filme, com as janelas abertas, os olhares para a
rua?
ACF –
Isso tudo eu vivia. Morava na Barata Ribeiro com Xavier da Silveira,
edifício Don Sérgio. Do outro lado havia um prédio com milhões de
janelas, que eu paquerava da minha janela. Isso me deu a ideia da
história, mas eu pensei primeiro em fazer com uma garota jovem.
Como a Odete era dez anos mais velha do que eu, refiz o argumento. O
curioso é que rodei um filme sobre o que via da minha janela, sobre
a minha turma da Xavier da Silveira, e o filme teve um milhão de
espectadores. Fiquei pasmo. Não tinha nenhuma ambição, a não ser
a de fazer um filme sobre coisas perto de mim, que eu vivia e
espiava. Espantoso. Naquele época nenhum filme de cineastas com a
mesma origem minha, universitária, conseguiu mais do quê, sei lá,
cem mil espectadores. Foi chocante. Eu não estava preparado.
EE –
O que essa recepção causou? Balançou demais?
ACF –
Me separei da Odete, mudei para uma cobertura em Ipanema, reescrevi a
minha adolescência, aos vinte e oito anos de idade. Sabe que a
história dos nossos filmes não é só dos filmes que nós fazemos?
Às vezes é a história dos que não fazemos. Quando “Copacabana
Me Engana” foi para o Festival de Brasília ganhou vários prêmios.
Concorreu com “O Bandido da Luz Vermelha”, do Rogério Sganzerla.
“Bandido” ganhou melhor filme, nós ganhamos melhor roteiro,
atriz e outros. Em 1968 estava começando a época do chamado
desbunde. Um dia, curtindo com o Joel Barcelos, um cara que eu
adorava, entramos numa de atravessar Brasília andando em linha reta
e eu tive uma visão. Fomos andando, andando, andando. De repente vi
que aquela paisagem do cerrado era igual à da caatinga. E vi um
cangaceiro saindo dali de dentro. Quando voltei para Ipanema o Wally
Salomão, o Jorge Salomão e o Duda Machado, uma turma baiana, ficou
um tempo morando comigo, curtiam muitas coisas que eu curtia. Foi aí
que eu escrevi com o Duda “A Cangaceira Eletrônica”, um musical
sobre um bando de cangaceiros roqueiros que eram o terror e a alegria
de Brasília. Infelizmente nunca fiz o filme, mas gerou uma coisa
preciosa: o cenário e os figurinos que foram criados pelo Hélio
Oiticica. Nessa época, como tinha ganho bastante dinheiro com o
sucesso do “Copacabana Me Engana”, comprei apartamento, viajei
para os Estados Unidos, para a Europa, para Marrocos, não sei mais
pra onde e fiz curtas exploratórios: “Gal”, “Mutantes”, “O
Último Homem”.
EE –
Todos dessa época, entre 1969 e 1970. O início do curta da Gal
lembra um pouco o “Copacabana Me Engana”, o plano das janelas.
Foi no mesmo apartamento?
ACF –
Não, no apartamento dela, no Leblon. O apartamento do “Copacabana
Me Engana” era da mãe do Zelito Viana. A filmagem foi maravilhosa,
era outra época de cinema, a equipe tinha vinte pessoas, era
pequena. No meu último filme, o “Somos Tão Jovens”, havia mais
de oitenta pessoas na equipe. No “Copacabana” todos estavam
começando. A fotografia era do Affonso Beato, que depois foi
trabalhar nos Estados Unidos e na Espanha com o Almodóvar, o Jorge
Bodansky fazia a câmera. Os assistentes não eram assistentes
experientes, eram dois amigos meus: o Armando Costa e o Gilberto
Macedo. Na hora do almoço descíamos e íamos comer na lanchonete.
Não tinha catering. O Mário Fiorani, produtor-executivo,
todo dia cozinhava uma macarronada pra gente. Era outro clima de
trabalho. E eu me guiava no set pela intuição, desconhecia
muita coisa.
EE –
Em que sentido?
ACF –
Não sabia que precisava de figurinista, diretor de arte, cenógrafo,
continuísta. Chegava para a Odete e dizia: “Irene, como que você
se veste? Vai achar a sua roupa”. Como o apartamento que aluguei
para o filme, em frente ao da mãe do Zelito, estava vazio, pedi:
“Irene, vai mobiliar o teu apartamento”. Ela pegou um kombi e
saiu catando os móveis com as amigas. Para o Mossy eu disse:
“Marquinhos, traz as suas roupas”. Talvez seja um dos segredos do
filme ter atingido tanta gente. Era tudo tão espontâneo,
verdadeiro, natural. Eu chamava todos os atores pelo nome do
personagem e depois passei a repetir isso. Não chamar o ator pelo
nome e sim pelo nome do personagem. Acho que ajuda.
EE –
Filmar a sua mulher causou alguma inibição?
ACF –
Nem um pouco. Quer algo mais forte do que a cena de transa a três da
Odete com o Carlo Mossy e com o Claudio Marzo no “Copacabana”?
Não foi nada constrangedora. Eu estava ali, junto com eles. E a
Odete se entregava, ia fundo, não se constrangia com nada.
“Copacabana Me Engana” iria se chamar “Corpo Fora” porque era
exatamente como eu me sentia. Sem partido, sem pertencer a coisa
alguma. Talvez isso tenha vindo das minhas fantasias juvenis. Com
doze, treze anos, eu achava que não era deste planeta. Tipo Clark
Kent, teriam me dado para criação pelo meu pai e pela minha mãe.
[Olha para o cartaz de “Somos Tão Jovens”, que aparece na
foto acima, neste post] Curioso que o Renato [Russo]
achava na adolescência o mesmo, que tinha vindo de outro planeta.
Outro dia até me peguei pensando: “Será que a gente realmente
veio do mesmo planeta e por isso ele resolveu mandar esse filme para
mim?” [risos] Porque eu não planejava fazer um filme sobre
o Renato, caiu no meu colo. Provavelmente o motivo não foi esse, mas
acho divertido pensar.
EE –
Um detalhe interessante: o Antonio Calmon trabalhou com o Glauber.
Você, com outra cria do Cinema Novo, o Arnaldo Jabor.
ACF –
Fui técnico de som no “O Circo”. O Jabor começou a dirigir
antes da maioria da turma que veio do Sucksdorf. Aliás, o primeiro
documentário longa-metragem dele, “Opinião Pública”, tinha
muito a ver com o “Copacabana Me Engana”. Mas naquela época o
Jabor também era ligado ao pop, namorava uma artista plástica, a
Tetê Simões. Depois seguiu outro rumo. Agora, eu me identificava
mais com o Calmon, apesar dele ser mais novo. Curtiamos as mesmas
coisas, aquelas sabedorias orientais em voga nos anos 70, líamos
science fiction, líamos muita coisa em inglês. Ele foi meu
diretor-assistente em dois filmes: “O Último Homem” e
“Mutantes”. No “Mutantes” eu, Calmon e o Renato Newman,
diretor de fotografia, viajamos para São Paulo, tínhamos um
encontro marcado com os Mutantes e passamos o dia com eles, brincando
pela cidade e filmando. Já “O Último Homem” me deu tristeza,
porque se perdeu. O curta, todo falado em inglês, era uma viagem ao
planeta Rio feita por três ídolos meus, Arthur Clarke, Robert
Schekley e Alfred Bester, que estavam na cidade para um congresso de
ficção científica que aconteceu aqui. O filme desapareceu.
EE –
Aproveitando a deixa: você nunca se fixou em um grupo específico.
ACF –
Nunca fui do Cinema Novo, nem fui da vanguarda BeLair do Julinho
Bressane e do Rogério Sganzerla. Sempre fui mesmo independente. Não
sei se foi uma vantagem ou não, mas era a realidade. Se eu tenho um
grupo é a nação rubro-negra.
EE –
Mas foi são-paulino antes...
ACF –
Fui são-paulino. Você sabia disso? Fui são-paulino até os dez
anos, enquanto morava em São Paulo.
EE –
Em termos de cinema brasileiro você pensa sobre o que isso
significa? O que pode ter causado na sua trajetória?
ACF –
Deve ter gerado algumas vantagens e algumas desvantagens. O meio do
cinema brasileiro era muito corporativo, muito grupal. Mas antes de
virar cineasta eu tinha uma turma, inesquecível para mim, era a
turma que o Jaguar retratou nos “Chopnics”. Eu era um desses
chopnics que virava as noites em papos intermináveis no Jangadeiros.
Estava com dezoito, dezenove anos, eles todos com vinte e três,
vinte e quatro. Eu era sempre o mais novo da turma, agora sou o mais
velho. Amava essa turma, Bernardo, Marat, Henrique Grosso, Kumbuka,
já se foram quase todos. Também convivi muito com a turma da Bossa
Nova, estudava no Mello e Souza com a Nara Leão e o Roberto
Menescal, vivia no apartamento da Nara, na Avenida Atlântica, vi
a Bossa Nova nascer lá. Mas na verdade nunca me liguei muito a
nenhum grupo de cinema. Amava eles todos, mas sempre segui um caminho
próprio. Certamente foi bom por um lado mas, por outro, ter
pertencido a um grupo teria me dado mais poder de manobra, sei lá.
Sempre fui... “individualista” é a palavra?
EE –
Exatamente. Nessa época era terrível.
ACF –
Ainda sou bastante individualista. Como diz o Gilberto Gil? “Meu
caminho eu mesmo traço”. Talvez tenha a ver com certas coisas que
me tocam muito, como o Zen. Descobri o Zen através da literatura, da
poesia, dos haicais. Tinha tudo a ver com a cultura daquele tempo.
Descobri Alan Watts, a beleza do momento, aquelas fábulas sobre
viver o aqui e agora. Aproveitar o momento, viver o momento, não
pensar no antes, nem no depois. Eu não era assim o tempo todo, mas
tinha e ainda tenho um pouquinho disso em mim. Acho que me trouxe
bastante flexibilidade e muita capacidade de aceitar o diferente.
Nunca fiquei muito perplexo com nada. Sei que tudo está aí.
EE –
E quando você acha que aquele menino reprimido conseguiu dar essa
chave de galão?
ACF –
Talvez depois dos dezoito anos. A minha adolescência não foi tão
boa, as pessoas achavam que eu era diferente, me achavam meio
estranho. E devia ser. Alto, desengonçado, tímido. A adolescência
foi um período interessante, mas sofrido. Engraçado: uma das
primeiras coisas que abriram o caminho para que eu me soltasse foi o
jazz. Quando passei a ouvir jazz no final da adolescência, passei a
conviver com músicos, era amigo dos músicos, frequentava o “Little
Club”, tomava Pernod, me sentia meio existencialista. O processo de
libertação foi uma ruptura. Se não fosse, eu não teria conseguido
deixar a prisão. Fui me libertando e saindo pro mundo. Saí mais
ainda depois do “Copacabana Me Engana”. Aí me deu coragem de
viver aquela lenda toda: sexo, drogas e rock’n roll. Me abriu a
cabeça.
EE –
Que estourou mais forte ainda no segundo longa-metragem, esse
monumento do cinema brasileiro: o “Rainha Diaba”.
ACF –
Não foi uma pessoa só, não, mais de uma pessoa quando o filme foi
lançado veio me dizer: “esse é o melhor filme que eu já vi”.
Não que seja, mas ficava admirado de alguém achar. Sabe o que acho?
Que na “Rainha Diaba” aconteceu o mesmo que com o “Ver Ouvir”.
Um filme, para sair do jeito que esse saiu, não é de uma pessoa só,
é um acontecimento, é produto de um tempo, de um momento, do modo
como eu estava, do modo como eu me sentia, de quem eu encontrava, de
quem se chegava. Do meu impulso interior mas também do impulso das
outras pessoas. É todo um fenômeno. Acho que esse filme é
fenomenal, mas não me digo “Ah! Eu sou um gênio porque fiz esse
filme!” Nada disso. O filme aconteceu. É isso. Aconteceu.
EE –
Um filmaço. Para mim, chama atenção o uso da violência:
expressivo, poético, histriônico...
ACF –
Também tem o seguinte, eu não queria fazer um filme igual ao
anterior, quando o “Copacabana Me Engana” fez aquele sucesso todo
o Roberto Farias me telefonou: “Fontoura, se você quiser fazer
outro filme sobre jovens da Zona Sul eu produzo”. Eu, com minha
autossuficiência, respondi: “Roberto, mas esse filme eu já fiz”.
Ele continuou: “Então, quando tiver um filme diferente me avisa”.
Mas aí, depois do sucesso do “Copacabana me Engana”, eu comecei
a reinventar minha adolescência, arrumei uma turma jovem, tinha uma
namoradinha de dezenove anos, aprontava mil. Mas de repente entrei
numa bad trip.
.
EE –
Que tipo de bad trips?
ACF –
Comecei a me preocupar com o jeito como estava vivendo e a pensar:
“quanto sangue deve estar por trás dessa festa toda?” Veio o
tema. Resolvi que meu próximo filme seria “A Guerra da Maconha”,
uma guerra de traficantes pela disputa das bocas, com muito sangue,
revelando quanto sangue havia por trás do barato da maconha. Mas não
me sentia realmente capaz de escrever sobre a marginalidade, eu era
da Zona Sul e naquela época a Lapa ainda ficava longe.... Vê como
as coisas vão juntando: eu tinha assistido “Navalha na Carne” e
“Dois Perdidos na Noite Suja”, duas peças do Plínio Marcos, já
não estava mais casado com a Odete, mas éramos próximos e
perguntei: “Odete, aquele seu amigo. Você me apresenta?” Ela
estava em São Paulo, viajei para lá, conheci o Plínio e dei para
ele o tema: um grupo de marginais da Lapa entra em conflito e se
extermina sangrentamente para controlar o tráfico da maconha.
EE –
A cara do Plínio Marcos...
ACF –
Ele me peguntou se eu tinha uns quatro dias para esperar, me contou
que quando morava em Santos vivia pelo porto, morrendo de medo da
Rainha Diaba, uma bichona sanguinolenta que comandava o tráfico e me
perguntou: “Você topa a Rainha Diaba comandar o tráfico?”
Topei na hora, claro, achei ótimo! Quatro dias depois o Plínio me
trouxe um conto de umas trinta páginas, passado no porto de Santos,
com toda a linha narrativa, os personagens, o estilo de diálogo que
deflagraram o filme. Foi fundamental. Guardei aquilo, mas como queria
ambientar o filme no Rio de Janeiro comecei a criar um roteiro a
partir daquele argumento. Nisso fui passar uma temporada com o Hélio
Oiticica em Nova Iorque, no loft dele da Rua Quatro. Era um loft
grande, com ninhos, uns praticáveis revestidos de filó, com cama e
tevê, cada hóspede dele ficava em um ninho. Quando falei pro Hélio
da Rainha Diaba e dos travestis que a cercavam, ele adorou. Era
apaixonado pelos travestis porto-riquenhos, que faziam ponto na porta
do prédio dele, numa área meio heavy metal. Foi então que o Hélio
me levou para conhecer toda a cena novaiorquina dos travestis.
EE –
Apareceu a cara, o look do “Rainha Diaba”.
ACF –
Sim, o visual e também ritmo, bem Nova Iorque. Além disso eu tinha
assistido “The French Connection”, que fez minha cabeça. O jeito
como a câmera se movimentava, seguindo os atores, era tudo tão
dinâmico. Isso tudo me inspirou para escrever o roteiro: o argumento
do Plínio, a arte pop e a cena novaiorquina apresentada pelo Hélio.
No dia em que cheguei em Nova Iorque achei que estava chegando num
subúrbio carioca. De noite o Hélio me levou para a uma festa de um
cabeleireiro no Spanish Harlem. O fino do brega. Abacaxi com
azeitoninha espetada. “Como é que é? Eu vim até Nova Iorque para
isso?” [risos] Foi divertido. Eu trouxe isso tudo para cá.
EE –
Inclusive a trupe de cabeleireiros, personagens no “Diaba”.
ACF –
É, mas outra influência foi a turma da “Veste Sagrada”. Na rua
Vinícius de Moraes, antiga Montenegro, havia uma galeriazinha. No
fundo, uma loja de roupas, a “Veste Sagrada”, do Marangoni, até
hoje um grande amigo meu. Na Farme de Amoedo tinha a “Frágil”,
da Celinha e do Adriano de Aquino, um artista plástico. Todo final
de tarde a gente se reunia na parte de cima da “Veste Sagrada”.
Uma das pessoas do grupo era irmão do Adriano, o Ângelo de Aquino,
que depois criou o famoso Rex. Pensei: “Não quero um diretor de
arte com experiência de cinema. Quero um artista plástico”.
Convidei o Ângelo. Acabou sendo a única experiência dele em
cinema, nunca tinha feito nada disso antes, nem fez depois. Também
nessa época conheci o Carlinhos Prieto. Um doce de pessoa, um gênio
da maquiagem. Nessa altura ofereci o filme para o Roberto, que topou
produzir, me deu toda a liberdade, só me indicou duas pessoas:
“Essas duas você tem que usar”. Uma era o diretor de fotografia
José Medeiros, em quem ele confiava muito. Outra, o Stepan
Nercessian. O grande problema foi escolher o protagonista. A minha
primeira escolha foi absurda. Convidei o Agnaldo Timóteo, mas ele
não topou. Aí convidei o Procópio Mariano, um ator fantástico,
já falecido.
EE –
Fantástico, um talento natural!
ACF – O
Procópio me disse uma coisa engraçada: “Quando entro no ônibus
me chamam de 'aquele negro gordo'. Se eu aceitar, vão me chamar de
'aquele viado, negro e gordo'. Não topo”. Aí tomei coragem e
convidei o Milton Gonçalves. Admirava o ator, mas imaginava que ele
ia recusar o convite para fazer o papel de uma boneca maconheira
violenta. Depois de ler o roteiro, ele me disse “Fontoura, gostei
muito, mas preciso consultar a família. Se deixarem, eu faço”. A
família topou e ele entrou de cabeça, a Diaba dele foi sensacional.
Como tudo do filme, o processo era muito experimental. “Rainha
Diaba” é um filme muito intuitivo, até a linguagem foi inventada
na hora, um plano depois do outro, sem decupagem.
EE –
Não tem decupagem?
ACF –
Eu ia criando no set, ia montando cada plano com o assistente
de câmera e quando estava pronto chamava o Zé Medeiros, que num
passe de mágica iluminava tudo rapidinho. O filme só demorou muito
para terminar porque era tudo uma curtição, eu trabalhava cercado
de amigos, de gente que eu amava e admirava. Foram dez semanas de
filmagem.
EE –
O dinheiro veio do Roberto Farias e quem mais?
ACF –
Da Ipanema Filmes e da Ventania Filmes, que era do Paulo Porto. Acho
que é o filme em que filmei mais feliz o tempo todo, sem stress. O
Roberto Farias tinha contratado o Calmon como diretor de produção e
um dia o Calmon me deu um toque: “Fontoura, você é muito legal
com todo mundo, não pode. Começa a dar umas patadas pra esse filme
andar mais depressa...” [risos] No dia seguinte me vesti
todo de preto [risos]
EE –
[risos]
ACF –
Estávamos filmando em Laranjeiras, em frente à Refefê [R. F. F.
Produções], aonde havia um hotel abandonado. Ali funcionava o
quartel-general da Rainha. O Carlinhos estava sentado na porta com o
Adriano: “Oi, Fontoura!” Bati a porta do carro, entrei dando
patada [risos]... Um
número muito divertido. Ninguém entendeu nada e continuou tudo do
mesmo jeito. Mas o momento mais incrível aconteceu com o Samuca, um
ator sensacional. Eu tinha visto o Samuca no teatro, na “Selva das
Cidades”, do Zé Celso. Quando resolvi chamar o Samuca ele tinha
acabado de sair de um tratamento num sanatório, onde tinha ficado
internado sob cuidados psiquiátricos. Mas eu queria o Samuca no
“Diaba” de qualquer jeito. A produção tinha que buscá-lo todo
dia em casa. Precisei dublar, porque na dublagem ele já tinha
voltado para o mundo particular dele. A voz do Samuca no filme é
minha. Num dia de filmagem, na hora do almoço, eu todo animado fui
perguntar: “Que legal, não é, Samuca? O que você está achando
do filme?” “Mais ou menos”. “Por quê?” “Porque tudo é
mais ou menos”... [risos]
EE –
[risos]
ACF –
Foi bom ouvir isso, baixou um pouco a minha bola. No dia em que o
personagem tinha que morrer, outro problema. O Emiliano Ribeiro, meu
assistente, veio me chamar. “Fontoura, o Samuca não quer morrer.
Ele disse que fez tudo tudo que você pediu, mas morrer não quer,
não”. Fui lá conversar. “Samuca, não é de verdade, você vai
fingir que vai morrer, um cara te dá uma coronhada por trás, você
desaba e morre. Quando a cena acabar você levanta e acabou. Como eu
faço se você não morrer?” Aí o Samuca concordou: “Tá bom,
vou morrer”. A gente filmou o plano e foi em frente, mas de
repente veio o Emiliano: “Fontoura, vai falar com o Samuca porque
ele continua morto, no mesmo lugar”. Até conseguir convencer que
ele não estava morto levou um tempo. “Você não morreu, não,
Samuca. Levanta”... [risos]
EE –
[risos] Fontoura, um aspecto importante: independente de você ter
imaginado ou não, existe o paralelo com a Madame Satã. Afinal, a
Satã é um ícone carioca, gay, bandida, daquela mesma região, a
Lapa.
ACF – É
verdade. Durante as filmagens nunca pensei na Madame Satã. O
paralelo veio depois, uma comparação feita pelo público. Olha, o
lançamento do filme foi intenso. Os doidões da cidade atravessavam
a rua para vir falar comigo. Eu ganhei fama de maluco, logo eu, tão
racional... [risos] Aconteceram coisas boas e coisas ruins com
o “Rainha Diaba”. Promovi uma sessão no laboratório da Líder,
o pessoal ficou pasmo, chapado. Na platéia estava o Jean-Gabriel
Albicoco, diretor francês, exilado no Brasil. O Albicoco indicou o
filme para a mostra competitiva do Festival de Cannes. Providenciei
uma cópia legendada em francês e cometi a idiotice de encaminhar
pelas vias normais. A cópia ficou presa na alfândega, não chegou a
tempo de ser vista pelo comitê de seleção e foi para a Quinzena
dos Realizadores.
EE –
E as “diabetes”, as companheiras da Diaba?
ACF –
Nem todas as diabetes eram marginais, nem todas eram gays. Havia de
amigos da minha turma a agitadores culturais como o Perfeito Fortuna,
por exemplo. Tinha também o costureiro da Clara Nunes. Ah, uma
história: o Zé Medeiros me apresentou ao Paulão, que seguiu na
profissão e se tornou um ótimo ator: “Esse garoto é sensacional,
dá uma força pra ele”. Escalei o Paulão como motorista da gangue
do Bereco. “Você guia?” O Paulão: “Claro!” Filmamos outras
cenas com ele, mas na primeira que precisava guiar colocamos no carro
e o Paulão não sabia guiar. Em todas as cenas que ele aparecia
dirigindo o carro teve de ser rebocado. Nas cenas de perseguição,
filmadas de longe, quem dirigia era o Antonio Carlos Medeiros, o
Chefinho, que conheci na “Veste Sagrada”. O sonho do Chefinho era
ser piloto de corrida, nesse filme ele se realizou. Uma das coisas
mais importantes para mim foi o sangue. O sangue era cenográfico,
feito pelo Tio Wilmar, tio dos Farias. Mas eu nunca ficava feliz com
a quantidade de sangue, sempre queria por mais sangue ainda, pegava o
garrafão de sangue e esparramava onde podia. Foi uma catarse para
mim. Agora, o mais
interessante é como cheguei na linguagem do filme. Eu não filmava
ficção desde 1968. E o “Copacabana Me Engana” tinha sido um
filme caseiro. Em 1973 a equipe do “Rainha Diaba” era muito
grande. O primeiro dia de filmagem foi num barraco que servia de
abrigo para o Bereco, o personagem do Stepan. Aquelas pessoas todas à
minha volta. Entrei no set, fiquei olhando, olhando... E
pensei: “Eu não sei dirigir cinema”.
EE –
Caramba.
ACF –
“Dei uma sorte danada no 'Copacabana Me Engana', mas não sei fazer
isso”. Fiquei olhando, olhando, olhando. O Zé Medeiros percebeu.
Diretor de fotografia adora dirigir o filme. “Fontoura, por que
você não bota a câmera aqui e ele ali?” Respondi: “Não, Zé,
quando estiver pronto eu aviso.” Ele saiu do set e pediu
para eu avisar quando estivesse pronto. Continuei a olhar em volta
até achar onde colocar a câmera, chamei o Ronaldo, o assistente de
câmera e só depois de armar o plano pedi pra avisar ao Zé, que
estava pronto. A partir daí eu sempre armava o plano com o Ronaldo e
o Zé Medeiros só entrava no set quando eu avisava que estava
pronto. Aí ele vinha, pra iluminar e operar a câmera genialmente.
Mas foi assim que eu fui inventando a linguagem do filme, um plano
depois do outro. Parei de me perguntar se sabia dirigir ou não,
mergulhei de cabeça na criação. Talvez isso tenha dado uma
linguagem especial ao filme, não era nada predeterminado, eu ia
descobrindo, eu ia inventando.
EE –
E “Rainha Diaba” acabou se transformando em uma obra-prima, desde
o início. Aqueles créditos em papel crepom eram ideia do Aquino?
ACF –
Não eram de papel crepom, eram de cartolina com miçangas e
lantejoulas. Isso foi criação do Angelo de Aquino e do Renatinho
Landim, outro artista plástico que participou do filme. A gente
sempre flertou com o kitsch. Olha aqui esse livro, “Kitsch”
[Fontoura aponta para a mesa, o livro ao meu lado].
EE –
Olha só, que bacana... [Pego o livro, folheio as páginas]
Este livro, do Gillo Dorfles, é da época, usado na filmagem?
ACF –
Acho que não serviu de inspiração, mas tinha tudo a ver. O legal é
que eu participava de tudo. Nunca fui aquele diretor de encomendar as
coisas. Eu saía com o Angelo, ia na “Fragil” ver roupa, me
envolvia, ia nas lojas da Rua da Alfândega escolher decalque, ele me
mostrava coisas que tinha curtido, eu mostrava outras que curtia.
Sempre achei que a lantejoula e a purpurina eram uma linguagem do
filme, tudo a ver com as diabetes e com os travestis. Era tudo muito
espontâneo, eu não fazia o tipo “sou aquele artista que tem o
filme na cabeça”. Não tinha o filme na cabeça, por isso ele saiu
assim.
EE –
Estranhamente, apesar do talento do “Rainha Diaba”, você ficou
mais uma vez parado, até começar o próximo longa-metragem. “Cordão
de Ouro”.
ACF –
Tentei fazer “A Cangaceira Eletrônica”, consegui a grana, mas o
valor liberado era pequeno. Achei que não dava para ir filmar em
Brasília. Pensei em rodar no Rio, mas não teria nada a ver.
Precisava ser em Brasília. Nesse meio tempo eu não tinha mais
nenhum projeto de filme, estava curtindo meu primeiro filho, abri uma
loja chamada “Kioske”, de sorvete e sanduíches. Passei a jogar
capoeira. Minha relação com o cinema nunca foi “eu sou um
cineasta”. Eu achava que tudo era acidental, não dava tanta
importância. Não que eu desacreditasse, mas achava que não era tão
diferente assim fazer um filme legal ou abrir uma loja bacana. Acho
que nunca tive esse projeto de construir uma obra. Os filmes foram
acontecendo. Hoje eu me entendo mais, tenho mais consciência de que
sou um diretor de cinema importante. Também, se não tivesse, era
burrice demais... [risos]
EE –
[risos]
ACF – A
minha roda de capoeira foi criada pelo Nestor Capoeira. Um engenheiro
que havia largado a engenharia, morava em um camping e se
dedicava totalmente à capoeira Angola. O Nestor resolveu montar um
grupo de capoeiristas improváveis. Gente que jamais teria feito
capoeira. Eu devia estar no topo [risos]... Éramos eu e
vários outros, artistas, poetas, designers, escritores. A minha
maior dificuldade sempre havia sido lidar com o meu corpo. Vivia
mais na mente, o corpo era um lugar meio estranho. Comecei a
descobrir meu corpo, por pior capoeirista que fosse. Eu e o Orlando
Molica morávamos na rua Maria Angélica, no Jardim Botânico.
Resolvemos criar uma revista em quadrinhos com um herói da capoeira.
O Molica, que é pintor, faria os desenhos. Eu escreveria. O herói
era o Cordão de Ouro, um capoeirista. O nome veio de uma música da
capoeira: “Diga meu nome/ Cordão de Ouro”. Mas acontece que eu
não conseguia escrever a história. Até que um dia fui dormir,
sonhei e acordei com a história pronta. Anotei, anotei, anotei,
fiquei tão espantado. A história era um sonho, sonhei com ela quase
inteirinha. Datilografei, levei para o Molica, ainda sem os diálogos.
Lembro que ele se sentou ao meu lado, na prancheta, e desenhou o
capoeirista com a cara do Miles Davis. No dia seguinte, volto e o
Molica está pasmo.
EE –
O que aconteceu?
ACF –
Aconteceu que o desenho não estava mais lá. “Não sei,
desmaterializou, Fontoura”. Por acaso isso aconteceu em 1975,
quando viajei para Cannes com “Rainha Diaba”. Na volta perguntei
pro Molica: “Vamos fazer um filme disso?” Ele criou o figurino,
fez a direção de arte. Eu já havia tido contato com a umbanda, com
o candomblé, com a cultura negra. Isso tudo tinha vindo no meu sonho
misturado com a capoeira.
EE –
Aquele flerte bem brasileiro: catolicismo/umbanda...
ACF –
Não tinha muito catolicismo não, o meu sonho misturava capoeira,
umbanda e candomblé. A história do “Cordão de Ouro” é a de um
escravo que liberta o próprio corpo através da capoeira, com o
apoio dos orixás. Escrevi o roteiro inspirado no meu sonho e comecei
a filmar. A filmagem tinha muita externa, chovia muito, era tudo
difícil. Na cena numa cachoeira eu perdi a voz, acabou o dinheiro e
fiquei desesperado. Consultei um pai de santo da umbanda e outro do
candomblé, que me disseram: “Você mexeu com coisas que não tem
conhecimento e não pediu permissão. Além do mais você não
poderia ter feito esse filme agora, você furou uma curva do tempo.
Esse filme seria para você fazer daqui a dez, vinte anos. Portanto
nunca espere que aconteça algo com esse filme. Você vai ter a
chance de terminar e pronto”. Dito e feito. Consegui mais dinheiro,
terminei o filme, mas ele não aconteceu. Aliás, de uma coisa não
me esqueço, exibi “Cordão de Ouro” na cabine do Hotel Méridien
e convidei o Roberto Magalhães. Ele saiu do cinema, me olhou com
aquele jeito sábio e disse: “o seu filme não é desse mundo”.
Vai ver não era mesmo. Sei lá de onde era, mas desse mundo
material, não. Era do mundo dos sonhos. Mas os capoeiristas amaram,
virou o filme mais pirateado do Brasil. Toda academia de capoeira tem
uma cópia. Liberei geral. Mas em 1976 me desencantei novamente com o
cinema.
EE –
Por quê?
ACF –
Porque achei que em cada filme era preciso começar tudo de novo, do
zero. Eu queria uma vida mais normal, adorava escrever, na verdade
acho que ficava mais calmo escrevendo do que dirigindo. Adaptei um
conto da Clarice Lispector, o “Feliz Aniversário”, mandei para a
Globo, o Paulo José dirigiu e fez sucesso. O Domingos de Oliveira,
cineasta que também estava dando um tempo do cinema, foi para a
Globo escrever o “Ciranda Cirandinha” e me convidou para ser um
dos autores. Fiquei feliz: agora eu tinha um contrato, tinha patrão,
não precisava mais pensar qual seria o meu próximo projeto e como
conseguiria o dinheiro. Foram três, quatro anos na Globo, com o
“Ciranda Cirandinha” e o “Plantão de Polícia”. Eu escrevia
e dirigia, coisa rara naquele tempo. Ou se escrevia ou se dirigia.
Foi uma experiência bacana, numa área narrativa que eu dominava,
porque eram episódios de uma hora, com narrativa mais próxima dos
filmes do que das novelas.
EE –
Entre os dois, se você for ponderar: TV ou cinema?
ACF –
Cinema. A televisão é interessante, mas o formato é pré-moldado,
por mais que você crie está sempre preenchendo um formato. Cinema
dá mais liberdade. Quer dizer, quando se consegue. Cada filme é um
sapato de um novo modelo. Ou pelo menos era, antes das franquias. Já
o “Ciranda Cirandinha” era sempre “Ciranda Cirandinha”.
Poderia escrever ou dirigir melhor o episódio, mas continuava sempre
a ser “Ciranda Cirandinha”. E como meu interesse maior é a
criação, minha busca real é da criação, cinema foi o veículo
com chance de criar que encontrei. Na televisão, depois de um tempo,
comecei a me sentir sufocado, mas aí veio minha nova decepção com
o cinema, depois da “Cangaceira Eletrônica”.
EE –
“Hospital Brasil”...
ACF –
Eu escrevia o “Plantão de Polícia” com o Doc Comparato. Fomos
ver um filme do Robert Altman, acho que se chamava “Cerimônia de
Um Casamento”. Uma comédia toda passada em uma festa de casamento.
Rimos muito e falei pra ele: “Doc, vamos escrever um filme todo
passado em um lugar só”. Ele perguntou: “Pode ser num hospital?”
Antes de virar roteirista o Doc havia sido cardiologista. Como eu,
que havia sido geólogo. Escrevemos juntos “Hospital Brasil”
enquanto eu ainda estava na Globo. Apresentei o projeto na
Embrafilme, consideraram o melhor roteiro de comédia que havia
chegado lá, toparam produzir. Só que o Celso Amorim me indicou como
produtor o Jece Valadão. “Quero recuperar o Jece Valadão. Ele tem
estúdio, sei que vocês não confiam muito nele, mas precisamos
resgatá-lo”. Foi um desastre. Antes de começar a filmar descobri
que ele já havia gasto metade do orçamento. O filme parou antes de
começar.
EE –
Assim é difícil...
ACF –
Fiquei decepcionado, mas voltei ao projeto em outro desenho de
produção. Em 1984, finalmente, ia ser realizado. Eu já havia saído
da Globo, montei uma parceria com os produtores Joaquim Carvalho e
Carlos Moletta. Convidei o Oscar Ramos para a cenografia, o Carlos
Egberto para a fotografia, convidei para o elenco o Jô Soares, o
Chico Anysio, todos os comediantes que eu curtia da Globo. O Jô deu
várias dicas, ajudou bastante. O roteiro ficou melhor ainda, mas o
dinheiro demorava para ser liberado. Um dia, eu, o Joaquim e o
Moletta marcamos uma reunião com o presidente da Embrafilme, para
saber o que estava acontecendo. Era o Roberto Parreira, que disse:
“Olha, a Embrafilme quer receber dois milhões de dólares do
governo, mas se o Delfim Netto assistir esse filme de vocês isso não
vai jamais acontecer”. É que um dos personagens que se internava
no hospital era um ministro com uns seios enormes...
EE –
[risos]
ACF –
[risos] As tetas do poder. Ele se internava no hospital, ficava
passando creme Nívea nos seios. O Parreira disse que só apoiaria o
projeto se nós tirássemos os seios do ministro. A minha piada me
custou o filme: “Eu me recuso a fazer uma mastectomia no ministro”.
Para contornar a situação, aceitaram apoiar outro filme de cada um
de nós. Um do Joaquim Carvalho, outro do Moletta, para mim o
“Espelho de Carne”.
EE –
Antes do “Espelho de Carne”, Fontoura, queria que você
comentasse o curta “Brasília Segundo Alberto Cavalcanti”, de 82.
O Cavalcanti era uma figura non grata no cinema brasileiro.
ACF –
Naquela momento era, mas agora o trabalho dele é muito reconhecido.
Mas primeiro preciso dizer por que fiz o filme: sou primo do Lauro
Augusto Cavalcanti, diretor do Paço Imperial. O Lauro Augusto me
perguntou: “Você sabe que é primo do Alberto?” Não sabia. Ele
nos apresentou, o Alberto morava no Hotel Castro Alves, em frente à
rua Siqueira Campos, na praça Serzedelo Correia, em Copacabana. Uma
vez por semana eu o visitava, tomávamos gim com água tônica. O
Alberto estava muito triste, muito frustrado, porque o Cinema Novo
tinha rejeitado ele.
EE –
E não viu você com receio por ser um membro da família, apesar da
diferença de idade.
ACF –
Por ser da família e também porque não era tão Cinema Novo assim.
Conversávamos muito. Um dia ele trouxe o assunto de Brasília: “Você
sabe que eu tenho um roteiro sobre Brasília? Fui convidado para
visitar a cidade, criei um roteiro, mas não estou mais com saúde.
Quer fazer esse filme para mim?” Foi assim. Logo depois ele morreu,
visitei o INC [Instituto Nacional de Cinema], expliquei que
queria prestar uma homenagem ao Alberto Cavalcanti e que estava com o
roteiro. Produziram totalmente, com todos os recursos. Coloquei então
esse nome: “Brasília Segundo Alberto Cavalcanti”.
EE –
Brasília sempre volta na sua história. No “Cangaceira
Eletrônica”, no curta do Alberto, no “Somos Tão Jovens”...
Agora, então, vamos para o “Espelho de Carne”.
ACF –
Eu estava casado com a Hileana Menezes e o melhor amigo dela era o
Vicente Pereira, um dos autores lançados na época de ouro do
besteirol. Um autor muito talentoso, maravilhoso. Até que ele
apareceu com uma peça, “O Espelho de Carne”, dizendo que só eu
poderia dirigir. Ele era totalmente místico. Perguntei por quê:
“porque você é escorpião com escorpião”. Eu, Calmon e Paulo
César Saraceni somos escorpião com escorpião. Comecei a ler,
pensei em levar para o teatro, mas quando aconteceu a situação com
a Embrafilme, imediatamente transformei no roteiro do filme que faria
em vez do “Hospital Brasil. O texto do Vicente se passava em um
apartamento de Copacabana, mas eu já estava começando a frequentar
muito a Barra da Tijuca e quis trazer a ação para a classe
média emergente. Dei um upgrade nos protagonistas, que se
tornaram mais bem-sucedidos, tanto que filmei no Atlântico Sul, o
condomínio mais legal na época, na Barra.
EE –
“Espelho de Carne” é um filme maldito.
ACF –
Esse filme foi uma experiência única para mim. A Hileana não
representava, ela vivia o personagem. Fez todo o filme em pânico com
o demônio, que tinha que ver – e via mesmo – no espelho.
Aconteciam coisas estranhíssimas, tempestades, sons agourentos. No
dia em que a Hileana teria que descobrir o demônio no espelho
explodiam coisas, se apagavam luzes. Um filme muito mágico. Esse
negócio de espelho, de reflexo, é mágico demais.
EE –
Como foi colocar o Dênis Carvalho e o Daniel Filho em uma cena
daquelas, de sexo gay?
ACF –
Antes do início das filmagens, fiz umas leituras com o elenco,
coordenadas pelo Amir Haddad, que conhecia bem a peça que deu origem
ao filme. A cena foi encarada com naturalidade, era parte da
dramaturgia do filme. Claro, quando o filme foi lançado teve muita
repercussão, mas tudo culpa daquele endiabrado espelho... Imprevisto
mesmo foi a troca de uma atriz, houve um problema com a Norma
Bengell, precisei parar a filmagem por três dias, mas felizmente
encontrei a Joana Fomm, que assumiu o papel e deu um show.
EE –
De 84 até “Uma Aventura do Zico” são quatorze anos...
ACF –
“Espelho de Carne” fez setecentos mil espectadores, então
apresentei logo para a Embrafilme outro projeto, “No Meio da Rua”,
achando que por ter realizado um filme de sucesso, vencedor de um
Prêmio Air France de direção, não ia ter problema. Não. Criaram
um comitê de leitura de roteiros que vetou o “No Meio da Rua”.
Outra vez me desencantei com o cinema, fui escrever duas séries para
a Tv Bandeirantes: “Chapadão do Bugre” e “Capitães da Areia”,
finalmente voltei para a Globo, por oito anos, para escrever e
dirigir um programa que eu adorava, o “Você Decide”, um grande
exercício de dramaturgia. Os autores precisavam escrever histórias
com um dilema e dois finais possíveis, para o público escolher qual
preferia. Nada melhor para entender o que o público quer e o que não
quer. Até que, durante a Copa 1990, um diretor de núcleo da Globo
me pediu para atender a uma encomenda do Boni, criar uma novelinha
estrelada pelo Pelé, para ser exibida para crianças durante a Copa
do Mundo. Escrevi “Uma Aventura do Rei”. Parece que o Pelé pediu
alto, a Globo achou que não valia a pena, a ideia ficou comigo. Foi
então que pensei que para voltar para o cinema, depois de tanto
tempo, precisava de algo muito atrativo. Como sou louco pelo
Flamengo, tive a ideia de reinventar a história para o Zico e
procurei o Luiz Carlos Barreto. O coração rubro-negro dele se
encantou e resolveu produzir o filme.
EE –
Fontoura, nesse do Zico, você já estava em uma outra estrutura de
produção.
ACF –
Não só numa outra estrutura de produção, mas numa outra estrutura
mental. Eu já havia feito muita televisão, já havia aprendido que
o diretor não está acima do público. A televisão me ensinou
muitas coisas: trabalhar com os outros, confiar nos outros. É tudo
tão rápido e tão instantâneo que, se não confiar, você está
ferrado. Você também aprende a simplificar um pouco a linguagem,
porque precisa ter produtividade. Os malabarismos de câmera de
“Espelho de Carne” eu já havia deixado de lado. Minha linguagem
estava ficando mais simples e mais direta.
EE –
O que você acha dessa mudança?
ACF –
Foi boa, tive que trabalhar mais consciente do resultado que queria
obter. No “Zico”, por conta dos efeitos especiais, precisei
desenhar as cenas e criar um storyboard. Nesse filme surgiu
meu desejo de trabalhar com formatos. O “Zico”, para mim, era a
proposta de um family film. Os americanos faziam muitos e eu
assistia com meus filhos. Mas naquela época o público dos filmes
infantis brasileiros era dos Trapalhões. O formato family film
o público só aceitava em filme americano. O Barreto esperava
atingir um milhão e meio de espectadores: se o filme fez cinquenta
mil foi muito.
EE –
E aí você já era o Antonio Carlos “da” Fontoura.
ACF –
Troquei o nome depois do “Espelho de Carne”, em 86. Levei o filme
para Gramado e havia uma senhora em uma mesa, com atores. Numeróloga
amadora. Ela perguntou: “Tem certeza que este é o seu nome?”
Bom, na verdade meu nome é Antonio Carlos da Fontoura. O “da”
foi exigência do meu pai, fui batizado assim. Tirar o “da” foi
exigência da minha mãe, por achar elitista. Já no colégio passei
a assinar Antonio Carlos Fontoura. A numeróloga refez as contas:
“pois bem, você jogou fora o maior presente que o seu pai deu a
você, em toda a sua vida”. [Pausa.] Na carteira de
identidade já constava “da Fontoura”, mas assim que voltei ao
Rio, alterei o restante, os meus registros bancários, tudo. Assumi a
minha nobreza. [Pausa.]
EE –
E isso tocou você de que maneira? Fazer as pazes com o pai?
ACF –
É, me reconciliar. Ele já havia morrido, minha mãe estava viva. A
relação era um pouco distante com meu pai. Ele teve uma fase de
muito poder, aquelas coisas de pai poderoso e filho não. Representou
uma reconciliação. E é tão positivo esse “da”. Logo em
seguida voltei para a televisão, com o melhor contrato que tive até
hoje, no “Você Decide”. Atravessei todo aquele período horrível
na era Collor, em que não existia cinema, e quando começou a
renascer, vi a possibilidade de um espaço.
EE –
Com o “No Meio da Rua”, de 2005.
ACF –
“No Meio da Rua” é o tal projeto cuja recusa me fez me afastar
do cinema, antes do “Zico”. Foi inspirado no meu filho Daniel,
que quando estava com onze anos, morava com a mãe. “Pô, pai, eu
passo o tempo todo aqui dentro e quando estou sozinho fico na janela,
vendo esses garotos na rua. Desci, fiquei amigo deles e passei a
ajudar”. Começou a vender bala no sinal, com os meninos. Isso
ficou na minha cabeça, bolei um roteiro. Levei tudo para um patamar
mais alto: o garoto é filho de uma família top, o pai é executivo,
mora numa cobertura em Ipanema, a mãe tem uma grife. No filme, o
garoto é preparado para ser melhor do que os pais. Anda de Pajero
com motorista, vai para aula de inglês, de tênis, sem hora de
brincar, sem vida pessoal. O tempo todo jogando Gameboy, dentro do
carro. Uma irmãzinha mais nova enchendo o saco, como a minha irmã
enchia o meu. O carro está parado, ele empresta o joguinho pro
moleque, a irmã conta para a mãe. “Amigo de garoto de rua? Que
irresponsável, meu filho!” Como foi fabricado para ser
responsável, é a maior ofensa que poderia ter. Ele foge do colégio,
vai para o sinal, tenta recuperar o jogo, mas já foi roubado por
dois aviões do morro aonde o moleque mora. É a aventura de como ele
foge para o morro junto com o amigo, descobre a liberdade e recupera
o joguinho.
EE –
Já “O Gatão de Meia Idade” não é um projeto seu de corpo
inteiro, como esses que nós vimos até agora.
ACF –
Não, não é um projeto meu. Lancei o “No Meio da Rua” e o
Carlos Moletta, que seria produtor do “Hospital Brasil”, me
convidou para outra comédia. Nessa altura, por volta de 2004, eu já
estava com os meus sessenta e poucos anos, mas me achava ainda um
“gatão de meia idade”. Pelo menos na fantasia [risos]Adorava
aquele personagem, achava divertido, e procuramos o criador, o Miguel
Paiva. Miguel tinha umas histórias maiores, em vez de tirinhas
pequenas, me deu um monte delas, escrevi o primeiro tratamento. Ele
também ajudou, gosta de escrever. Quem seria o Gatão? Engraçado
que fizemos uma reunião: eu, Miguel e Moletta. Os três vieram com o
mesmo nome na cabeça, o Alexandre Borges. No “Gatão” eu não me
envolvi tanto. Apenas dirigi o filme. A maior dificuldade do cinema
não é dirigir. É arranjar dinheiro, prestar contas, cheques etc.
Ainda mais porque eu ainda não tinha a Letícia [atual esposa] ao
meu lado na produtora. Esta casa era o ateliê dela, de velas.
Depois, ela chegou à conclusão de que não dava, investiu no
cinema, cursou a ESPM, passou a me dar suporte total. “No Meio da
Rua” eu produzi sozinho, com um produtor-executivo que eu
contratei. Era exaustivo. “O Gatão de Meia Idade” foi um
descanso.
EE –
Fontoura, e como o “Somos Tão Jovens” apareceu para você?
ACF –
Depois do “Gatão”, eu não iria fazer o “Somos Tão Jovens”.
Queria filmar um roteiro meu, já pronto, chamado “Alma”. Estava
me preparando para colocar nas leis, lá por 2009. Na origem, a ideia
tinha sido inspirada pela fama da Roberta Close, em 1980 e poucos.
Coloquei a ideia num concurso de roteiros, ganhei e escrevi o “Alma”.
Porém, quando filmava o “Gatão”, reencontrei por acaso o Luiz
Fernando Borges. Uma coisa que eu não gosto é a confusão do set
de filmagem. Nem sei porque sou diretor [risos]
EE –
[risos]
ACF –
Uma confusão... Enquanto estou dirigindo adoro, mas os intervalos...
As pessoas acham que, além de dirigir o filme, você sabe tudo, você
é o Deus do pedaço. Exaustivo. Então, durante um intervalo, saí
para caminhar. Sabia que levaria uma hora até prepararem a luz.
Cruzei com o Luiz Fernando, que tinha feito análise de grupo comigo,
durante oito anos. Perguntei como estava a vida e tal. Ele contou que
havia empresariado o Zé Ramalho, mas a pessoa com quem tinha tido
mais ligação era o Renato Russo. Depois que o Renato morreu, o Luiz
ganhou da família dele o privilégio de escolher alguém para fazer
um filme sobre a vida do Renato. “Fontoura, estou procurando alguém
para assumir o projeto”. Respondi na hora: “Passa amanhã lá na
produtora”.
EE –
Antes disso, o Renato Russo era uma pessoa que tinha interessado a
você, de alguma maneira?
ACF –
Fui na gravação do programa “Chico & Caetano” com a Legião
e os Paralamas. Ouvi algumas músicas no rádio, comprei um disco da
Legião, mas nunca fui ver um show, não era um programa da minha
geração. O Luiz tem um respeito religioso pelo Renato, então a
ideia que ele tinha era um documentário. Eu disse que não faria e
propus um filme de ficção em torno da biografia do Renato. Mas não
sobre a vida inteira, acho que uma vida inteira não cabe em um
filme, mesmo a de alguém que só viveu trinta e seis anos. “Luiz,
negocia com a família, quero recortar um pedaço da vida dele”.
Assim que passei a pesquisar, fiquei fascinado pela história da
juventude do Renato. Morou em Brasília, meio dissociado, trancado um
ano dentro do quarto, por causa de uma doença, sonhando que ia sair
dali para se tornar um grande astro. Isso se identificou com a minha
história, lá do passado, de garoto preso. Resolvi contar esse
período. Ainda mais porque acontecia na cidade que eu amava:
Brasília. Juntou tudo. Comecei a amar esse garoto. Ele tinha uma
série de questionamentos sobre a vida e a família dele era, em um
certo sentido, igual à minha. Tanto ponto de contato. Uma banda que
ninguém conhece, a Incredible String Band, que vi um show em
Londres, ele adorava. A gente foi aos poucos se aproximando. E,
realmente, você falou uma coisa certa: eu reencontrei a minha
juventude na juventude daquela turma.
EE –
Agora deixa eu inverter, Fontoura: estamos vendo você em relação a
ele. Mas como você acha que ele e a geração dele encarariam você
e a sua geração?
ACF –
Não sei. Mas lembro que comentei com a irmã dele, a Carmem Teresa:
“Olha, eu não ouvia muito as músicas do seu irmão. Era rock em
português e o meu rock era todo em inglês”. Ela falou: “O dele
também!” [risos]
EE –
Como foi esse processo de imersão no mundo do Renato Russo?
ACF –
Era obrigatório, até. Porque você trabalha com cessão de
direitos. Precisei me aproximar da família. Conversei muito com Dona
Carminha, com Carmem Teresa. O Luiz me abriu essa porta, por ser
amigo da família. Fui conversar com o Dado [Villa-Lobos],
[Paulo] Bonfá, Fê Lemos, Flávio Lemos, Dinho. Tive não só
que absorvê-los, porque eram personagens, mas também licenciar com
eles, adquirir direitos de imagem.
EE –
[risos] E, ao mexer no Renato Russo, você tinha dimensão de que
estaria mexendo, praticamente, em uma seita?
ACF –
Uma seita, é verdade. Hoje em dia é uma garotada nova, de quinze,
dezesseis, dezessete. Eles idolatram o Renato Russo. Esse fenômeno
eu percebi enquanto criava o filme. Tanto que, você pode prestar
atenção, o “Somos Tão Jovens” se passa entre 1978 e 1982, a
garotada é daquele tempo, a cidade é daquele tempo, mas puxei para
serem como os jovens de agora. E tinham que ser, porque boa parte do
elenco jovem não era de atores, era de músicos. Como a música do
“Somos Tão Jovens” é toda ao vivo, sem playback, tudo
tinha que ser de verdade. Cantar de verdade, tocar de verdade, serem
aquelas pessoas. No lançamento atingimos mais de um milhão e
setecentos mil espectadores. O filme foi campeão de vendas no
iTunes, liderou no Video On Demand. Bacana isso, mas não é o caso
de “ah, ganhei uma fortuna...”. O sistema é tão cruel, tem
tanta parte do leão aí – e você não é o leão [risos]...
A minha grande alegria foi essa: fiquei muito feliz do filme ter sido
tão amado. Não foi só o número de espectadores. Poderia ter sido
maior, se eu tivesse a Globo como apoio, o que não tive. O mais
gratificante foram as reações do público nos cinemas. Aplausos no
final da sessão, gente cantando junto, gente chorando. Isso foi
muito gostoso, ver que cheguei ao coração das pessoas.
EE –
Em termos de estruturas, o seu maior filme “Rainha Diaba” e o
“Somos Tão Jovens” são opostos. O primeiro é kitsch, o
segundo é bem mais leve.
ACF –
Os dois não têm nada a ver mesmo entre si. Eu percebo um filme meu
próximo do “Somos Tão Jovens”: “Copacabana Me Engana”.
Alguma semelhança. Filme de turma, garoto que mora com a família.
Os garotos com a mesma liberdade que dei aos garotos do “Somos Tão
Jovens”. Lugares emblemáticos: Copacabana e Brasília. Relação
familiar, dúvidas, buscas. Não tinha música, mas tinha pontos de
contato. Daqui a uns três anos, talvez eu faça a minha nova “Rainha
Diaba”. Voltei agora do Film Cup Brasil-França, justamente para
viabilizar esse projeto. Os temas borderline me interessam
muito.
EE –
Pois é, aí que está a beleza!
ACF –
Eu gosto muito. Tudo fica mais colorido, mais exacerbado. Escrevi um
roteiro, um dos oito que ganharam um concurso entre oitocentos
roteiros, e me deram o recurso para desenvolver. Chama-se “A
Batalha do Bosque”, “Bois de Boulogne Queens”. A conquista do
Bois de Boulogne pelos travestis brasileiros, nos anos 70. Uma
situação extremamente sangrenta. Agora entrei em contato com
produtores franceses, para criar uma co-produção. 2015, tomara.
Tudo que eu aprendi no “Rainha Diaba” quero colocar aí. Antes
disso, volto ao nosso querido Miguel Paiva. Estou produzindo o
“Radical Chic”. Começando: colocando em lei, captando.
EE –
E ficando assim. Lá e cá, em termos dos tipos de filmes.
ACF –
Lá e cá. Na verdade, eu não sou muito monomaníaco. Gosto de
variar.
EE –
A última pergunta. Eis que ela chega, Fontoura. Você por você
mesmo: a sua trajetória, profissional e pessoal. Fontoura por
Fontoura.
ACF –
[Pausa longa. A maior até agora.] A única coisa que me vem à
cabeça é uma frase. Não minha, do Picasso. “Eu não procuro, eu
acho”. Uma coisa bacana que ele falou. É assim que me sinto,
sempre achando as coisas. Sem plano pré-determinado. Sem querer ser
isso, sem querer ser aquilo. Sendo.
8 comentários:
Sensacional, querida.
Como sempre!
Um beijo grande,
Adilson
Estou fora de SP e tive que ler num computador antigo essa entrevista. Mais um trabalho sensacional de resgate. Excelente natal Andrea
Pelo nome achava que não conhecia,lendo a entrevista percebi que conhecia sim,desde "Ciranda cirandinha".Obrigada.
Excelente entrevista como sempre, Andrea! Feliz Natal! Bjs
Uma entrevista perfuratriz, como de hábito. Grande presente de Natal para os que se interessam pelo cinema brasileiro.
Andréa, parabéns pela entrevista com o Fontoura. Adorei!
Forte abraço,
Márcio/MG
Adilson, Matheus, Ademar, Sergio, Setaro e Márcio: obrigada e um feliz 2014 para todos nós! A entrevista com o Fontoura revela outros lados de um diretor que inscreveu o seu nome na história do cinema brasileiro mas que se renova a cada dia, numa missão de fé.
Admiro há anos o trabalho do Sr. Fontoura, considero esse realizador e Calmon, dos dos grandes Artesãos da Sétima Arte brasileira...não sabia dessa conexão ´cósmico-zodiacal´ entre ambos.
Sempre imaginei como ficaria o belo O SONHO NÃO CABOU, na minah opinião, o melhor trabalho de Sergio Rezende, se dirigido pelo Antonio.
Valeu pela entrevista!
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