Morro da Providência à esquerda, relógio da Central do Brasil à direita, Cristiano Requião no meio. A foto acima é esclarecedora: lá está Requião entre a favela carioca e a estação de trens, sucesso internacional no filme de Walter Salles.
Por mais de trinta anos, Cristiano Requião também se equilibrou no cinema popular e nas produções de alto orçamento. Viajou pelos extremos, encaixando até filme de James Bond no currículo. Comandado por Jece Valadão, participa do primeiro pornô realizado no Brasil: “Viagem ao Céu da Boca”, detido pela censura e liberado meses depois do “Coisas Eróticas”, de Raffaele Rossi.
Fotógrafo e diretor assistente, tentou o namoro com o Beco da Fome – no centro do Rio, aonde os técnicos se reuniam para abater ovos coloridos e tulipas de cerveja. O encanto não aconteceu. Aos olhos do garoto de classe média, hippie montanhista, o preconceito veio de onde menos esperava.
Nas horas vagas, consertou moviolas para Roland Henze, que lhe abriu as portas dos curtas-metragens. Nos anos 80, travou contato com o cinema underground de Afrânio Vital, a Embrafilme de Ipojuca Pontes e “Pedro Mico”, além dos “Giselle H.”, a famosa série dos explícitos de Carlo Mossy. Bateu ponto no mitológico “As Aventuras de Sérgio Mallandro”. E sobreviveu.
Os bastidores desses e de outros filmes são contados de peito aberto, demonstrando o conhecimento prático de quem sabe filmar com pouco. Se preciso for, usando cano PVC de esgoto para cenas debaixo d'água. Aos sessenta anos, Cristiano Requião estreia como diretor de longa-metragem em “Outro Olhar” e já emenda o projeto para adaptar a biografia da atriz Jussara Calmon. Em breve, nos cinemas.
ESTRANHO ENCONTRO – Cristiano, começando pelo final: por que só aos sessenta anos você dirigiu o seu primeiro longa-metragem?
CRISTIANO REQUIÃO – Decepção com a classe de cinema, com o pessoal que trabalha em cinema. Participei de onze longas-metragens, durante dez anos da minha vida, de 1978 a 89. Me decepcionei muito com as pessoas, com o trato social dentro do universo do cinema etc e tal. Então migrei para a área institucional, filmes de treinamento, filmes de grandes empresas. Petrobras, Kawashima, Montreal Engenharia Internacional, algumas que não existem mais. Assim fiz o pé de meia, consegui juntar alguma grana. Aliás, a experiência me favoreceu muito quando voltei ao cinema e aos filmes de baixo ou baixíssimo orçamento. Viajava com a câmera, três refletores, um assistente às vezes bom, às vezes não. Eu tinha que, sozinho, dirigir, iluminar, montar cenário. Viajava para Tefé, Urucu, Amazônia, sul do país, o diabo, e precisava trazer um filme na volta. Quando minha filha nasceu em 1993, parei com as viagens e parti para o mercado publicitário. Trabalhei com artes gráficas, editei livros sobre montanhismo, dei aulas em universidade, no curso de comunicação. Produzia peças publicitárias e os telejornais internos com os alunos.
EE – Interessante você falar em decepção. Foi reiteradamente? Desde quando?
CR – O último filme acabou se tornando o mais marcante nesse aspecto. “O Quinto Macaco”, com Ben Kingsley, direção de Éric Rochat, rodado em Paraty, produção executiva no Brasil. Eu não aceitava determinadas atitudes, queria fazer outra coisa da vida e não aquilo. Não estava na minha turma. Eu era montanhista, dormia cedo, acordava cedo. Começou a me incomodar. Muitas vezes até fui convidado para fotografar alguns filmes porque as pessoas podiam não gostar de mim, mas sabiam que eu daria conta, me aturavam. Acabou que comecei a me tornar, também, uma pessoa difícil. Extremamente exigente, intempestivo, agressivo.
EE – A diferença entre o sonho do cinema e a realidade. As coisas como elas são...
CR – Exato. Engraçado que aos dezesseis anos fui ao Roxy, em Copacabana, ver “Os Aventureiros”, “Les Aventuriers”. Estrelado pelo Lino Ventura e o Alain Delon. Formidável, vibrante, revi recentemente. Naquela hora descobri o que queria fazer da vida. O que me sensibilizou não foi a história propriamente, mas sim a capacidade de emocionar as pessoas. Com a linguagem cinematográfica, a fotografia, a música, o drama. Então decidi: é o que eu quero. Estudei em cursinhos de cinema, li muito, frequentei a biblioteca de Copacabana. Como abandonei a escola, sobrava tempo livre. Comprei uma câmera 8 milímetros, mais tarde Super-8. Aliás, eu tenho filmezinhos Super-8 com a Monique Lafond, minha amiga de adolescência. Nesse período, comecei no montanhismo e aí surgiu um hiato. Eu tinha uma vida familiar extremamente cáustica e o montanhismo abriu as portas para mim. Era a família que eu havia escolhido. Era aonde eu dividia o gole de água, o chocolate, dormíamos juntos, acampávamos.
EE – E como era a família de sangue? A original. Pai, mãe, irmãos...
CR – Extremamente rigorosa até a adolescência. Tenho ascendência alemã, sou praticamente filho único. Dois irmãos, hoje com mais de oitenta anos. Temporão, vinte anos de diferença. Um clima exigente, família conturbada. Meu pai era muito explosivo, participou da Revolução de 30, em um combate no sul do Paraná ou de Santa Catarina, o mais ferrenho, uma madrugada sangrenta. Ele tinha vários traumas dessa fase e não era de um posicionamento político bem definido. A minha mãe era pior do que alemã: era filha de alemães [risos]... Nasci em 1952, em São Paulo, por uma série de motivos. A família é toda do Paraná, a parte do meu pai sempre foi muito influente por lá, embora a gente não se veja há uns trinta anos. Vim para o Rio aos quatro anos de idade, aos quatorze já havia sido expulso de seis escolas, tive problemas disciplinares e resolvi parar de estudar.
EE – Faz sentido, com esse generation gap todo...
CR – E, parando de estudar, recebi o ultimato do meu pai: se não estudar, vai trabalhar. Fui trabalhar. Em uma agência de propaganda, que me deu a base excelente em fotografia. Standard Propaganda, uma agência de ponta, com as contas da Shell e outras. Fiquei no laboratório fotográfico, conheci fotógrafos que se tornaram meus professores, ensinaram muito. Até que passei a fotografar de maneira autônoma. Com dezesseis anos ganhava dinheiro mole, indo para as pracinhas. Levava o equipamento, fotografava as crianças. Naquela época era moda fazer poster. A gente cobrava uma grana, os honorários eram irrepreensíveis [risos]
EE – [risos] Imagino. As avós e mães adoravam esses posters...
CR – E com dezesseis anos, a minha primeira escalada. Na outra semana, o Dedo de Deus, a minha paixão. A Monique Lafond estava nesse grupo. Quase me ferrei, dezesseis horas de escalada, chegamos de madrugada. Escalei o Dedo de Deus mais de sessenta vezes, ao longo dos anos. E houve esse hiato, da minha vida pessoal e profissional, porque fiquei dedicado exclusivamente ao montanhismo. Uma coisa absolutamente neurótica.
EE – Dando aula? Você sobrevivia do próprio montanhismo?
CR – Eu não sobrevivia. Vivia numa miséria do cão porque meu pai não me dava um puto. Aos dezoito, me apresentei no exército, mas quando disseram que eu teria que servir, fugi [risos]
EE – [risos] Eu também fugiria... Com 18 anos, significa que você estava em 1970, no fino da ditadura...
CR – O fino da bossa... Viajei para a Argentina, escalei em Bariloche e em Ushuaia. Pico Olimpo de Ushuaia, se não me engano. Meu negócio era montanhismo e eu ligava isso ao cinema, filmando em Super-8. Até que fui preso, aos vinte e um anos, por ter fugido do exército. Foram me buscar em casa por ter desertado, anos antes. Estava almoçando, de sunga, tinha acabado de chegar da praia. Tocou a campainha, minha mãe atendeu e era um sargento. “Por gentileza, o soldado Requião”. Minha mãe: “Aqui não tem nenhum soldado Requião.” Eles: “Estamos aqui com uma ordem de busca.” Nessa hora minha mãe me avisou: “Você pode sair pela porta dos fundos, descer a escada, o pessoal está esperando lá embaixo. Como nunca viram você, passa e vai para a casa do seu primo, depois a gente resolve.” Mas preferi ir com o sargento, ver o que estava acontecendo. Tocaram o terror no trajeto até o Forte de Copacabana, dentro de uma Rural velha [risos]...
EE – [risos]
CR – “Aí, ó: o manjuba de veludo vai te conhecer na cela...” [risos] Ainda pensei que se eu pulasse de costas, entrava na água e o pessoal de coturno e fuzil não iria me pegar. Mas segui até o Forte de Copacabana, fiquei preso quatro dias. Havia as pessoas boas e as más. Um sargento me acordava com um balde de água, às cinco horas da manhã. Depois de quatro dias, tudo resolvido, fui intimado a servir. Acontece que, aos vinte anos, fiz um curso de cinema, no MAM. Não lembro se foi antes ou depois desse episódio, e demorou cerca de seis meses. Era coordenado pelo José Carlos Avellar, pelo Ronald Monteiro e pelo Cosme Alves Neto, então presidente da Cinemateca. Dava aulas o Walter Goulart, que fez o som do meu filme agora, o “Outro Olhar”. Além dele, acho que o Oswaldo Caldeira, o Lael Rodrigues e outros. A gente aprendia teoria de cinema em profundidade, um filme por dia, um livro por semana e um seminário na semana seguinte. Muitos filmes, seis horas de aula por dia. Posso dizer que aprendi 70% do que eu conheço de linguagem de cinema assistindo aos filmes no MAM, nessa época.
EE – Quem mais fez o curso com você?
CR – A Regina Machado, que me levou para lá, mulher do Cosme. Creio que também o Marcos Magalhães, que dirigiu o “Meow”, depois migrou para o Canadá. Cabeludão, gente boa pra caramba. Era uma turma bastante legal, e para mim foi excelente. Só que para entrar no mercado foi zero. Comecei a fabricar antenas de transmissão, me inscrevi em curso de pilotagem, morei no Equador por quase um ano, entre 75 e 76. Em 77, uma menina que eu namorava, me disse: “Cristiano, vai fazer o segundo grau.” Era o artigo 91 ou 99, não me lembro. Fiz as provas. Seis meses depois, as outras e o vestibular na Cesgranrio, para engenharia mecânica. Passei no vestibular, paguei o Darf. Quando cheguei na fila da matrícula, ela me perguntou se era isso mesmo o que eu queria. “Não... Imagina, não tenho o menor saco de ficar vindo aqui na faculdade.” “Ok, vamos sair da fila, mas agora você faz cinema de qualquer jeito” [risos]
EE – [risos]
CR – Aí entrei de cabeça. Procurei a ABD, Associação Brasileira de Documentaristas, conheci o Noilton Nunes, na Lente Filmes, aonde corriam as reuniões. Conheci também o Roland Henze, que produziu o meu curta “Dedo de Deus” e me chamou para consertar as moviolas dele. Com o Henze fiz assistência de câmera em “Confeitaria Colombo”, sobre a família Lebrão, dona da Colombo. Depois, o “Depravação”, em 79. Fotografado por ele, produzido pelo Roberto Valanci, dirigido pelo Élio Vieira de Araújo e filmado em Casemiro de Abreu. Apareceram trabalhos institucionais, junto ao Roland. Virei um assistente de caderno.
EE – A dupla com o Roland durou bastante tempo.
CR – O Roland me deu todo o modus operandi de trabalhar com as câmeras de cinema. Eu já conhecia máquinas fotográficas. De chapa, de filme, todos os formatos. Mas cinema, não. Engraçado que ele me perguntou se eu conhecia a Arriflex 2C. “Claro! É minha amiga íntima! Lógico!” Saí desesperado, fui à Mega Filmes do Jorge Veras, uma pessoa maravilhosa, e ele me deu um catálogo da câmera. “Olha, não tenho tempo para ensinar, mas dá uma olhada.” Coloquei o filme pela primeira vez dentro da câmera na locação, cinco minutos antes de começar a rodar. Deu certo [risos]
EE – [risos] E viva a criatividade...
CR – Aprendi vários macetes, aprendi muito com o Roland. Principalmente a disciplina. Acordar na hora certa, tudo aquilo que depois eu bati de frente, até na Magnus Filmes, para onde me transferi em seguida, em 82.
EE – Estamos em pleno Beco da Fome. Um lugar estratégico no cinema popular brasileiro, aonde vários técnicos se reuniam. Conta algumas histórias de lá...
CR – Não cheguei a frequentar o Beco da Fome. Fui algumas vezes, na [rua] Álvaro Alvim [centro do Rio], mas era tão baixo astral que não frequentei. Talvez na Líder [no bairro de Botafogo], o pessoal fosse mais profissional. No Beco da Fome rachavam um cafezinho, dividiam um biscoito Extra.
EE – E você era um playboy de Copacabana.
CR – Eu era um garotão de Copacabana. Quando aparecia no Beco da Fome, me discriminavam completamente, nego nem falava comigo. Eu tentava chegar, “e aí, como é”, tal, e não tinha resposta. “Não te conheço”. Um negócio escroto, escrotíssimo. Talvez pelo meu physique du rôle, não sei. Alguma coisa acontecia ali. Quando trabalhei na Magnus Filmes, fiquei apenas na Magnus. O Jece Valadão me deu uma guarida formidável. Aliás, uma pessoa ímpar: você podia confiar em tudo o que ele dissesse, jamais no que ele assinasse. Aprendi essa máxima. Comigo o Jece foi de uma correção absoluta e trabalhei na Magnus durante dois anos, de 81 a 83. Na Magnus, havia uma empresa de propaganda que, se não me engano, era a JC Produções, para a área de comerciais. E uma empresa de cinema. Vi coisas do arco da velha.
EE – Do tipo?
CR – Do tipo cobranças, quem me contou foi uma secretária. Chegou uma turma do Vale do Canaã, por exemplo, aonde o Jece tinha filmado anos antes, com a Rossana Ghessa. Cobraram na base da arma, seguraram o Jece pelo colarinho: “Escuta, assina um cheque agora.” Ele assinou o cheque. “O meu amigo vai descontar. Se não tiver fundos, eu te mato”. “Opa, não, não... Espera aí, espera aí... Vou assinar outro cheque aqui...” [risos]
EE – [risos]
CR – E ligou para o banco: “Meu grande amigo! Escuta, libera aí, libera aí! Pelo amor de Deus, libera esse cheque...” O cara saiu, trouxe a grana, agradeceu, entraram no Dodge Dart e foram embora. Também participei da campanha política do Jece. O slogan não oficial era “ladrão por ladrão, vote em Valadão” [risos] Formidável! Eu tive uma escola na Magnus. E depois que li o livro do Roberto Freire, “Ame e Dê Vexame”, a minha vida deslanchou. Eu era contido, tímido, e comecei a me expor. O ambiente de montanha é muito peculiar. Se você viver apenas no ambiente de montanha, você se transforma, trata as pessoas com outro formato relacional.
EE – Estando no Rio, vocês tinham contato com a Boca do Lixo, em São Paulo?
CR – Não.
EE – Eram mundos isolados?
CR – Completamente. Ouvia falar, sabia da existência, mas nunca fui. Eu me lembro que aconteceram fases cruéis, como no final da Embrafilme, em que vários cineastas conhecidos, como o Carlos Reichenbach, estavam apelando para os filmes eróticos. Usavam codinomes para sobreviver. Conhecia os filmes do Walter Hugo Khouri. Mas era um pessoal que não estava no buchicho em que eu me situava.
EE – Você acredita, então, que havia panelinhas muito fechadas dentro do cinema brasileiro, que não se comunicavam?
CR – Como hoje. Que eu saiba, não se comunicavam. Lembro que havia um grau de competitividade incoerente. Fora do Brasil, até as produtoras concorrentes são simpáticas entre si. Aqui, farinha pouca, meu pirão primeiro. O elo de ligação que há entre Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados é o sindicatos dos técnicos. Em São Paulo é o SINDCINE, aqui é o STIC. O sindicato promove os encontros entre os técnicos, acontece uma certa interação. Mas, até onde eu sei, existem os grupelhos. Aquelas oligarquiazinhas que se autopromovem, que ganham editais. Não vou dizer que as produtoras do Rio, onde moro, sejam desligadas umas das outras, totalmente inimigas ou distanciadas, mas existe um grau de competição que não acho saudável. O cinema teria muito mais chances de sobreviver se houvesse cooperação. Se você tem um público, eu vou no rastro do seu. E se o meu tiver mais ainda, melhor ainda.
EE – No final dos anos 70, você chegou a trabalhar em filme do James Bond. O “Moonraker”, de 1979...
CR – Eu tinha um amigo, o Estanislau, que me chamou para uma “décima-quinta” assistência de direção. Meu nome não está nem nos créditos. Eles chamavam as pessoas para controlar a figuração, era um escalão de terceira linha que ia para o povo com o rádio. Trouxeram tradutores de espanhol: porque aqui no Brasil se fala espanhol, obviamente [risos]... Foi uma experiência interessante, o primeiro filme de vulto em que eu pude assistir ao processo de produção. Era um tipo de cinema que até hoje não colou no Brasil. Grandes produções, com grande investimento de dinheiro. Não vou citar nomes porque as pessoas estão aí. Filmes que custaram oito milhões e tem cara de oitocentos mil, como disse recentemente o Kleber Mendonça Filho e eu acho corretíssimo...
EE – “A Serpente”, da Magnus, veio no início dos 80.
CR – A Magnus tinha uma tremenda estrutura, estúdio de trezentos metros quadrados, proteção acústica. O melhor estúdio do Rio de Janeiro, competindo com a Tycoon da Barra da Tijuca. No “A Serpente” eu fui assistente de câmera do Dib [Lutif], de quem eu tenho as melhores recordações. Rigorosíssimo, exigente e, se não pudesse exigir, ele sabia como conduzir a coisa. A direção do “A Serpente” era anárquica. Gastou-se uma fortuna em cenários. Nunca vi o filme, me disseram que conseguiram montar. Na época, quem estava montando era o [Antonio] Sarmento, o montador da casa, junto com o Beto Valadão. Não sei se foi o Sarmento que concluiu. Reza a lenda que o filme era “imontável”.
EE – E o “Viagem ao Céu da Boca”, o primeiro filme brasileiro de sexo explícito? Dirigido pelo Roberto Mauro, que tinha uma trajetória extensa no cinema popular...
CR – A trajetória do Roberto Mauro é interessante como realizador. Dirigiu “As Cangaceiras Eróticas”, “A Ilha das Cangaceiras”, com a esposa dele como cangaceira também. Ele tinha esse lado empreendedor. Lembro bastante do “Viagem ao Céu da Boca”, o primeiro filme pornô a ser rodado no Brasil. Erótico, pesado. Resolveram fazer o filme com esta intenção.
EE – Fala um pouco sobre os bastidores...
CR – Tinha acabado de passar “O Império dos Sentidos” no cinema Palácio, de Copacabana. O Jece Valadão chegou um dia e disse: “Se pode aparecer o pau do japonês, pode aparecer o pau do brasileiro, que é bem maior do que o do japonês!” [risos] Esta foi a fala literal. “Por que galã brasileiro tem que ser louro de olho azul? Galã tem que ser como eu. Moreno, de cabelo carapinha!” Você vê que o Jece era um cara de visão. Podia ter vários defeitos, mas era um cara de visão. Contratou o Roberto Mauro. Outro dia até me ligaram do STIC: “Tem um cara querendo falar com você, o Older Costa”. O Costa foi o diretor de produção.
EE – E a escolha do elenco?
CR – Escolheram algumas profissionais da noite. Havia chegado de Paris a Ângela Leclery, um travesti. O pessoal saía de madrugada, chegava com olheiras, de tanto assistirem aos shows na [rua] Duvivier. Chamaram um garoto que, se não me engano, o nome era Eduardo ou para quem deram o nome artístico de Eduardo Black. A menina entrou na história depois, de paraquedas. O Costa estava comprando tecidos no Largo do Machado e o bas fond de cinema gosta de virar cantador, jogar um papo. “Quero seis metros de tecido e... negócio é o seguinte: eu sou produtor de cinema, trabalho com o Jece Valadão, tenho uma parada legal pra gente. Não quer fazer um teste de atriz?” E a garota topou, era filha de um porteiro da rua do Catete. Novinha, dezenove anos. Apareceu no estúdio com o noivo. Um garotão, bonitão.
EE – Foi averiguar o ambiente...
CR – O que fizeram? Deixaram a garota ensaiando, deram um porre no cara, que terminou o noivado com a menina dali a três dias, quando percebeu o que era. Teve teste, inclusive. A menina pagou um boquete, para ver se conseguiria repetir no filme. Ela também topou. Pagaram um cachê, não lembro se bom ou normal. O fotógrafo de cena era o Paulo Jabur, ex-marido da Stellinha Valadão. Eu fazia assistência de câmera, o diretor de fotografia era um eletricista da Magnus, o Vitor [Neves]. Havia um operador de câmera, o Vicente. Usamos duas câmeras, uma Mitchell antiga e uma Arri. Filmamos na Avenida Brasil, ali no Caju, para aquelas externas de passarela. Na Magnus foi praticamente 80%. E numa casa na Barra, que o Jece conseguiu de um amigo. Aparece o frontispício da casa, as árvores. Formávamos um grupinho à parte: eu, Stella e o Paulo Jabur.
EE – Você conseguia dialogar com eles. Era uma espécie de “conselho ético” [risos]
CR – [risos] É, conseguíamos conversar. E a gente aprontou muito... O Eduardo Black, coitado, fazia espetáculo a noite inteira com duas ou três mulheres e tinha que comparecer de manhã. Chegava com um abacate para melhorar a performance. Os cenários foram do Seu Nézinho, um cenotécnico que virou cenógrafo. As coisas eram assim. O concunhado da vizinha fazia figuração. Teve até uma passagem engraçada: o cara começou a brochar. Convocaram um técnico de efeitos especiais, para fazer uma piroca de plástico e incorporar à do negão. Era encaixável... Fizeram uma de silicone com um arame que passava por baixo do saco e acabava na bunda com um pompom rosa. O diretor de arte era o Carlos Prieto, maquiador....
EE – [risos] Que adorava o babado, por sinal...
CR – [risos] Era com ele mesmo. Eu e o Paulo chegamos para os eletricistas, que eram negros também: “Olha, o Jece Valadão pediu, na encolha, para avisar a vocês que ele está procurando um dublê de corpo. Quem julga se é parecido, se tem compatibilidade, é o Prieto.” Eu sei que passaram algumas horas e dali a pouco entra o Prieto na sala de produção: “Deus meu! Não sei o que está acontecendo! Eu entro no banheiro, botam aquelas jebas pra fora! Eu não sei o que é isso!” [risos]
EE – [risos]
CR – [risos] A gente aprontava, fizemos várias dessas... Aliás, pensei em uma história que eu gostaria de desenvolver, “Amor e Bunda”. Sobre o cinema erótico e de sexo explícito no Brasil. Não que eu fosse fazer um filme de sexo explícito, mas aproveitar essas mil histórias. Por exemplo: eu fui o introdutor, não literal, do esperma artificial no cinema brasileiro, pelo menos neste filme. Um misto de goma de araruta com maisena para dar a mescla e a consistência exatas... O problema é que o “Viagem ao Céu da Boca” parou na censura.
EE – Dois anos. Vocês sabiam que estava rolando o “Coisas Eróticas” em São Paulo?
CR – Talvez os produtores soubessem. Eu, não. Aliás, eu faço uma análise paralela: os militares já estavam em uma fase crítica, a nossa dívida externa era cavalar, a Abertura era praticamente certa. A pornografia, como as drogas e tudo o mais, em um sociedade cristã, crédula e ignara como a nossa, sempre foi válvula de escape. Deve ter havido conivência do governo militar para a liberação do filme pelos juízes, nos tribunais. O fato é que o “Coisas Eróticas” foi o pioneiro em exibição pública. O “Viagem ao Céu da Boca” foi o pioneiro em realização. Por uma questão de meses.
EE – Às vezes confundem e falam besteira. Citam o “Coisas Eróticas” e nem sabem da existência do “Viagem”...
CR – E essa época, 1981, foi o boom do cinema pornô. Todo mundo ia assistir, até as minhas amigas do clube de montanha. Ver um filme pornô era um ato de coragem. As meninas se disfarçavam, colocavam touca. Em seguida vieram os filmes suecos, considerados de educação sexual e que não eram. Tremenda mentira, eram filmes de sacanagem mesmo. A gente tem que diferenciar o que é cinema erótico, cinema pornô e cenas eróticas dentro de um filme. No cinema erótico, o sexo não é um fim objetivo. “Ken Park” tem cenas de sexo explícito. É um filme pornográfico? Não, ele se concentra na trama. Veja “O Anticristo”: nos primeiros minutos aparece uma penetração...
EE – Passamos agora para o Afrânio Vital: “Longa Noite do Prazer” e o “Estranho Jogo do Sexo”.
CR – Esses dois filmes para mim são absolutamente fundamentais. O Afrânio foi continuísta, assistente de direção, trabalhou com Walter Hugo Khouri, Carlos Hugo Christensen. Além do “Longa Noite do Prazer” e do “Estranho Jogo do Sexo”, voltamos a trabalhar juntos quando ele fez a continuidade no “Pedro Mico”, do Ipojuca Pontes. O Afrânio tem uma formação de cinema empírica e teórica. Um estudioso que soube aprender cinema. E esses dois filmes são heroicos. Heroicos! A gente almoçava no Geneal [antiga carrocinha de cachorro-quente], que resolveu dar um sanduíche para cada membro da equipe. Não foi brincadeira. O produtor era o Reinaldo Cozer, sócio do Afrânio, na Aleph Filmes. Não sei que história os dois tiveram depois, acabaram se afastando. Mas o fato é que esses dois filmes são heroicos. Pegaram financiamento em banco, entraram com apartamento. Um negócio louco, acreditando nos filmes. Sofreram todos os preconceitos que podem sofrer os independentes. Para mim, uma verdadeira escola do que é trabalhar com poucos recursos. Trabalhar inteligentemente.
EE – Dá um exemplo. Além do almoço na Geneal.
CR – O Afrânio tinha uma capacidade rápida de solucionar problemas. Não tem a lancha, não tem o automóvel, então pega um patinete. Se você olhar o “Longa Noite do Prazer”, ele tem um apelo erótico porque, se não tivesse, não iria nem para o cinema. Tem até a história do cinema na [rua] Senador Dantas. O dono teve que chamar a polícia porque nego estava irritado, depredando tudo. Queriam ver a Jussara Calmon trepando e o filme não tem sexo explícito.
EE – Jussara, a estrela do “Coisas Eróticas” e que está no “Longa Noite” e no “Estranho Jogo”. Além dela, o “Longa Noite” também tem citação de Augusto dos Anjos e você, inclusive... [risos]
CR – [risos] Eu de ator, inclusive, em uma cena. Se eu ler o roteiro hoje, talvez até me surpreenda, mas acredito que não foi seguido à risca. Não havia como. Você tinha que fazer um filme, na base da porrada, do esforço, do sacrifício. Depois o Afrânio e o Reinaldo fizeram o “Estranho Jogo do Sexo”, acho que para pegar o vácuo. Teve um lançamento legal na Colômbia, na Venezuela, na Argentina, e despontou. Se esses filmes foram pagos, não sei dizer. Aquela época era película, e a copiagem, a edição, a sonorização, custavam 30, 40% do valor de um longa. Imediatamente depois dos filmes, vêm as contas e eles devem ter passado um sufoco. Tinham ideia de fazer outros filmes, dois por ano. Um planejamento estratégico maior, visão de mercado, mas é o tal negócio: os exibidores fecham só com distribuidores e, enfim... Aí é um outro papo.
EE – Cristiano, eu queria falar um pouco sobre o “Dedo de Deus”. Um curta de sua autoria muito bonito, e que está disponível no Youtube, por sinal.
CR – No início, eu queria contar a história da conquista da montanha. Mas a conquista envolve pesquisa histórica, lidar com parentes. Até existe um filme de 1932, de quando subiram o Dedo de Deus vinte anos depois da conquista. Foi a segunda escalada e puseram escada de ferro, subiram um padre, rezaram missa. Um cinegrafista filmou e as imagens estavam de posse de um dentista. Acharam que valia uma fortuna, não me cederam as imagens, dificultaram as coisas. Aí cheguei para o Roland Henze, disse que conseguiria fazer um curta lá, que poderíamos ganhar o prêmio da Concine. Pagavam trinta mil cruzeiros. Custou cinco mil, baratíssimo, subi com o grupo de montanhismo do qual eu fazia parte.
EE – Então as duas protagonistas são do grupo.
CR – Sim, Valéria e Tereza, de dezesseis e vinte e seis anos. Eu quis fazer um filme mais lúdico sobre o alpinismo, mostrando que não se escala pelo risco. Não é para ficar dependurado. É um passeio, como o cara vai jogar futebol, o cara também pode escalar montanha. Tive a ideia de colocar as duas meninas, o que é inusitado. Muita gente imaginava que mulher nunca escalaria, que não seria capaz de escalar. E o Dedo de Deus é uma figura simbólica, enigmática, no imaginário. Tem escaladas fáceis e escaladas difíceis. Nós fizemos por uma das vias fáceis, mas impressionantes. O Roland topou, me deu quatro latas de negativo, de quatro minutos. Levei o negativo contado e tive que trazer o filme. E eu trouxe um filme. A história se passa em um dia, mas foram três. Subimos até o Polegar, ficamos uma noite até o nascer do sol, fizemos a escalada, voltamos, dormimos e no dia seguinte chegamos ao cume. Meses depois, o Roland conseguiu uma carona de helicóptero com o Departamento de Estradas, o DNER. E aí eu fiz as cenas aéreas. A gente se comunicava por rádio, as meninas escalaram com mais dois amigos.
EE – Aquela parte em que estão lá em cima e aparece a estrada embaixo...
CR – É, exatamente. O Roland impôs a narração do Walmor Chagas, que deu uma certa caretice ao filme. Uma namorada minha escreveu o texto. O filme ganhou pelo exotique. Nós ganhamos esse prêmio de trinta mil, houve uma repercussão negativa da Veja, que sempre sentava o pau nos filmes brasileiros, independente de serem bons ou ruins. Em poucas palavras, chamou o filme de reacionário. Mas eles implicavam com o curta-metragem. Estavam baixando o cacete no curtas, podiam ser o que fossem, por causa da lei da obrigatoriedade.
EE – Que era uma coisa odiosa.
CR – A obrigatoriedade causou um tiro no pé. O John Houston dizia que poucas profissões no mundo conseguem reunir tantos canalhas por metro quadrado quanto o cinema. Aprovaram a lei de obrigatoriedade dos curta e os exibidores, que também tinham produtoras de gaveta, resolveram produzir. Chamaram lá os merdas do Beco da Fome. “Aí, quer ganhar dez merréis? Faz aí um curta-metragem.” Um cara, acho que o nome dele era Nilo Machado, tinha uma carreira interessante. Mas ele rodou um curta com a exibição de slides da mulher dele, que era professora primária de uma escola municipal. Havia bons curtas, mas eram diluídos por essa canalha escrota.
EE – Eis que, em 85, surgem as “As Aventuras de Sérgio Malandro”!
CR – “As Aventuras de Sérgio Malandro”! Uma esculhambação do cacete... [risos] Fui chamado para fotografar o filme, direção do Erasto Filho, que tinha feito o “Tudo Acontece em Copacabana”. O primeiro dele, que nunca vi, não faço idéia. Ele era amigo do Sérgio Mallandro. Amigo de infância, de colégio, não sei. O roteiro é uma das coisas mais alucinadas. O Erasto simplesmente não tinha nenhuma formação de cinema. Nada, nada, nada. Não sabia fazer. O negócio ali era ganhar baba, grana. Filmamos em 16 milímetros, para ampliar para 35, um recurso da época. Trabalharam como atores os amigos do Sérgio Mallandro. Um de São Paulo, horroroso, um cabelo deste tamanho, o Pedro de Lara. Algumas pessoas que faziam pontas nos Trapalhões também. Um anão, o Rolinha que interpretava o mago. Geravam efeitos no roteiro que eles não sabiam realizar na prática. Por sorte, muita coisa eu já dominava, pela minha experiência. Do tipo fazer uma pessoa desaparecer e aparecer.
EE – [risos] Efeitos especiais, sei...
CR – [risos] Banal... Efeitos especiais ao vivo. Dependia muito de mim, e não de quem havia concebido o filme. Extremamente estressante, acabei com um cálculo renal. Pra minha sorte, uma das produtoras me levou a um acupunturista. Abandonei o filme na última semana. A gente filmou uma parte em uma casa, na Barra da Tijuca. Alugaram e não sabiam de quem. A equipe foi para lá. Tinha piscina, dois andares, sobrado. Um assistente que não era assistente, mas amigo do Sérgio Mallandro, chamado Kibe, tinha um defeito na perna. Andava de moto com um cabo de vassoura na marcha e era dono de um Dodge Dart. O Sérgio estava casado com a Mary Mallandro, que não deixava ele ir à filmagem. “Mary, estou aqui ocupadíssimo. Vou trabalhar até tarde.” E a Mary não aparecia na filmagem. Eu tinha um eletricista e um assistente, que era filho do eletricista. Adolescente, coitadinho. Puxando cabo. Película. Era negativo de 64 asa, 100 asa. Barra pesada. Precisava usar muita luz, a gente trabalhando. Até que em um momento chegaram os verdadeiros donos da casa. Estavam viajando, não sabiam o que estava acontecendo. Tinha sido o caseiro quem alugou a casa...
EE – [risos]
CR – [risos] Aí parou tudo, acabou. O caseiro deve ter sido defenestrado. Não pudemos filmar na casa, que aparece no filme: a portaria, a piscina... Tem cenas que são de plano geral e o Sérgio Mallandro derrubando estante, virando mesa. Arruinavam com a casa, com o cenário, com os livros. Teve uma hora na praia em que o Sérgio Mallandro disse “ó, deixa comigo. Filma aí, filma aí!” E saiu. Vinha um cara cheio de sacolas, de panos, de barracas e ele “ahhhhhhh!!!” Deu um susto no cara, derrubou tudo. Aquilo não tinha sido planejado [risos]
EE – [risos]
CR – Uma poça d'água imunda, o carro passa e a água jorra. Isto estava no roteiro. Mas aí passa o carro e joga aquela água imunda mesmo, não era água fake [risos] Fomos em uma discoteca, só que era o dia em que a discoteca ia funcionar. O som ensurdecedor. “Filma aí, filma aí!” Um negócio de doido, era o cinema do descaralho total, sob o ponto de vista técnico, artístico.
EE – “Pedro Mico”, do Ipojuca Pontes vai em uma linha completamente diferente, na estrutura da Embrafilme...
CR – No “Pedro Mico” me creditaram como still e eu não fui o still. Fiz as cenas aéreas, porque o Walter Carvalho tinha caído recentemente de um helicóptero no Ceará, durante o filme do irmão dele, algo assim. Então não entrava em helicóptero de jeito nenhum. “Pedro Mico” tinha cenas de montanhismo e o Sanin Cherques, meu amigo, me indicou. Arranjamos um dublê, um ator negro, para fazer o papel do Pelé. Filmei as cenas da descida de rapel, de um apartamento para o outro na cobertura do edifício Chopin em Copacabana. Isso eu fazia brincando, todo final de semana, sem o menor problema. O Ipojuca era um cara de esquerda, hoje de direita. Um reacionário, que renega todo o passado. O irmão era um cara formidável, o Paulo Pontes, autor, diretor, ex-marido da Bibi Ferreira. O Ipojuca sempre foi uma sombra. Fez o filme, que é uma merda, insuportável. Todo mundo que participou acha isso. Uma estrutura de produção cara, o Pelé estrelando, dublado pelo Milton Gonçalves.
EE – Às vezes, o pessoal não sabe, mas isto aconteceu antes da participação do Ipojuca Pontes na era Collor. Como foi a estreia do “Pedro Mico”?
CR – No Ricamar, em Copacabana. Não tinha público. Boicotaram o filme, não havia ninguém, só meia dúzia de pessoas. O Sanin Cherques virou-se para mim: “Pô, Cristiano, vamos ter que arranjar alguém...” Chamávamos as pessoas na rua. “Você não quer assistir a um filme agora? É com o Pelé, ele está aí no cinema!” Respondiam: “Ah, vai tomar no cu!...”
EE – [risos]
CR – [risos] Quem podia entrava no cinema. Mas imagina quem? O povo da rua. A equipe e o elenco subiram para o mezanino e conseguimos colocar umas oitenta pessoas. O público espinafrava, dava gargalhadas. No filme, chamaram o Oscar Niemeyer para fazer o projeto de um barraco. Bacana, mas acontece que o Niemeyer nunca foi cenógrafo e desenhou um quadrângulo de 3 por 3, reproduzido no estúdio. Ali dentro botou uma cama, uma pia. Não é assim. Quem já entrou em barraco sabe que não tem aquela proporção.
EE – Aquela métrica, aquela linearidade modernista...
CR – É tábua na parede, vaza luz de fora. O Sanin me contou na época passagens maravilhosas da filmagem. Estavam subindo o Morro dos Cabritos, com a Tereza Rachel, para a chegada dela no barraco. Construíram a parte externa do barraco, o interior foi filmado no estúdio. A Tereza Rachel não conseguiu subir as escadarias, no meio da comunidade do Morro dos Cabritos. Aí os eletricistas, para quebrarem o galho, fizeram uma maca: dois sarrafos de madeira e uma cadeira. Pregaram a cadeira e...
EE – Uma coisa meio Brasil Império...
CR – [risos] Brasil Império... Só que esqueceram o seguinte: na escada, o que está na frente tem que levar a maca lá embaixo. O que está atrás tem que levar a maca lá em cima. Se não, vira. E ali a pirambeira é mais de quarenta e cinco graus. Eu sei que a Tereza Rachel começou a gritar e de repente ouviu-se “plac!” Ela caiu e foi um tal de nego segurando pela perna... Vi trechos do filme e me dá um negócio na garganta, não consigo. Muito ruim. Então não sei até hoje se há cenas dela em cima do morro. Cogitaram levá-la de helicóptero...
EE – E finalmente chegamos ao “O Quinto Macaco”, em 89...
CR – Produção do Menahem Golan, da Cannon Filmes. Depois tiraram o nome porque a Canon, da indústria fotográfica entrou com uma ação. O diretor foi o Éric Rochat, que tinha feito o “Histoire d'O” alguns anos antes, com sucesso. Veio com um produtor português para o Brasil, para fechar negócio com a LC Barreto. Fui convidado pela Maria da Salete, para ser assistente de direção. O Ricardo Favilla era o diretor assistente. Depois você me explica, na carreira do cinema, qual é a diferença [risos] Eu era o assistente de direção que fazia a ordem do dia, toda a parte burocrática pesada. Até chegar em Paraty o Vicente Amorim, já no final do filme, faltando uma ou duas semanas. A primeira carteira assinada que eu tive no cinema, um stress profundo, me desagradou muito. Eu via alguns profissionais ralando, fazendo o possível para realizar o filme, e outras pessoas se drogando abertamente. Saíam nas madrugadas para pegar as meninas de Paraty. Faltava profissionalismo. Hoje em dia encaro de outra forma. Simplesmente me afasto. Na época, eu enfrentava e esse enfrentamento foi desgastante, do ponto de vista psicológico.
EE – Nas produções do Carlo Mossy, o clima foi outro? Você participou da fase pornográfica do Mossy, no “Giselle H.”
CR – Não fiz “Giselle H.”, participei da fase pornô, mas desse eu não participei. Conheci o Mossy por tabela, porque era sócio do Victor di Mello e eu conhecia a Dilma Lóes, ex-esposa do Victor. Filmamos juntos o “Banana Prende, Mamão Solta”, uma peça infantil dela. Quem me convidou para o filme do Mossy foi um amigo meu, o Jorge Mansur. Para gravar em vídeo, que na época era precário: U-matic.
EE – Em que ano?
CR – Talvez início da década de 90.
EE – Época da “Giselle H.”. Talvez você não saiba porque quando estavam filmando era o Mossy no set, mas quem assinava era uma moça de dezoito anos, recém-chegada de Paris [risos]...
CR – [risos] Para você ter uma ideia, eu nunca vi esses filmes. A minha relação era estritamente profissional, de entregar a fita gravada. Eu fotografava. Começou quando o Mossy colocou um anúncio nos jornais, pedindo atores pornográficos. O escritório era em cima do Bob's, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A fila ia até a Avenida Atlântica, trezentas, quatrocentas pessoas.Tinha uma atriz pornô na recepção da produtora, um quarto e sala pequenininho. O Mansur filmava num estilo reportagem, o Mossy entrevistava e escolhia os tipos mais exóticos. Manco, cego, perneta, sei lá. Débil mental, mulheres muito obesas. “Olha, nós estamos fazendo um teste remunerado. Vocês vão receber direito de imagem e, se forem aprovados, começamos o filme.” Mentira. Aquele já era o filme. Tiravam a roupa e fodiam. O Mossy realizou um filme com esse material, mandou para Paris e virou um sucesso. Era o início do pornô-realidade. Não eram aquelas mulheres glamourosas, americanas, aquele sexo que parece de plástico. Eram de carne mesmo. O Mansur então se empolgou, e aí eu entro na parada a convite dele.
EE – Por quê?
CR – Porque o Mossy queria filmar com duas câmeras e eu tinha as duas câmeras. Nesse ínterim, mudou o formato do video, nós fizemos em Super VHS, uma bitola menor, o custo lá embaixo. O diretor de produção era o Geraldo Mohr, um alemão, que tinha trabalhado comigo no “Viagem ao Céu da Boca”. O Geraldo mandou vir uma atriz de Portugal. Brasileira, prostituta profissional lá. Rodamos um filme inteiro em uma cobertura, na [Avenida] Vieira Souto, residência de um cara que era biliardário, senhor de idade. Só trabalhei nesse da Vieira Souto, que teve cenas em toda casa e no escritório. Uma das frases mais pitorescas do cinema pornô eu atribuo ao Mossy. Tinha uma trepada na janela, e ele aproveitava os intervalos para sugerir as falas. Saiu-se com essa: “fala, minha filha, fala: eu adoro dar o cuzinho na janela...” [risos]
EE – Seu nome consta nos créditos?
CR – Não sei. Não lembro nem de ter pedido para não constar.
EE – Você se sentiu mal de participar de filmes pornôs? Afinal, você estava fora da sua realidade de hippie montanhista...
CR – Olha, o negócio é o seguinte: eu tive uma educação alemã. Aos quatorze anos, minha mãe me deu um livro de cabeceira, editado em Portugal e escrito pelo Wilhelm Reich em 1916, se não me engano. Chamava-se “Combate Sexual da Juventude”. De iniciação sexual, para a juventude comunista alemã. Eu tinha uma liberdade muito grande em casa. A gente ia para Curitiba, nas férias da família, e tomávamos banho de piscina pelados. Para mim, ficar pelado nunca foi problema. A nudez nunca esteve ligada à excitação sexual.
EE – No seu primeiro longa-metragem, o “Outro Olhar”, você teve um cuidado extremo em relação ao sexo. Até mesmo em relação ao corpo da protagonista...
CR – O tema fundamental do “Outro Olhar” é o romance entre a menina adolescente e o homem adulto sequestrado. Então, o que eu penso? O público-alvo deste filme é a garotada de quatorze anos para cima. Escolhi um funkeiro, o MC Martinho, para fazer o tema musical. Ele abre e fecha o filme, tem uma visibilidade muito grande nas comunidades, é conhecidíssimo. Tão alijado quanto o nosso cinema. O Martinho não toca nas grandes rádios, não vai para a televisão. Se eu faço um filme com nudez ou cenas tórridas de sexo, a censura é dezesseis anos, dezoito. Eu perderia imediatamente essa fatia do público. Até coloquei uma cena, para justificar a droga. O cara grita com o outro: “você vai queimar isso?” Se não coloco, é apologia às drogas e a indicação de idade vai lá em cima. Para segurar os quatorze anos, isto foi estudado no roteiro. Em um filme para adultos, agora no futuro próximo, já vou abrir um pouco mais esse leque. Acho que o sexo explícito não se encaixa no perfil do espectador brasileiro em geral. Eu tenho a preocupação de realizar um filme que seja assistido. Não quero que seja visto pela minha família e pelos meus vizinhos do prédio.
EE – O “Outro Olhar” teve consultoria do Alberto Salvá.
CR – O Salvá disse coisas significativas que, de fato, eu alterei no roteiro. Uma dica foi bacana: não colocar data no filme, porque ele precisa ser atemporal. Além do Salvá, o Francisco Chao me auxiliou, me ensinou como se sequestra alguém. Tive que entender esse modus operandi. Por exemplo: eu passei o filme para uma plateia de alunos de segundo grau de colégio estadual em Nilópolis. Cento e sessenta alunos assistiram ao filme em duas sessões. A sala lotada. Para mim, o que foi muito satisfatório? Eles entenderam a história de fio a pavio. Eles conhecem o código, sabem o que acontece em um cativeiro, faz parte da cultura deles. Ouvem falar, discutem, conhecem indiretamente algum bandidão. O filme foi plenamente compreendido pela garotada que é o meu público-alvo. Provavelmente, vou fazer muito mais sucesso em Duque de Caxias do que em Portugal, aonde também será exibido. Em Portugal talvez seja uma coisa exótica, um pouco de miséria, de favela movie. No Ver Cine, na Baixada [Fluminense], vai ter um grau de afinidade muito maior com a plateia. Disto não tenho a menor dúvida. E foi esta a intenção, porque eu já sabia dos problemas que iria enfrentar na distribuição e na exibição.
EE – Pouco antes você havia dirigido um curta, o “Enquanto Faço As Unhas”. Foi uma espécie de preparatório para o longa? O produtor, por exemplo, é o mesmo.
CR – Foi um preparatório, sim. O produtor é o Saulo Moretzsohn, mas a produção, minha gente, é doméstica. Não é só o produtor que entra com a grana. Paguei os dois filmes, o produtor executivo fui eu e está lá no créditos. Filmes muito baratos, porque estava exercitando o que aprendi no cinema institucional: trabalhar com muito pouco. “Enquanto Faço As Unhas” foi filmado aqui em casa. Aquele salão de costura é a entrada, cenografamos aqui. Minha mulher, que nunca trabalhou em cinema mas é engenheira de produção, ajudou no planejamento. É o tipo de formação que o cineasta não tem. Ele vai aprender na prática, tomando porrada e desperdiçando dinheiro. “Enquanto Faço As Unhas” custou cinco mil reais. Paguei alimentação e condução para os atores e equipe técnica. Para você ter uma ideia: eu fiz o blimp subaquático, para as cenas embaixo d'água. Como eu tinha o blimp, usei no longa. Gerei aquela cena embaixo d'água porque acho que dá um molho, cresce um pouco o filme, em termos de produção visual. Quem sabe, um produtor profissional ache que custe, pelo menos, três mil reais por dia. Você tem o operador de câmera, aluguel do blimp, aluguel de câmera, caminhão gerador. E nós filmamos em Itacoatiara, com um blimp feito com cano PVC de esgoto, uma câmerazinha HV20. Não é nem Full HD.
EE – Cano PVC de esgoto?
CR – E no “Outro Olhar” a piscina estava suja, favoreceu, porque parece que eles estão no mar. Pau na burra, é saber fazer. A fabricação desse blimp me custou cem reais, se tanto. Mais caros foram os vidros, que cortei redondos, para poder encaixar no fundo. Eu tenho aqui em casa uma oficina. Se você olhar as fotos nos dois filmes, vai ver que até o dolly é doméstico. Fiz um carrinho de skate, uma prancha de madeira e uns trilhozinhos de alumínio. Não deixa nada a desejar a um carrinho que eu tivesse alugado da Ted, da Quanta. Funciona tal e qual. Só que custou cinquenta merréis. Essa é a diferença, por isso é que o curta custou cinco mil reais. O mais caro foi a alimentação, mil e tantos. A gente levava o pessoal para comer em restaurante legal, a Débora às vezes preparava a comida para oito, dez pessoas.
EE – Você me contou que existe um projeto de adaptar a biografia da Jussara Calmon para o cinema. O que vocês já conversaram sobre isso?
CR – A Jussara foi à pré-estreia do “Outro Olhar”, que eu fiz no no MAM, para amigos. No final da exibição, ela pegou a biografia e me entregou com uma dedicatória. “Cristiano, pensa no filme. Eu vou cobrar isso de você.” Botei o livro debaixo do braço, fui ler. Conta a história dela desde criança até o casamento com um armador norueguês. A Jussara mora hoje na Noruega, muito bem sucedida, tem uma escola de teatro e dança. Como ela chegou a mim através do “Outro Olhar”, por uma questão ética eu também chamei o Saulo para participar do projeto. A ideia é a gente tentar uma co-produção Brasil-Noruega. Tentar um incentivo aqui no Brasil, um incentivo na Noruega, filmar lá e aqui. Fazer um filme de ficção sobre a Jussara Calmon. Filme de época, com a história da mãe, da família, a vinda para o Rio de Janeiro. Ela viveu uma trajetória muito peculiar, esteve presa, por exemplo. O filme tem conteúdo. Acabaríamos e começaríamos na Noruega.
EE – Agora pense em um panorama do cinema brasileiro atual. O que você considera correto ou errado.
CR – A resposta tem que passar pela questão da exibição e da distribuição. O panorama atual do cinema brasileiro está muito atrelado à nova tecnologia. Acabou o negativo, muito pouca gente está filmando em película e isso reduziu muitíssimo o custo. Você pode filmar até com um celular. O resultado que aparece na tela pode funcionar dramaticamente. Então, a versatilidade de produção atual é muito grande, e a um custo muito acessível. Isso veio a favorecer aquele produtor pequeno. Por outro lado, é uma política neoliberal, em que se tem a democratização das informações de uma forma nunca antes vista. Mas as pessoas estão pensando cada vez menos. Na minha infância, havia poucos recursos, mas se pensava. Estão esquecendo que cinema é uma profissão em que você depende de formação erudita, técnica e prática. Normalmente, o cineasta brasileiro é empírico. Aprende fazendo ou vendo o outro fazer. Isto nos coloca distante de países mais pobres, como Romênia, Bósnia, que têm filmes muito melhores do que os nossos.
EE – O que você acha da sua participação no cinema brasileiro?
CR – Eu estou, na realidade, realizando um sonho. Quando saí do emprego na universidade, recebi uma grana legal e estou podendo me sustentar durante um determinado período. Fiz o “Outro Olhar” com cinquenta mil reais. Para a maioria das produções brasileiras, é simplesmente impensável. Tive uma equipe razoável, paguei todo mundo, ninguém trabalhou de graça. E, no entanto, o custo foi muito aquém dos baixos orçamentos. Estou discutindo, sem modéstias, uma questão de resultados. Isso conta com a minha competência técnica, na medida em que eu aprendi a trabalhar com pouco. Esse longa-metragem, não é mentira, eu fiz com quatro lâmpadas convencionais. Lâmpada que você compra em supermercado, de duzentos watts. Um refletor de seiscentos e cinquenta watts e dois refletorezinhos de luz fria que eu montei em casa, com seis lâmpadas. Com isto, fotografei um longa-metragem. Normalmente, é impensável.
EE – Um esquema tão diferenciado de produção.
CR – E isto é muito importante: nós que produzimos com a grana do nosso bolso, somos mal vistos pelos produtores nossos concorrentes, pelos distribuidores e pelos exibidores. Estou falando de um núcleo, porque existem os independentes que fazem filmes “a Bangu”, sem o menor cuidado técnico. Fazemos filme barato, sem nenhum incentivo. Então ficam com cara de tacho quando gastam oitocentos, um milhão, dois milhões, e conseguem um acabamento técnico com o mesmo grau de sofisticação. Tive uma conversa com um produtor, que me respondeu: “Filmes para mim só interessam com orçamentos a partir de quatro milhões”. Por que quatro milhões? Porque ele ganha seiscentos mil. Filme de cinquenta mil não interessa porque ele não ganha na bilheteria. Ele ganha no processo de produção, nos incentivos estatais, na Oi Futura, na Petrobras...
EE – E na Lei Rouanet.
CR – E na Lei Rouanet. É ali que ele ganha dinheiro. Obviamente, há exceções, eu estou generalizando. Mas a grande maioria age assim. Com a grana de um filme você poderia fazer outros quatro, cinco filmes. Eu te digo com absoluta franqueza de alma: é um sonho diletante. O fundamental é como eu fazia no montanhismo. Por que você pratica o montanhismo? Não se ganha porra nenhuma praticando o montanhismo. Você arrisca a sua vida, você passa por dificuldades, você cansa, passa por enfrentamentos climáticos e atmosféricos. Peguei frio, subi o Elbrus na Rússia, 30 e tanto graus abaixo de zero. Por que isso? Porque você tem um objetivo pessoal. Ou talvez você precise de um aporte psicológico para continuar vivendo. Eu sou agnóstico, então não acredito em vidas futuras. Eu acho que, de repente, estou fazendo o que eu gosto. E é a única coisa que eu sei fazer hoje. Se fosse há trinta anos, teria outras opções. Iria fazer antenas de novo, tentar pilotar de novo. Mas hoje eu só tenho o cinema.
Por mais de trinta anos, Cristiano Requião também se equilibrou no cinema popular e nas produções de alto orçamento. Viajou pelos extremos, encaixando até filme de James Bond no currículo. Comandado por Jece Valadão, participa do primeiro pornô realizado no Brasil: “Viagem ao Céu da Boca”, detido pela censura e liberado meses depois do “Coisas Eróticas”, de Raffaele Rossi.
Fotógrafo e diretor assistente, tentou o namoro com o Beco da Fome – no centro do Rio, aonde os técnicos se reuniam para abater ovos coloridos e tulipas de cerveja. O encanto não aconteceu. Aos olhos do garoto de classe média, hippie montanhista, o preconceito veio de onde menos esperava.
Nas horas vagas, consertou moviolas para Roland Henze, que lhe abriu as portas dos curtas-metragens. Nos anos 80, travou contato com o cinema underground de Afrânio Vital, a Embrafilme de Ipojuca Pontes e “Pedro Mico”, além dos “Giselle H.”, a famosa série dos explícitos de Carlo Mossy. Bateu ponto no mitológico “As Aventuras de Sérgio Mallandro”. E sobreviveu.
Os bastidores desses e de outros filmes são contados de peito aberto, demonstrando o conhecimento prático de quem sabe filmar com pouco. Se preciso for, usando cano PVC de esgoto para cenas debaixo d'água. Aos sessenta anos, Cristiano Requião estreia como diretor de longa-metragem em “Outro Olhar” e já emenda o projeto para adaptar a biografia da atriz Jussara Calmon. Em breve, nos cinemas.
ESTRANHO ENCONTRO – Cristiano, começando pelo final: por que só aos sessenta anos você dirigiu o seu primeiro longa-metragem?
CRISTIANO REQUIÃO – Decepção com a classe de cinema, com o pessoal que trabalha em cinema. Participei de onze longas-metragens, durante dez anos da minha vida, de 1978 a 89. Me decepcionei muito com as pessoas, com o trato social dentro do universo do cinema etc e tal. Então migrei para a área institucional, filmes de treinamento, filmes de grandes empresas. Petrobras, Kawashima, Montreal Engenharia Internacional, algumas que não existem mais. Assim fiz o pé de meia, consegui juntar alguma grana. Aliás, a experiência me favoreceu muito quando voltei ao cinema e aos filmes de baixo ou baixíssimo orçamento. Viajava com a câmera, três refletores, um assistente às vezes bom, às vezes não. Eu tinha que, sozinho, dirigir, iluminar, montar cenário. Viajava para Tefé, Urucu, Amazônia, sul do país, o diabo, e precisava trazer um filme na volta. Quando minha filha nasceu em 1993, parei com as viagens e parti para o mercado publicitário. Trabalhei com artes gráficas, editei livros sobre montanhismo, dei aulas em universidade, no curso de comunicação. Produzia peças publicitárias e os telejornais internos com os alunos.
EE – Interessante você falar em decepção. Foi reiteradamente? Desde quando?
CR – O último filme acabou se tornando o mais marcante nesse aspecto. “O Quinto Macaco”, com Ben Kingsley, direção de Éric Rochat, rodado em Paraty, produção executiva no Brasil. Eu não aceitava determinadas atitudes, queria fazer outra coisa da vida e não aquilo. Não estava na minha turma. Eu era montanhista, dormia cedo, acordava cedo. Começou a me incomodar. Muitas vezes até fui convidado para fotografar alguns filmes porque as pessoas podiam não gostar de mim, mas sabiam que eu daria conta, me aturavam. Acabou que comecei a me tornar, também, uma pessoa difícil. Extremamente exigente, intempestivo, agressivo.
EE – A diferença entre o sonho do cinema e a realidade. As coisas como elas são...
CR – Exato. Engraçado que aos dezesseis anos fui ao Roxy, em Copacabana, ver “Os Aventureiros”, “Les Aventuriers”. Estrelado pelo Lino Ventura e o Alain Delon. Formidável, vibrante, revi recentemente. Naquela hora descobri o que queria fazer da vida. O que me sensibilizou não foi a história propriamente, mas sim a capacidade de emocionar as pessoas. Com a linguagem cinematográfica, a fotografia, a música, o drama. Então decidi: é o que eu quero. Estudei em cursinhos de cinema, li muito, frequentei a biblioteca de Copacabana. Como abandonei a escola, sobrava tempo livre. Comprei uma câmera 8 milímetros, mais tarde Super-8. Aliás, eu tenho filmezinhos Super-8 com a Monique Lafond, minha amiga de adolescência. Nesse período, comecei no montanhismo e aí surgiu um hiato. Eu tinha uma vida familiar extremamente cáustica e o montanhismo abriu as portas para mim. Era a família que eu havia escolhido. Era aonde eu dividia o gole de água, o chocolate, dormíamos juntos, acampávamos.
EE – E como era a família de sangue? A original. Pai, mãe, irmãos...
CR – Extremamente rigorosa até a adolescência. Tenho ascendência alemã, sou praticamente filho único. Dois irmãos, hoje com mais de oitenta anos. Temporão, vinte anos de diferença. Um clima exigente, família conturbada. Meu pai era muito explosivo, participou da Revolução de 30, em um combate no sul do Paraná ou de Santa Catarina, o mais ferrenho, uma madrugada sangrenta. Ele tinha vários traumas dessa fase e não era de um posicionamento político bem definido. A minha mãe era pior do que alemã: era filha de alemães [risos]... Nasci em 1952, em São Paulo, por uma série de motivos. A família é toda do Paraná, a parte do meu pai sempre foi muito influente por lá, embora a gente não se veja há uns trinta anos. Vim para o Rio aos quatro anos de idade, aos quatorze já havia sido expulso de seis escolas, tive problemas disciplinares e resolvi parar de estudar.
EE – Faz sentido, com esse generation gap todo...
CR – E, parando de estudar, recebi o ultimato do meu pai: se não estudar, vai trabalhar. Fui trabalhar. Em uma agência de propaganda, que me deu a base excelente em fotografia. Standard Propaganda, uma agência de ponta, com as contas da Shell e outras. Fiquei no laboratório fotográfico, conheci fotógrafos que se tornaram meus professores, ensinaram muito. Até que passei a fotografar de maneira autônoma. Com dezesseis anos ganhava dinheiro mole, indo para as pracinhas. Levava o equipamento, fotografava as crianças. Naquela época era moda fazer poster. A gente cobrava uma grana, os honorários eram irrepreensíveis [risos]
EE – [risos] Imagino. As avós e mães adoravam esses posters...
CR – E com dezesseis anos, a minha primeira escalada. Na outra semana, o Dedo de Deus, a minha paixão. A Monique Lafond estava nesse grupo. Quase me ferrei, dezesseis horas de escalada, chegamos de madrugada. Escalei o Dedo de Deus mais de sessenta vezes, ao longo dos anos. E houve esse hiato, da minha vida pessoal e profissional, porque fiquei dedicado exclusivamente ao montanhismo. Uma coisa absolutamente neurótica.
EE – Dando aula? Você sobrevivia do próprio montanhismo?
CR – Eu não sobrevivia. Vivia numa miséria do cão porque meu pai não me dava um puto. Aos dezoito, me apresentei no exército, mas quando disseram que eu teria que servir, fugi [risos]
EE – [risos] Eu também fugiria... Com 18 anos, significa que você estava em 1970, no fino da ditadura...
CR – O fino da bossa... Viajei para a Argentina, escalei em Bariloche e em Ushuaia. Pico Olimpo de Ushuaia, se não me engano. Meu negócio era montanhismo e eu ligava isso ao cinema, filmando em Super-8. Até que fui preso, aos vinte e um anos, por ter fugido do exército. Foram me buscar em casa por ter desertado, anos antes. Estava almoçando, de sunga, tinha acabado de chegar da praia. Tocou a campainha, minha mãe atendeu e era um sargento. “Por gentileza, o soldado Requião”. Minha mãe: “Aqui não tem nenhum soldado Requião.” Eles: “Estamos aqui com uma ordem de busca.” Nessa hora minha mãe me avisou: “Você pode sair pela porta dos fundos, descer a escada, o pessoal está esperando lá embaixo. Como nunca viram você, passa e vai para a casa do seu primo, depois a gente resolve.” Mas preferi ir com o sargento, ver o que estava acontecendo. Tocaram o terror no trajeto até o Forte de Copacabana, dentro de uma Rural velha [risos]...
EE – [risos]
CR – “Aí, ó: o manjuba de veludo vai te conhecer na cela...” [risos] Ainda pensei que se eu pulasse de costas, entrava na água e o pessoal de coturno e fuzil não iria me pegar. Mas segui até o Forte de Copacabana, fiquei preso quatro dias. Havia as pessoas boas e as más. Um sargento me acordava com um balde de água, às cinco horas da manhã. Depois de quatro dias, tudo resolvido, fui intimado a servir. Acontece que, aos vinte anos, fiz um curso de cinema, no MAM. Não lembro se foi antes ou depois desse episódio, e demorou cerca de seis meses. Era coordenado pelo José Carlos Avellar, pelo Ronald Monteiro e pelo Cosme Alves Neto, então presidente da Cinemateca. Dava aulas o Walter Goulart, que fez o som do meu filme agora, o “Outro Olhar”. Além dele, acho que o Oswaldo Caldeira, o Lael Rodrigues e outros. A gente aprendia teoria de cinema em profundidade, um filme por dia, um livro por semana e um seminário na semana seguinte. Muitos filmes, seis horas de aula por dia. Posso dizer que aprendi 70% do que eu conheço de linguagem de cinema assistindo aos filmes no MAM, nessa época.
EE – Quem mais fez o curso com você?
CR – A Regina Machado, que me levou para lá, mulher do Cosme. Creio que também o Marcos Magalhães, que dirigiu o “Meow”, depois migrou para o Canadá. Cabeludão, gente boa pra caramba. Era uma turma bastante legal, e para mim foi excelente. Só que para entrar no mercado foi zero. Comecei a fabricar antenas de transmissão, me inscrevi em curso de pilotagem, morei no Equador por quase um ano, entre 75 e 76. Em 77, uma menina que eu namorava, me disse: “Cristiano, vai fazer o segundo grau.” Era o artigo 91 ou 99, não me lembro. Fiz as provas. Seis meses depois, as outras e o vestibular na Cesgranrio, para engenharia mecânica. Passei no vestibular, paguei o Darf. Quando cheguei na fila da matrícula, ela me perguntou se era isso mesmo o que eu queria. “Não... Imagina, não tenho o menor saco de ficar vindo aqui na faculdade.” “Ok, vamos sair da fila, mas agora você faz cinema de qualquer jeito” [risos]
EE – [risos]
CR – Aí entrei de cabeça. Procurei a ABD, Associação Brasileira de Documentaristas, conheci o Noilton Nunes, na Lente Filmes, aonde corriam as reuniões. Conheci também o Roland Henze, que produziu o meu curta “Dedo de Deus” e me chamou para consertar as moviolas dele. Com o Henze fiz assistência de câmera em “Confeitaria Colombo”, sobre a família Lebrão, dona da Colombo. Depois, o “Depravação”, em 79. Fotografado por ele, produzido pelo Roberto Valanci, dirigido pelo Élio Vieira de Araújo e filmado em Casemiro de Abreu. Apareceram trabalhos institucionais, junto ao Roland. Virei um assistente de caderno.
EE – A dupla com o Roland durou bastante tempo.
CR – O Roland me deu todo o modus operandi de trabalhar com as câmeras de cinema. Eu já conhecia máquinas fotográficas. De chapa, de filme, todos os formatos. Mas cinema, não. Engraçado que ele me perguntou se eu conhecia a Arriflex 2C. “Claro! É minha amiga íntima! Lógico!” Saí desesperado, fui à Mega Filmes do Jorge Veras, uma pessoa maravilhosa, e ele me deu um catálogo da câmera. “Olha, não tenho tempo para ensinar, mas dá uma olhada.” Coloquei o filme pela primeira vez dentro da câmera na locação, cinco minutos antes de começar a rodar. Deu certo [risos]
EE – [risos] E viva a criatividade...
CR – Aprendi vários macetes, aprendi muito com o Roland. Principalmente a disciplina. Acordar na hora certa, tudo aquilo que depois eu bati de frente, até na Magnus Filmes, para onde me transferi em seguida, em 82.
EE – Estamos em pleno Beco da Fome. Um lugar estratégico no cinema popular brasileiro, aonde vários técnicos se reuniam. Conta algumas histórias de lá...
CR – Não cheguei a frequentar o Beco da Fome. Fui algumas vezes, na [rua] Álvaro Alvim [centro do Rio], mas era tão baixo astral que não frequentei. Talvez na Líder [no bairro de Botafogo], o pessoal fosse mais profissional. No Beco da Fome rachavam um cafezinho, dividiam um biscoito Extra.
EE – E você era um playboy de Copacabana.
CR – Eu era um garotão de Copacabana. Quando aparecia no Beco da Fome, me discriminavam completamente, nego nem falava comigo. Eu tentava chegar, “e aí, como é”, tal, e não tinha resposta. “Não te conheço”. Um negócio escroto, escrotíssimo. Talvez pelo meu physique du rôle, não sei. Alguma coisa acontecia ali. Quando trabalhei na Magnus Filmes, fiquei apenas na Magnus. O Jece Valadão me deu uma guarida formidável. Aliás, uma pessoa ímpar: você podia confiar em tudo o que ele dissesse, jamais no que ele assinasse. Aprendi essa máxima. Comigo o Jece foi de uma correção absoluta e trabalhei na Magnus durante dois anos, de 81 a 83. Na Magnus, havia uma empresa de propaganda que, se não me engano, era a JC Produções, para a área de comerciais. E uma empresa de cinema. Vi coisas do arco da velha.
EE – Do tipo?
CR – Do tipo cobranças, quem me contou foi uma secretária. Chegou uma turma do Vale do Canaã, por exemplo, aonde o Jece tinha filmado anos antes, com a Rossana Ghessa. Cobraram na base da arma, seguraram o Jece pelo colarinho: “Escuta, assina um cheque agora.” Ele assinou o cheque. “O meu amigo vai descontar. Se não tiver fundos, eu te mato”. “Opa, não, não... Espera aí, espera aí... Vou assinar outro cheque aqui...” [risos]
EE – [risos]
CR – E ligou para o banco: “Meu grande amigo! Escuta, libera aí, libera aí! Pelo amor de Deus, libera esse cheque...” O cara saiu, trouxe a grana, agradeceu, entraram no Dodge Dart e foram embora. Também participei da campanha política do Jece. O slogan não oficial era “ladrão por ladrão, vote em Valadão” [risos] Formidável! Eu tive uma escola na Magnus. E depois que li o livro do Roberto Freire, “Ame e Dê Vexame”, a minha vida deslanchou. Eu era contido, tímido, e comecei a me expor. O ambiente de montanha é muito peculiar. Se você viver apenas no ambiente de montanha, você se transforma, trata as pessoas com outro formato relacional.
EE – Estando no Rio, vocês tinham contato com a Boca do Lixo, em São Paulo?
CR – Não.
EE – Eram mundos isolados?
CR – Completamente. Ouvia falar, sabia da existência, mas nunca fui. Eu me lembro que aconteceram fases cruéis, como no final da Embrafilme, em que vários cineastas conhecidos, como o Carlos Reichenbach, estavam apelando para os filmes eróticos. Usavam codinomes para sobreviver. Conhecia os filmes do Walter Hugo Khouri. Mas era um pessoal que não estava no buchicho em que eu me situava.
EE – Você acredita, então, que havia panelinhas muito fechadas dentro do cinema brasileiro, que não se comunicavam?
CR – Como hoje. Que eu saiba, não se comunicavam. Lembro que havia um grau de competitividade incoerente. Fora do Brasil, até as produtoras concorrentes são simpáticas entre si. Aqui, farinha pouca, meu pirão primeiro. O elo de ligação que há entre Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados é o sindicatos dos técnicos. Em São Paulo é o SINDCINE, aqui é o STIC. O sindicato promove os encontros entre os técnicos, acontece uma certa interação. Mas, até onde eu sei, existem os grupelhos. Aquelas oligarquiazinhas que se autopromovem, que ganham editais. Não vou dizer que as produtoras do Rio, onde moro, sejam desligadas umas das outras, totalmente inimigas ou distanciadas, mas existe um grau de competição que não acho saudável. O cinema teria muito mais chances de sobreviver se houvesse cooperação. Se você tem um público, eu vou no rastro do seu. E se o meu tiver mais ainda, melhor ainda.
EE – No final dos anos 70, você chegou a trabalhar em filme do James Bond. O “Moonraker”, de 1979...
CR – Eu tinha um amigo, o Estanislau, que me chamou para uma “décima-quinta” assistência de direção. Meu nome não está nem nos créditos. Eles chamavam as pessoas para controlar a figuração, era um escalão de terceira linha que ia para o povo com o rádio. Trouxeram tradutores de espanhol: porque aqui no Brasil se fala espanhol, obviamente [risos]... Foi uma experiência interessante, o primeiro filme de vulto em que eu pude assistir ao processo de produção. Era um tipo de cinema que até hoje não colou no Brasil. Grandes produções, com grande investimento de dinheiro. Não vou citar nomes porque as pessoas estão aí. Filmes que custaram oito milhões e tem cara de oitocentos mil, como disse recentemente o Kleber Mendonça Filho e eu acho corretíssimo...
EE – “A Serpente”, da Magnus, veio no início dos 80.
CR – A Magnus tinha uma tremenda estrutura, estúdio de trezentos metros quadrados, proteção acústica. O melhor estúdio do Rio de Janeiro, competindo com a Tycoon da Barra da Tijuca. No “A Serpente” eu fui assistente de câmera do Dib [Lutif], de quem eu tenho as melhores recordações. Rigorosíssimo, exigente e, se não pudesse exigir, ele sabia como conduzir a coisa. A direção do “A Serpente” era anárquica. Gastou-se uma fortuna em cenários. Nunca vi o filme, me disseram que conseguiram montar. Na época, quem estava montando era o [Antonio] Sarmento, o montador da casa, junto com o Beto Valadão. Não sei se foi o Sarmento que concluiu. Reza a lenda que o filme era “imontável”.
EE – E o “Viagem ao Céu da Boca”, o primeiro filme brasileiro de sexo explícito? Dirigido pelo Roberto Mauro, que tinha uma trajetória extensa no cinema popular...
CR – A trajetória do Roberto Mauro é interessante como realizador. Dirigiu “As Cangaceiras Eróticas”, “A Ilha das Cangaceiras”, com a esposa dele como cangaceira também. Ele tinha esse lado empreendedor. Lembro bastante do “Viagem ao Céu da Boca”, o primeiro filme pornô a ser rodado no Brasil. Erótico, pesado. Resolveram fazer o filme com esta intenção.
EE – Fala um pouco sobre os bastidores...
CR – Tinha acabado de passar “O Império dos Sentidos” no cinema Palácio, de Copacabana. O Jece Valadão chegou um dia e disse: “Se pode aparecer o pau do japonês, pode aparecer o pau do brasileiro, que é bem maior do que o do japonês!” [risos] Esta foi a fala literal. “Por que galã brasileiro tem que ser louro de olho azul? Galã tem que ser como eu. Moreno, de cabelo carapinha!” Você vê que o Jece era um cara de visão. Podia ter vários defeitos, mas era um cara de visão. Contratou o Roberto Mauro. Outro dia até me ligaram do STIC: “Tem um cara querendo falar com você, o Older Costa”. O Costa foi o diretor de produção.
EE – E a escolha do elenco?
CR – Escolheram algumas profissionais da noite. Havia chegado de Paris a Ângela Leclery, um travesti. O pessoal saía de madrugada, chegava com olheiras, de tanto assistirem aos shows na [rua] Duvivier. Chamaram um garoto que, se não me engano, o nome era Eduardo ou para quem deram o nome artístico de Eduardo Black. A menina entrou na história depois, de paraquedas. O Costa estava comprando tecidos no Largo do Machado e o bas fond de cinema gosta de virar cantador, jogar um papo. “Quero seis metros de tecido e... negócio é o seguinte: eu sou produtor de cinema, trabalho com o Jece Valadão, tenho uma parada legal pra gente. Não quer fazer um teste de atriz?” E a garota topou, era filha de um porteiro da rua do Catete. Novinha, dezenove anos. Apareceu no estúdio com o noivo. Um garotão, bonitão.
EE – Foi averiguar o ambiente...
CR – O que fizeram? Deixaram a garota ensaiando, deram um porre no cara, que terminou o noivado com a menina dali a três dias, quando percebeu o que era. Teve teste, inclusive. A menina pagou um boquete, para ver se conseguiria repetir no filme. Ela também topou. Pagaram um cachê, não lembro se bom ou normal. O fotógrafo de cena era o Paulo Jabur, ex-marido da Stellinha Valadão. Eu fazia assistência de câmera, o diretor de fotografia era um eletricista da Magnus, o Vitor [Neves]. Havia um operador de câmera, o Vicente. Usamos duas câmeras, uma Mitchell antiga e uma Arri. Filmamos na Avenida Brasil, ali no Caju, para aquelas externas de passarela. Na Magnus foi praticamente 80%. E numa casa na Barra, que o Jece conseguiu de um amigo. Aparece o frontispício da casa, as árvores. Formávamos um grupinho à parte: eu, Stella e o Paulo Jabur.
EE – Você conseguia dialogar com eles. Era uma espécie de “conselho ético” [risos]
CR – [risos] É, conseguíamos conversar. E a gente aprontou muito... O Eduardo Black, coitado, fazia espetáculo a noite inteira com duas ou três mulheres e tinha que comparecer de manhã. Chegava com um abacate para melhorar a performance. Os cenários foram do Seu Nézinho, um cenotécnico que virou cenógrafo. As coisas eram assim. O concunhado da vizinha fazia figuração. Teve até uma passagem engraçada: o cara começou a brochar. Convocaram um técnico de efeitos especiais, para fazer uma piroca de plástico e incorporar à do negão. Era encaixável... Fizeram uma de silicone com um arame que passava por baixo do saco e acabava na bunda com um pompom rosa. O diretor de arte era o Carlos Prieto, maquiador....
EE – [risos] Que adorava o babado, por sinal...
CR – [risos] Era com ele mesmo. Eu e o Paulo chegamos para os eletricistas, que eram negros também: “Olha, o Jece Valadão pediu, na encolha, para avisar a vocês que ele está procurando um dublê de corpo. Quem julga se é parecido, se tem compatibilidade, é o Prieto.” Eu sei que passaram algumas horas e dali a pouco entra o Prieto na sala de produção: “Deus meu! Não sei o que está acontecendo! Eu entro no banheiro, botam aquelas jebas pra fora! Eu não sei o que é isso!” [risos]
EE – [risos]
CR – [risos] A gente aprontava, fizemos várias dessas... Aliás, pensei em uma história que eu gostaria de desenvolver, “Amor e Bunda”. Sobre o cinema erótico e de sexo explícito no Brasil. Não que eu fosse fazer um filme de sexo explícito, mas aproveitar essas mil histórias. Por exemplo: eu fui o introdutor, não literal, do esperma artificial no cinema brasileiro, pelo menos neste filme. Um misto de goma de araruta com maisena para dar a mescla e a consistência exatas... O problema é que o “Viagem ao Céu da Boca” parou na censura.
EE – Dois anos. Vocês sabiam que estava rolando o “Coisas Eróticas” em São Paulo?
CR – Talvez os produtores soubessem. Eu, não. Aliás, eu faço uma análise paralela: os militares já estavam em uma fase crítica, a nossa dívida externa era cavalar, a Abertura era praticamente certa. A pornografia, como as drogas e tudo o mais, em um sociedade cristã, crédula e ignara como a nossa, sempre foi válvula de escape. Deve ter havido conivência do governo militar para a liberação do filme pelos juízes, nos tribunais. O fato é que o “Coisas Eróticas” foi o pioneiro em exibição pública. O “Viagem ao Céu da Boca” foi o pioneiro em realização. Por uma questão de meses.
EE – Às vezes confundem e falam besteira. Citam o “Coisas Eróticas” e nem sabem da existência do “Viagem”...
CR – E essa época, 1981, foi o boom do cinema pornô. Todo mundo ia assistir, até as minhas amigas do clube de montanha. Ver um filme pornô era um ato de coragem. As meninas se disfarçavam, colocavam touca. Em seguida vieram os filmes suecos, considerados de educação sexual e que não eram. Tremenda mentira, eram filmes de sacanagem mesmo. A gente tem que diferenciar o que é cinema erótico, cinema pornô e cenas eróticas dentro de um filme. No cinema erótico, o sexo não é um fim objetivo. “Ken Park” tem cenas de sexo explícito. É um filme pornográfico? Não, ele se concentra na trama. Veja “O Anticristo”: nos primeiros minutos aparece uma penetração...
EE – Passamos agora para o Afrânio Vital: “Longa Noite do Prazer” e o “Estranho Jogo do Sexo”.
CR – Esses dois filmes para mim são absolutamente fundamentais. O Afrânio foi continuísta, assistente de direção, trabalhou com Walter Hugo Khouri, Carlos Hugo Christensen. Além do “Longa Noite do Prazer” e do “Estranho Jogo do Sexo”, voltamos a trabalhar juntos quando ele fez a continuidade no “Pedro Mico”, do Ipojuca Pontes. O Afrânio tem uma formação de cinema empírica e teórica. Um estudioso que soube aprender cinema. E esses dois filmes são heroicos. Heroicos! A gente almoçava no Geneal [antiga carrocinha de cachorro-quente], que resolveu dar um sanduíche para cada membro da equipe. Não foi brincadeira. O produtor era o Reinaldo Cozer, sócio do Afrânio, na Aleph Filmes. Não sei que história os dois tiveram depois, acabaram se afastando. Mas o fato é que esses dois filmes são heroicos. Pegaram financiamento em banco, entraram com apartamento. Um negócio louco, acreditando nos filmes. Sofreram todos os preconceitos que podem sofrer os independentes. Para mim, uma verdadeira escola do que é trabalhar com poucos recursos. Trabalhar inteligentemente.
EE – Dá um exemplo. Além do almoço na Geneal.
CR – O Afrânio tinha uma capacidade rápida de solucionar problemas. Não tem a lancha, não tem o automóvel, então pega um patinete. Se você olhar o “Longa Noite do Prazer”, ele tem um apelo erótico porque, se não tivesse, não iria nem para o cinema. Tem até a história do cinema na [rua] Senador Dantas. O dono teve que chamar a polícia porque nego estava irritado, depredando tudo. Queriam ver a Jussara Calmon trepando e o filme não tem sexo explícito.
EE – Jussara, a estrela do “Coisas Eróticas” e que está no “Longa Noite” e no “Estranho Jogo”. Além dela, o “Longa Noite” também tem citação de Augusto dos Anjos e você, inclusive... [risos]
CR – [risos] Eu de ator, inclusive, em uma cena. Se eu ler o roteiro hoje, talvez até me surpreenda, mas acredito que não foi seguido à risca. Não havia como. Você tinha que fazer um filme, na base da porrada, do esforço, do sacrifício. Depois o Afrânio e o Reinaldo fizeram o “Estranho Jogo do Sexo”, acho que para pegar o vácuo. Teve um lançamento legal na Colômbia, na Venezuela, na Argentina, e despontou. Se esses filmes foram pagos, não sei dizer. Aquela época era película, e a copiagem, a edição, a sonorização, custavam 30, 40% do valor de um longa. Imediatamente depois dos filmes, vêm as contas e eles devem ter passado um sufoco. Tinham ideia de fazer outros filmes, dois por ano. Um planejamento estratégico maior, visão de mercado, mas é o tal negócio: os exibidores fecham só com distribuidores e, enfim... Aí é um outro papo.
EE – Cristiano, eu queria falar um pouco sobre o “Dedo de Deus”. Um curta de sua autoria muito bonito, e que está disponível no Youtube, por sinal.
CR – No início, eu queria contar a história da conquista da montanha. Mas a conquista envolve pesquisa histórica, lidar com parentes. Até existe um filme de 1932, de quando subiram o Dedo de Deus vinte anos depois da conquista. Foi a segunda escalada e puseram escada de ferro, subiram um padre, rezaram missa. Um cinegrafista filmou e as imagens estavam de posse de um dentista. Acharam que valia uma fortuna, não me cederam as imagens, dificultaram as coisas. Aí cheguei para o Roland Henze, disse que conseguiria fazer um curta lá, que poderíamos ganhar o prêmio da Concine. Pagavam trinta mil cruzeiros. Custou cinco mil, baratíssimo, subi com o grupo de montanhismo do qual eu fazia parte.
EE – Então as duas protagonistas são do grupo.
CR – Sim, Valéria e Tereza, de dezesseis e vinte e seis anos. Eu quis fazer um filme mais lúdico sobre o alpinismo, mostrando que não se escala pelo risco. Não é para ficar dependurado. É um passeio, como o cara vai jogar futebol, o cara também pode escalar montanha. Tive a ideia de colocar as duas meninas, o que é inusitado. Muita gente imaginava que mulher nunca escalaria, que não seria capaz de escalar. E o Dedo de Deus é uma figura simbólica, enigmática, no imaginário. Tem escaladas fáceis e escaladas difíceis. Nós fizemos por uma das vias fáceis, mas impressionantes. O Roland topou, me deu quatro latas de negativo, de quatro minutos. Levei o negativo contado e tive que trazer o filme. E eu trouxe um filme. A história se passa em um dia, mas foram três. Subimos até o Polegar, ficamos uma noite até o nascer do sol, fizemos a escalada, voltamos, dormimos e no dia seguinte chegamos ao cume. Meses depois, o Roland conseguiu uma carona de helicóptero com o Departamento de Estradas, o DNER. E aí eu fiz as cenas aéreas. A gente se comunicava por rádio, as meninas escalaram com mais dois amigos.
EE – Aquela parte em que estão lá em cima e aparece a estrada embaixo...
CR – É, exatamente. O Roland impôs a narração do Walmor Chagas, que deu uma certa caretice ao filme. Uma namorada minha escreveu o texto. O filme ganhou pelo exotique. Nós ganhamos esse prêmio de trinta mil, houve uma repercussão negativa da Veja, que sempre sentava o pau nos filmes brasileiros, independente de serem bons ou ruins. Em poucas palavras, chamou o filme de reacionário. Mas eles implicavam com o curta-metragem. Estavam baixando o cacete no curtas, podiam ser o que fossem, por causa da lei da obrigatoriedade.
EE – Que era uma coisa odiosa.
CR – A obrigatoriedade causou um tiro no pé. O John Houston dizia que poucas profissões no mundo conseguem reunir tantos canalhas por metro quadrado quanto o cinema. Aprovaram a lei de obrigatoriedade dos curta e os exibidores, que também tinham produtoras de gaveta, resolveram produzir. Chamaram lá os merdas do Beco da Fome. “Aí, quer ganhar dez merréis? Faz aí um curta-metragem.” Um cara, acho que o nome dele era Nilo Machado, tinha uma carreira interessante. Mas ele rodou um curta com a exibição de slides da mulher dele, que era professora primária de uma escola municipal. Havia bons curtas, mas eram diluídos por essa canalha escrota.
EE – Eis que, em 85, surgem as “As Aventuras de Sérgio Malandro”!
CR – “As Aventuras de Sérgio Malandro”! Uma esculhambação do cacete... [risos] Fui chamado para fotografar o filme, direção do Erasto Filho, que tinha feito o “Tudo Acontece em Copacabana”. O primeiro dele, que nunca vi, não faço idéia. Ele era amigo do Sérgio Mallandro. Amigo de infância, de colégio, não sei. O roteiro é uma das coisas mais alucinadas. O Erasto simplesmente não tinha nenhuma formação de cinema. Nada, nada, nada. Não sabia fazer. O negócio ali era ganhar baba, grana. Filmamos em 16 milímetros, para ampliar para 35, um recurso da época. Trabalharam como atores os amigos do Sérgio Mallandro. Um de São Paulo, horroroso, um cabelo deste tamanho, o Pedro de Lara. Algumas pessoas que faziam pontas nos Trapalhões também. Um anão, o Rolinha que interpretava o mago. Geravam efeitos no roteiro que eles não sabiam realizar na prática. Por sorte, muita coisa eu já dominava, pela minha experiência. Do tipo fazer uma pessoa desaparecer e aparecer.
EE – [risos] Efeitos especiais, sei...
CR – [risos] Banal... Efeitos especiais ao vivo. Dependia muito de mim, e não de quem havia concebido o filme. Extremamente estressante, acabei com um cálculo renal. Pra minha sorte, uma das produtoras me levou a um acupunturista. Abandonei o filme na última semana. A gente filmou uma parte em uma casa, na Barra da Tijuca. Alugaram e não sabiam de quem. A equipe foi para lá. Tinha piscina, dois andares, sobrado. Um assistente que não era assistente, mas amigo do Sérgio Mallandro, chamado Kibe, tinha um defeito na perna. Andava de moto com um cabo de vassoura na marcha e era dono de um Dodge Dart. O Sérgio estava casado com a Mary Mallandro, que não deixava ele ir à filmagem. “Mary, estou aqui ocupadíssimo. Vou trabalhar até tarde.” E a Mary não aparecia na filmagem. Eu tinha um eletricista e um assistente, que era filho do eletricista. Adolescente, coitadinho. Puxando cabo. Película. Era negativo de 64 asa, 100 asa. Barra pesada. Precisava usar muita luz, a gente trabalhando. Até que em um momento chegaram os verdadeiros donos da casa. Estavam viajando, não sabiam o que estava acontecendo. Tinha sido o caseiro quem alugou a casa...
EE – [risos]
CR – [risos] Aí parou tudo, acabou. O caseiro deve ter sido defenestrado. Não pudemos filmar na casa, que aparece no filme: a portaria, a piscina... Tem cenas que são de plano geral e o Sérgio Mallandro derrubando estante, virando mesa. Arruinavam com a casa, com o cenário, com os livros. Teve uma hora na praia em que o Sérgio Mallandro disse “ó, deixa comigo. Filma aí, filma aí!” E saiu. Vinha um cara cheio de sacolas, de panos, de barracas e ele “ahhhhhhh!!!” Deu um susto no cara, derrubou tudo. Aquilo não tinha sido planejado [risos]
EE – [risos]
CR – Uma poça d'água imunda, o carro passa e a água jorra. Isto estava no roteiro. Mas aí passa o carro e joga aquela água imunda mesmo, não era água fake [risos] Fomos em uma discoteca, só que era o dia em que a discoteca ia funcionar. O som ensurdecedor. “Filma aí, filma aí!” Um negócio de doido, era o cinema do descaralho total, sob o ponto de vista técnico, artístico.
EE – “Pedro Mico”, do Ipojuca Pontes vai em uma linha completamente diferente, na estrutura da Embrafilme...
CR – No “Pedro Mico” me creditaram como still e eu não fui o still. Fiz as cenas aéreas, porque o Walter Carvalho tinha caído recentemente de um helicóptero no Ceará, durante o filme do irmão dele, algo assim. Então não entrava em helicóptero de jeito nenhum. “Pedro Mico” tinha cenas de montanhismo e o Sanin Cherques, meu amigo, me indicou. Arranjamos um dublê, um ator negro, para fazer o papel do Pelé. Filmei as cenas da descida de rapel, de um apartamento para o outro na cobertura do edifício Chopin em Copacabana. Isso eu fazia brincando, todo final de semana, sem o menor problema. O Ipojuca era um cara de esquerda, hoje de direita. Um reacionário, que renega todo o passado. O irmão era um cara formidável, o Paulo Pontes, autor, diretor, ex-marido da Bibi Ferreira. O Ipojuca sempre foi uma sombra. Fez o filme, que é uma merda, insuportável. Todo mundo que participou acha isso. Uma estrutura de produção cara, o Pelé estrelando, dublado pelo Milton Gonçalves.
EE – Às vezes, o pessoal não sabe, mas isto aconteceu antes da participação do Ipojuca Pontes na era Collor. Como foi a estreia do “Pedro Mico”?
CR – No Ricamar, em Copacabana. Não tinha público. Boicotaram o filme, não havia ninguém, só meia dúzia de pessoas. O Sanin Cherques virou-se para mim: “Pô, Cristiano, vamos ter que arranjar alguém...” Chamávamos as pessoas na rua. “Você não quer assistir a um filme agora? É com o Pelé, ele está aí no cinema!” Respondiam: “Ah, vai tomar no cu!...”
EE – [risos]
CR – [risos] Quem podia entrava no cinema. Mas imagina quem? O povo da rua. A equipe e o elenco subiram para o mezanino e conseguimos colocar umas oitenta pessoas. O público espinafrava, dava gargalhadas. No filme, chamaram o Oscar Niemeyer para fazer o projeto de um barraco. Bacana, mas acontece que o Niemeyer nunca foi cenógrafo e desenhou um quadrângulo de 3 por 3, reproduzido no estúdio. Ali dentro botou uma cama, uma pia. Não é assim. Quem já entrou em barraco sabe que não tem aquela proporção.
EE – Aquela métrica, aquela linearidade modernista...
CR – É tábua na parede, vaza luz de fora. O Sanin me contou na época passagens maravilhosas da filmagem. Estavam subindo o Morro dos Cabritos, com a Tereza Rachel, para a chegada dela no barraco. Construíram a parte externa do barraco, o interior foi filmado no estúdio. A Tereza Rachel não conseguiu subir as escadarias, no meio da comunidade do Morro dos Cabritos. Aí os eletricistas, para quebrarem o galho, fizeram uma maca: dois sarrafos de madeira e uma cadeira. Pregaram a cadeira e...
EE – Uma coisa meio Brasil Império...
CR – [risos] Brasil Império... Só que esqueceram o seguinte: na escada, o que está na frente tem que levar a maca lá embaixo. O que está atrás tem que levar a maca lá em cima. Se não, vira. E ali a pirambeira é mais de quarenta e cinco graus. Eu sei que a Tereza Rachel começou a gritar e de repente ouviu-se “plac!” Ela caiu e foi um tal de nego segurando pela perna... Vi trechos do filme e me dá um negócio na garganta, não consigo. Muito ruim. Então não sei até hoje se há cenas dela em cima do morro. Cogitaram levá-la de helicóptero...
EE – E finalmente chegamos ao “O Quinto Macaco”, em 89...
CR – Produção do Menahem Golan, da Cannon Filmes. Depois tiraram o nome porque a Canon, da indústria fotográfica entrou com uma ação. O diretor foi o Éric Rochat, que tinha feito o “Histoire d'O” alguns anos antes, com sucesso. Veio com um produtor português para o Brasil, para fechar negócio com a LC Barreto. Fui convidado pela Maria da Salete, para ser assistente de direção. O Ricardo Favilla era o diretor assistente. Depois você me explica, na carreira do cinema, qual é a diferença [risos] Eu era o assistente de direção que fazia a ordem do dia, toda a parte burocrática pesada. Até chegar em Paraty o Vicente Amorim, já no final do filme, faltando uma ou duas semanas. A primeira carteira assinada que eu tive no cinema, um stress profundo, me desagradou muito. Eu via alguns profissionais ralando, fazendo o possível para realizar o filme, e outras pessoas se drogando abertamente. Saíam nas madrugadas para pegar as meninas de Paraty. Faltava profissionalismo. Hoje em dia encaro de outra forma. Simplesmente me afasto. Na época, eu enfrentava e esse enfrentamento foi desgastante, do ponto de vista psicológico.
EE – Nas produções do Carlo Mossy, o clima foi outro? Você participou da fase pornográfica do Mossy, no “Giselle H.”
CR – Não fiz “Giselle H.”, participei da fase pornô, mas desse eu não participei. Conheci o Mossy por tabela, porque era sócio do Victor di Mello e eu conhecia a Dilma Lóes, ex-esposa do Victor. Filmamos juntos o “Banana Prende, Mamão Solta”, uma peça infantil dela. Quem me convidou para o filme do Mossy foi um amigo meu, o Jorge Mansur. Para gravar em vídeo, que na época era precário: U-matic.
EE – Em que ano?
CR – Talvez início da década de 90.
EE – Época da “Giselle H.”. Talvez você não saiba porque quando estavam filmando era o Mossy no set, mas quem assinava era uma moça de dezoito anos, recém-chegada de Paris [risos]...
CR – [risos] Para você ter uma ideia, eu nunca vi esses filmes. A minha relação era estritamente profissional, de entregar a fita gravada. Eu fotografava. Começou quando o Mossy colocou um anúncio nos jornais, pedindo atores pornográficos. O escritório era em cima do Bob's, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A fila ia até a Avenida Atlântica, trezentas, quatrocentas pessoas.Tinha uma atriz pornô na recepção da produtora, um quarto e sala pequenininho. O Mansur filmava num estilo reportagem, o Mossy entrevistava e escolhia os tipos mais exóticos. Manco, cego, perneta, sei lá. Débil mental, mulheres muito obesas. “Olha, nós estamos fazendo um teste remunerado. Vocês vão receber direito de imagem e, se forem aprovados, começamos o filme.” Mentira. Aquele já era o filme. Tiravam a roupa e fodiam. O Mossy realizou um filme com esse material, mandou para Paris e virou um sucesso. Era o início do pornô-realidade. Não eram aquelas mulheres glamourosas, americanas, aquele sexo que parece de plástico. Eram de carne mesmo. O Mansur então se empolgou, e aí eu entro na parada a convite dele.
EE – Por quê?
CR – Porque o Mossy queria filmar com duas câmeras e eu tinha as duas câmeras. Nesse ínterim, mudou o formato do video, nós fizemos em Super VHS, uma bitola menor, o custo lá embaixo. O diretor de produção era o Geraldo Mohr, um alemão, que tinha trabalhado comigo no “Viagem ao Céu da Boca”. O Geraldo mandou vir uma atriz de Portugal. Brasileira, prostituta profissional lá. Rodamos um filme inteiro em uma cobertura, na [Avenida] Vieira Souto, residência de um cara que era biliardário, senhor de idade. Só trabalhei nesse da Vieira Souto, que teve cenas em toda casa e no escritório. Uma das frases mais pitorescas do cinema pornô eu atribuo ao Mossy. Tinha uma trepada na janela, e ele aproveitava os intervalos para sugerir as falas. Saiu-se com essa: “fala, minha filha, fala: eu adoro dar o cuzinho na janela...” [risos]
EE – Seu nome consta nos créditos?
CR – Não sei. Não lembro nem de ter pedido para não constar.
EE – Você se sentiu mal de participar de filmes pornôs? Afinal, você estava fora da sua realidade de hippie montanhista...
CR – Olha, o negócio é o seguinte: eu tive uma educação alemã. Aos quatorze anos, minha mãe me deu um livro de cabeceira, editado em Portugal e escrito pelo Wilhelm Reich em 1916, se não me engano. Chamava-se “Combate Sexual da Juventude”. De iniciação sexual, para a juventude comunista alemã. Eu tinha uma liberdade muito grande em casa. A gente ia para Curitiba, nas férias da família, e tomávamos banho de piscina pelados. Para mim, ficar pelado nunca foi problema. A nudez nunca esteve ligada à excitação sexual.
EE – No seu primeiro longa-metragem, o “Outro Olhar”, você teve um cuidado extremo em relação ao sexo. Até mesmo em relação ao corpo da protagonista...
CR – O tema fundamental do “Outro Olhar” é o romance entre a menina adolescente e o homem adulto sequestrado. Então, o que eu penso? O público-alvo deste filme é a garotada de quatorze anos para cima. Escolhi um funkeiro, o MC Martinho, para fazer o tema musical. Ele abre e fecha o filme, tem uma visibilidade muito grande nas comunidades, é conhecidíssimo. Tão alijado quanto o nosso cinema. O Martinho não toca nas grandes rádios, não vai para a televisão. Se eu faço um filme com nudez ou cenas tórridas de sexo, a censura é dezesseis anos, dezoito. Eu perderia imediatamente essa fatia do público. Até coloquei uma cena, para justificar a droga. O cara grita com o outro: “você vai queimar isso?” Se não coloco, é apologia às drogas e a indicação de idade vai lá em cima. Para segurar os quatorze anos, isto foi estudado no roteiro. Em um filme para adultos, agora no futuro próximo, já vou abrir um pouco mais esse leque. Acho que o sexo explícito não se encaixa no perfil do espectador brasileiro em geral. Eu tenho a preocupação de realizar um filme que seja assistido. Não quero que seja visto pela minha família e pelos meus vizinhos do prédio.
EE – O “Outro Olhar” teve consultoria do Alberto Salvá.
CR – O Salvá disse coisas significativas que, de fato, eu alterei no roteiro. Uma dica foi bacana: não colocar data no filme, porque ele precisa ser atemporal. Além do Salvá, o Francisco Chao me auxiliou, me ensinou como se sequestra alguém. Tive que entender esse modus operandi. Por exemplo: eu passei o filme para uma plateia de alunos de segundo grau de colégio estadual em Nilópolis. Cento e sessenta alunos assistiram ao filme em duas sessões. A sala lotada. Para mim, o que foi muito satisfatório? Eles entenderam a história de fio a pavio. Eles conhecem o código, sabem o que acontece em um cativeiro, faz parte da cultura deles. Ouvem falar, discutem, conhecem indiretamente algum bandidão. O filme foi plenamente compreendido pela garotada que é o meu público-alvo. Provavelmente, vou fazer muito mais sucesso em Duque de Caxias do que em Portugal, aonde também será exibido. Em Portugal talvez seja uma coisa exótica, um pouco de miséria, de favela movie. No Ver Cine, na Baixada [Fluminense], vai ter um grau de afinidade muito maior com a plateia. Disto não tenho a menor dúvida. E foi esta a intenção, porque eu já sabia dos problemas que iria enfrentar na distribuição e na exibição.
EE – Pouco antes você havia dirigido um curta, o “Enquanto Faço As Unhas”. Foi uma espécie de preparatório para o longa? O produtor, por exemplo, é o mesmo.
CR – Foi um preparatório, sim. O produtor é o Saulo Moretzsohn, mas a produção, minha gente, é doméstica. Não é só o produtor que entra com a grana. Paguei os dois filmes, o produtor executivo fui eu e está lá no créditos. Filmes muito baratos, porque estava exercitando o que aprendi no cinema institucional: trabalhar com muito pouco. “Enquanto Faço As Unhas” foi filmado aqui em casa. Aquele salão de costura é a entrada, cenografamos aqui. Minha mulher, que nunca trabalhou em cinema mas é engenheira de produção, ajudou no planejamento. É o tipo de formação que o cineasta não tem. Ele vai aprender na prática, tomando porrada e desperdiçando dinheiro. “Enquanto Faço As Unhas” custou cinco mil reais. Paguei alimentação e condução para os atores e equipe técnica. Para você ter uma ideia: eu fiz o blimp subaquático, para as cenas embaixo d'água. Como eu tinha o blimp, usei no longa. Gerei aquela cena embaixo d'água porque acho que dá um molho, cresce um pouco o filme, em termos de produção visual. Quem sabe, um produtor profissional ache que custe, pelo menos, três mil reais por dia. Você tem o operador de câmera, aluguel do blimp, aluguel de câmera, caminhão gerador. E nós filmamos em Itacoatiara, com um blimp feito com cano PVC de esgoto, uma câmerazinha HV20. Não é nem Full HD.
EE – Cano PVC de esgoto?
CR – E no “Outro Olhar” a piscina estava suja, favoreceu, porque parece que eles estão no mar. Pau na burra, é saber fazer. A fabricação desse blimp me custou cem reais, se tanto. Mais caros foram os vidros, que cortei redondos, para poder encaixar no fundo. Eu tenho aqui em casa uma oficina. Se você olhar as fotos nos dois filmes, vai ver que até o dolly é doméstico. Fiz um carrinho de skate, uma prancha de madeira e uns trilhozinhos de alumínio. Não deixa nada a desejar a um carrinho que eu tivesse alugado da Ted, da Quanta. Funciona tal e qual. Só que custou cinquenta merréis. Essa é a diferença, por isso é que o curta custou cinco mil reais. O mais caro foi a alimentação, mil e tantos. A gente levava o pessoal para comer em restaurante legal, a Débora às vezes preparava a comida para oito, dez pessoas.
EE – Você me contou que existe um projeto de adaptar a biografia da Jussara Calmon para o cinema. O que vocês já conversaram sobre isso?
CR – A Jussara foi à pré-estreia do “Outro Olhar”, que eu fiz no no MAM, para amigos. No final da exibição, ela pegou a biografia e me entregou com uma dedicatória. “Cristiano, pensa no filme. Eu vou cobrar isso de você.” Botei o livro debaixo do braço, fui ler. Conta a história dela desde criança até o casamento com um armador norueguês. A Jussara mora hoje na Noruega, muito bem sucedida, tem uma escola de teatro e dança. Como ela chegou a mim através do “Outro Olhar”, por uma questão ética eu também chamei o Saulo para participar do projeto. A ideia é a gente tentar uma co-produção Brasil-Noruega. Tentar um incentivo aqui no Brasil, um incentivo na Noruega, filmar lá e aqui. Fazer um filme de ficção sobre a Jussara Calmon. Filme de época, com a história da mãe, da família, a vinda para o Rio de Janeiro. Ela viveu uma trajetória muito peculiar, esteve presa, por exemplo. O filme tem conteúdo. Acabaríamos e começaríamos na Noruega.
EE – Agora pense em um panorama do cinema brasileiro atual. O que você considera correto ou errado.
CR – A resposta tem que passar pela questão da exibição e da distribuição. O panorama atual do cinema brasileiro está muito atrelado à nova tecnologia. Acabou o negativo, muito pouca gente está filmando em película e isso reduziu muitíssimo o custo. Você pode filmar até com um celular. O resultado que aparece na tela pode funcionar dramaticamente. Então, a versatilidade de produção atual é muito grande, e a um custo muito acessível. Isso veio a favorecer aquele produtor pequeno. Por outro lado, é uma política neoliberal, em que se tem a democratização das informações de uma forma nunca antes vista. Mas as pessoas estão pensando cada vez menos. Na minha infância, havia poucos recursos, mas se pensava. Estão esquecendo que cinema é uma profissão em que você depende de formação erudita, técnica e prática. Normalmente, o cineasta brasileiro é empírico. Aprende fazendo ou vendo o outro fazer. Isto nos coloca distante de países mais pobres, como Romênia, Bósnia, que têm filmes muito melhores do que os nossos.
EE – O que você acha da sua participação no cinema brasileiro?
CR – Eu estou, na realidade, realizando um sonho. Quando saí do emprego na universidade, recebi uma grana legal e estou podendo me sustentar durante um determinado período. Fiz o “Outro Olhar” com cinquenta mil reais. Para a maioria das produções brasileiras, é simplesmente impensável. Tive uma equipe razoável, paguei todo mundo, ninguém trabalhou de graça. E, no entanto, o custo foi muito aquém dos baixos orçamentos. Estou discutindo, sem modéstias, uma questão de resultados. Isso conta com a minha competência técnica, na medida em que eu aprendi a trabalhar com pouco. Esse longa-metragem, não é mentira, eu fiz com quatro lâmpadas convencionais. Lâmpada que você compra em supermercado, de duzentos watts. Um refletor de seiscentos e cinquenta watts e dois refletorezinhos de luz fria que eu montei em casa, com seis lâmpadas. Com isto, fotografei um longa-metragem. Normalmente, é impensável.
EE – Um esquema tão diferenciado de produção.
CR – E isto é muito importante: nós que produzimos com a grana do nosso bolso, somos mal vistos pelos produtores nossos concorrentes, pelos distribuidores e pelos exibidores. Estou falando de um núcleo, porque existem os independentes que fazem filmes “a Bangu”, sem o menor cuidado técnico. Fazemos filme barato, sem nenhum incentivo. Então ficam com cara de tacho quando gastam oitocentos, um milhão, dois milhões, e conseguem um acabamento técnico com o mesmo grau de sofisticação. Tive uma conversa com um produtor, que me respondeu: “Filmes para mim só interessam com orçamentos a partir de quatro milhões”. Por que quatro milhões? Porque ele ganha seiscentos mil. Filme de cinquenta mil não interessa porque ele não ganha na bilheteria. Ele ganha no processo de produção, nos incentivos estatais, na Oi Futura, na Petrobras...
EE – E na Lei Rouanet.
CR – E na Lei Rouanet. É ali que ele ganha dinheiro. Obviamente, há exceções, eu estou generalizando. Mas a grande maioria age assim. Com a grana de um filme você poderia fazer outros quatro, cinco filmes. Eu te digo com absoluta franqueza de alma: é um sonho diletante. O fundamental é como eu fazia no montanhismo. Por que você pratica o montanhismo? Não se ganha porra nenhuma praticando o montanhismo. Você arrisca a sua vida, você passa por dificuldades, você cansa, passa por enfrentamentos climáticos e atmosféricos. Peguei frio, subi o Elbrus na Rússia, 30 e tanto graus abaixo de zero. Por que isso? Porque você tem um objetivo pessoal. Ou talvez você precise de um aporte psicológico para continuar vivendo. Eu sou agnóstico, então não acredito em vidas futuras. Eu acho que, de repente, estou fazendo o que eu gosto. E é a única coisa que eu sei fazer hoje. Se fosse há trinta anos, teria outras opções. Iria fazer antenas de novo, tentar pilotar de novo. Mas hoje eu só tenho o cinema.
5 comentários:
Estava realizando um trabalho longo no computador e por acaso, ontem, cai aqui no Estranho Encontro. Foi uma surpresa ver outra entrevista que você realizou com a habilidade e o talento de sempre. Só consegui ir dormir após ler tudo. Trabalho ímpar sobre uma figura que eu desconhecia no cinema brasileiro mas que foi resgatado corretamente por você.
Não conhecia o entrevistado, mas a prosa foi ótima, ao mesmo tempo engraçada e didática!
Abs, Ricardo Montero
Valeu, Matheus. O fato de o Requião ser um técnico a vida inteira, longe da ribalta, joga luzes sobre o Beco da Fome e elementos curiosos do nosso cinema.
Também achei, Ricardo. O papo fluiu bem, de um jeito agradável e sem censuras. Abraços
Interessante entrevista. Parabéns! Sabia que a origem da família Requião no Brasil é aqui na Bahia e daqui se espalhou pelo restante do país?
Que histórico ótimo nessa entrevista, Requião. No MAM lendo-a me vi no saguão em 1975 e descobrindo que o rico acervo não se encontra mais aqui. Jfacury
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