Quem acreditar que “Tudo Bem” (1978) trata apenas de uma parábola sobre a “classe média” cairá belamente do cavalo. Deixando as invencionices de lado, podemos dizer que o sexto filme de Arnaldo Jabor era antes de tudo um corso, um panaché.
“Tudo Bem” misturou os aposentados de Copacabana, o xote dos peões de obra, o misticismo das empregadas domésticas, o canto dos uirapurus amazônicos e as pororocas indígenas. Usando o batido argumento de concentrar as ações em um único local (a residência da família Ramos Barata), está claro que os elementos desestabilizadores vêm de fora e atormentam os que lá dentro dormem.
Ramos Barata são quatro: Juarez (Paulo Gracindo), Elvira (Fernanda Montenegro), os filhos Vera Lúcia (Regina Casé) e José Roberto (Luiz Fernando Guimarães). À medida em que os de dentro e os de fora se encontram, surge o rebu. O apartamentaço de pé direito alto, lúgubre e rotundo, começa a brincar com a estrutura rodrigueana e contrapõe realidade, alucinação e memória.
Sim, os leitores já ouviram essa vinheta de realidade-alucinação-memória ciscando em algum lugar. O pater familias de Jabor, Nelson Rodrigues, a colocou por exemplo em “Vestido de Noiva”. O mesmo Nelson que Jabor havia incensado no grandioso “Toda Nudez Será Castigada” (1973) e quase depenado em “O Casamento” (1975).
Quando os três amigos fantasmas de Juarez invadem o escritório em que o velho bate na máquina de escrever, temos aquela euforia dos mil anos. Quase um Fla-Flu alucinógeno no quarto escuro, com a cenografia propositadamente cerebral e que depois será desmoralizada pelos peões. Foram contratados para fazerem uma reforma antológica na casa. Mas não se esqueçam: eles olham cheios de veneno para as partes pudentas dos quadros que embonecam as paredes.
Aqui o mundo castiço vira comédia popular, na linha de um Waldir Onofre em “As Aventuras Amorosas de Um Padeiro” (1975). Nas “Aventuras”, o diretor Onofre saiu detrás das câmeras e interpretou um operário, à moda do Village People, e que poderia estar em “Tudo Bem”. Eis o germe popularesco que os cinemanovistas, entre eles Jabor, tinham arrepio de aceitar, mas que às vezes abraçavam. Era o caso de receitar-lhes uma carrocinha de Chicabon, para acalmar os espíritos.
“Tudo Bem” guarda cenas inesquecíveis, frutos do roteiro de Leopoldo Serran e Arnaldo Jabor. Há um furor incrível da dupla, que atualiza o projeto romântico do Cinema Novo. Este, em uma primeira fase bebericou no realismo de Graciliano Ramos (“Vidas Secas”), José Lins do Rego (“Menino de Engenho”), e depois desembocou no panamericanismo de uma Eldorado (“Terra em Transe”). Agora travestido de urbano, “Tudo Bem” de certa forma continua o frisson condoreiro do movimento, ao dar teses e nomes aos bois.
Elvira palestra para os empregados, o que lembra os melhores capítulos da sociologia carioca. Finge tanta intimidade com os migués que poderia até chorar, imitando uma antiga primeira-dama da Guanabara, chefe dos pequenos jornaleiros. Como servidor aposentado do IBGE, Juarez faz a obtusa mistura entre integralismo, capitalismo ítalo-paulistano e poesia spleen tuberculosa – os três fantasmas que o rondam pelo apartamento. É um quase indigenista, amante do iracundo Brasil. Enquanto isso, Vera Lúcia e José Roberto batem ponto, cheios de juventude e esculhambação cafajeste – aliás, era esta a origem do “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, de que Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães participavam.
Na outra ponta, aparecem elas: as empregadas domésticas multiuso. Roubam a cena. Zezé (Zezé Mota) faz michê, de peruca e cílio postiço. Aparecida (Maria Sílvia) é benzedeira e referência no bairro. “Valei-me as sete camisas do menino Jesus!” Contendo o riso, quem ouve esta maravilha do sincretismo poderá lembrar de “Perdida” (1978), obra-prima de Carlos Alberto Prates. Também estrelada por Maria Sílvia, “Perdida” traz um contexto de sonho, drummondiano, mineiro. Ao contrário, a romaria de Aparecida é interrompida por um gigantesco afro-descendente, vendedor de mate.
Em “Eu Te Amo” (1980) e “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1986) Jabor repetiria a onda de “Tudo Bem”, os espaços fechados comandando a narrativa. A muitas e muitas léguas do cinemascope de “Pindorama” (1971), o louco das procissões políticas. Mesmo assim, nos dois filhotes dos anos 80 o que prevalece é a embriaguez das DRs e das astrologias amorosas. O apartamento de Juarez e Elvira serviria a outro propósito: à hipocrisia festiva de um grupo que se finge aberto aos alienígenas, mas não sabe como arranjá-los dentro da sala de estar. Dali para a hecatombe demoraria muito pouco, como no ritual do Quarup que atordoaria Juarez, lépido e faceiro, à beira-mar.
“Tudo Bem” misturou os aposentados de Copacabana, o xote dos peões de obra, o misticismo das empregadas domésticas, o canto dos uirapurus amazônicos e as pororocas indígenas. Usando o batido argumento de concentrar as ações em um único local (a residência da família Ramos Barata), está claro que os elementos desestabilizadores vêm de fora e atormentam os que lá dentro dormem.
Ramos Barata são quatro: Juarez (Paulo Gracindo), Elvira (Fernanda Montenegro), os filhos Vera Lúcia (Regina Casé) e José Roberto (Luiz Fernando Guimarães). À medida em que os de dentro e os de fora se encontram, surge o rebu. O apartamentaço de pé direito alto, lúgubre e rotundo, começa a brincar com a estrutura rodrigueana e contrapõe realidade, alucinação e memória.
Sim, os leitores já ouviram essa vinheta de realidade-alucinação-memória ciscando em algum lugar. O pater familias de Jabor, Nelson Rodrigues, a colocou por exemplo em “Vestido de Noiva”. O mesmo Nelson que Jabor havia incensado no grandioso “Toda Nudez Será Castigada” (1973) e quase depenado em “O Casamento” (1975).
Quando os três amigos fantasmas de Juarez invadem o escritório em que o velho bate na máquina de escrever, temos aquela euforia dos mil anos. Quase um Fla-Flu alucinógeno no quarto escuro, com a cenografia propositadamente cerebral e que depois será desmoralizada pelos peões. Foram contratados para fazerem uma reforma antológica na casa. Mas não se esqueçam: eles olham cheios de veneno para as partes pudentas dos quadros que embonecam as paredes.
Aqui o mundo castiço vira comédia popular, na linha de um Waldir Onofre em “As Aventuras Amorosas de Um Padeiro” (1975). Nas “Aventuras”, o diretor Onofre saiu detrás das câmeras e interpretou um operário, à moda do Village People, e que poderia estar em “Tudo Bem”. Eis o germe popularesco que os cinemanovistas, entre eles Jabor, tinham arrepio de aceitar, mas que às vezes abraçavam. Era o caso de receitar-lhes uma carrocinha de Chicabon, para acalmar os espíritos.
“Tudo Bem” guarda cenas inesquecíveis, frutos do roteiro de Leopoldo Serran e Arnaldo Jabor. Há um furor incrível da dupla, que atualiza o projeto romântico do Cinema Novo. Este, em uma primeira fase bebericou no realismo de Graciliano Ramos (“Vidas Secas”), José Lins do Rego (“Menino de Engenho”), e depois desembocou no panamericanismo de uma Eldorado (“Terra em Transe”). Agora travestido de urbano, “Tudo Bem” de certa forma continua o frisson condoreiro do movimento, ao dar teses e nomes aos bois.
Elvira palestra para os empregados, o que lembra os melhores capítulos da sociologia carioca. Finge tanta intimidade com os migués que poderia até chorar, imitando uma antiga primeira-dama da Guanabara, chefe dos pequenos jornaleiros. Como servidor aposentado do IBGE, Juarez faz a obtusa mistura entre integralismo, capitalismo ítalo-paulistano e poesia spleen tuberculosa – os três fantasmas que o rondam pelo apartamento. É um quase indigenista, amante do iracundo Brasil. Enquanto isso, Vera Lúcia e José Roberto batem ponto, cheios de juventude e esculhambação cafajeste – aliás, era esta a origem do “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, de que Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães participavam.
Na outra ponta, aparecem elas: as empregadas domésticas multiuso. Roubam a cena. Zezé (Zezé Mota) faz michê, de peruca e cílio postiço. Aparecida (Maria Sílvia) é benzedeira e referência no bairro. “Valei-me as sete camisas do menino Jesus!” Contendo o riso, quem ouve esta maravilha do sincretismo poderá lembrar de “Perdida” (1978), obra-prima de Carlos Alberto Prates. Também estrelada por Maria Sílvia, “Perdida” traz um contexto de sonho, drummondiano, mineiro. Ao contrário, a romaria de Aparecida é interrompida por um gigantesco afro-descendente, vendedor de mate.
Em “Eu Te Amo” (1980) e “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1986) Jabor repetiria a onda de “Tudo Bem”, os espaços fechados comandando a narrativa. A muitas e muitas léguas do cinemascope de “Pindorama” (1971), o louco das procissões políticas. Mesmo assim, nos dois filhotes dos anos 80 o que prevalece é a embriaguez das DRs e das astrologias amorosas. O apartamento de Juarez e Elvira serviria a outro propósito: à hipocrisia festiva de um grupo que se finge aberto aos alienígenas, mas não sabe como arranjá-los dentro da sala de estar. Dali para a hecatombe demoraria muito pouco, como no ritual do Quarup que atordoaria Juarez, lépido e faceiro, à beira-mar.
3 comentários:
Andrea, muito boa a tua leitura diferenciada de "Tudo Bem", além da abordagem tão comum, como você mesma destacou, de uma "parábola sobre a classe média". Tenho a impressão de que as críticas anteriores (salvo alguma falha de memória) que já havia lido sobre o filme se concentraram mais neste aspecto ou na ideia de "Tudo Bem" se configurar em uma "radiografia do Brasil". Creio que seja mesmo, mas como sua análise deixa transparecer, é bem mais do que isso.
Aquele abraço,
Márcio/MG
Jabor tem uma filmografia na qual alguns filmes possuem nítida influência de Nelson Rodrigues - que o cineasta conheceu pessoalmente quando jovem e com ele travou muitos papos. Fez um filme admirável, "Toda nudez será castigada", um poético curta, "O circo", uma tentativa de radiografar a classe média de Copacabana, "Opinião pública", e, na virada do anos 70, aderindo ao desbunde estético das circunstâncias, afundou-se no detestável "Pindorama". Pessoalmente, não gosto da verborragia contida em "Eu sei que vou te amar", o pior Jabor, mesmo considerando, por incrível que pareça, "Pindorama".
Márcio, esse lado óbvio da análise do "Tudo Bem" me incomoda muito. Passa a impressão de que foi rastilho de pólvora. Ouviram e começaram a seguir, sem questionarem qualquer outro lado da questão. É dose... Bom te ver por aqui de novo, grande abraço.
André, também não gosto do blablablá gigantesco do "Eu sei que vou te amar". Ao invés do Jabor ter investido no que ele sabia fazer (sobretudo na ponte com o Nelson Rodrigues), acabou caindo na armadilha de um "neon realismo", que não faz jus à obra dele como diretor.
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