Escrito em 1890, auge do chamado naturalismo brasileiro, o romance "O Cortiço", do escritor maranhense Aluísio de Azevedo, significa bem mais do que pensam entediados estudantes secundaristas, normalmente fadados a lê-lo por obrigação curricular. Antes de ser vitrine morta, exemplo de tempo e pensamento ultrapassados, "O Cortiço" diagnostica muitas delícias e vícios brasileiros, bem mais até do que certas provocações revisionistas do século XX.
O filme homônimo (1978), dirigido por Francisco Ramalho Jr., infelizmente não alcança a plenitude do livro, e pode-se dizer que, a exemplo de tantas outras adaptações cinematográficas, somente arranha a superfície do tema, como se realizasse em apanhado de imagens uma idéia geral da obra literária.
Vindo de um dos melhores exemplares do cinema setentista – "À Flor da Pele" (1976) – Ramalho nunca mais encontraria, como diretor, a força do embate entre o intelectual quarentão interpretado por Juca de Oliveira e a borderline patricinha incorporada por Denise Bandeira. Verdade que "Filhos e Amantes" (1981) e "Besame Mucho" (1986) são ótimos, porém "À Flor da Pele" indicava um artista nobre, em outro patamar de realização. Sair dessa tour de force para "O Cortiço" é algo que só um acidente pode explicar.
João Romão, personagem principal do livro e do filme, português avarento, dono da estalagem – cortiço para os detratores – amasiado com a negra Bertoleza (Jacira Silva), ganha tom simpático vivido por Armando Bógus. Romão é daqueles portugueses que prosperam na antiga colônia, às custas de desprendimento moral e crueldade. Dono também de uma pedreira ao lado do cortiço, o gajo sente inveja do patrício Miranda (Maurício do Valle), que compra um título de Barão e tem filha (Zaira Zambelli) em idade de casar.
O resto é o desfile – em baixa freqüência – dos arquétipos do livro. Rita Baiana (Betty Faria) rouba o galego Jerônimo (Mário Gomes) da mulher, e o envolve em uma briga por ciúme. Pombinha (Silvia Salgado), jovem que tinha dificuldades em menstruar, só vira “moça” depois de um gostoso tête-à-tête lésbico com a madrinha. Os “causos” se sucedem, embora tudo pareça levado a toque de caixa.
Apesar da precariedade, "O Cortiço" foi bastante caro para os padrões nacionais, e a reconstituição de época nem é das piores. Se até hoje sotaques e prosódias são motivos de chacota nas novelas da Globo, aqui o problema maior reside justamente na preguiça dos atores em falarem com gosto oitocentista. Zaira Zambelli, por exemplo, saiu direto de um chopp no Baixo Leblon para o século XIX.
Mário Gomes é o mesmo de sempre, e nem seu entendimento com Betty Faria – importado da novela das oito, "Duas Vidas" – funciona a contento. Ramalho poderia ter trazido Francisco Cuoco – que na novela fazia triângulo amoroso com a dupla – ou mesmo uma indefectível cenoura – mentira sensacionalista espalhada em 1977 contra Gomes, dando conta de que o galã viril curtia experiências sexuais pouco ortodoxas.
O pano de fundo do movimento republicano, da covardia escravagista – Romão falsifica carta de alforria para Bertoleza – e a óbvia metáfora da formação sócio-cultural do país no microcosmo da estalagem, de uma forma ou de outra sobrevivem na revisão fílmica. A montagem do grande Silvio Renoldi, a dedicatória a Lulu de Barros – quem primeiro adaptou O Cortiço para o cinema, nos anos 40 – e a trilha cantada por Zezé Motta melhoram o resultado.
Logo, se o leitor não tiver paciência com o livro, que assista ao filme. Mergulhando em platitudes que fariam Aluísio de Azevedo considerar dar uma mão no roteiro, o cortiço de Francisco Ramalho é curioso, bem-feitinho, porém tão pálido que desapareceu no tempo. Já o de Azevedo – falecido em 1913, o escritor não deve ter conhecido sequer D. W. Griffith – mantém calor inefável, o que prova ser a transposição entre artes uma tarefa dura, hercúlea.
(in Zingu! #40, novembro de 2010)
O filme homônimo (1978), dirigido por Francisco Ramalho Jr., infelizmente não alcança a plenitude do livro, e pode-se dizer que, a exemplo de tantas outras adaptações cinematográficas, somente arranha a superfície do tema, como se realizasse em apanhado de imagens uma idéia geral da obra literária.
Vindo de um dos melhores exemplares do cinema setentista – "À Flor da Pele" (1976) – Ramalho nunca mais encontraria, como diretor, a força do embate entre o intelectual quarentão interpretado por Juca de Oliveira e a borderline patricinha incorporada por Denise Bandeira. Verdade que "Filhos e Amantes" (1981) e "Besame Mucho" (1986) são ótimos, porém "À Flor da Pele" indicava um artista nobre, em outro patamar de realização. Sair dessa tour de force para "O Cortiço" é algo que só um acidente pode explicar.
João Romão, personagem principal do livro e do filme, português avarento, dono da estalagem – cortiço para os detratores – amasiado com a negra Bertoleza (Jacira Silva), ganha tom simpático vivido por Armando Bógus. Romão é daqueles portugueses que prosperam na antiga colônia, às custas de desprendimento moral e crueldade. Dono também de uma pedreira ao lado do cortiço, o gajo sente inveja do patrício Miranda (Maurício do Valle), que compra um título de Barão e tem filha (Zaira Zambelli) em idade de casar.
O resto é o desfile – em baixa freqüência – dos arquétipos do livro. Rita Baiana (Betty Faria) rouba o galego Jerônimo (Mário Gomes) da mulher, e o envolve em uma briga por ciúme. Pombinha (Silvia Salgado), jovem que tinha dificuldades em menstruar, só vira “moça” depois de um gostoso tête-à-tête lésbico com a madrinha. Os “causos” se sucedem, embora tudo pareça levado a toque de caixa.
Apesar da precariedade, "O Cortiço" foi bastante caro para os padrões nacionais, e a reconstituição de época nem é das piores. Se até hoje sotaques e prosódias são motivos de chacota nas novelas da Globo, aqui o problema maior reside justamente na preguiça dos atores em falarem com gosto oitocentista. Zaira Zambelli, por exemplo, saiu direto de um chopp no Baixo Leblon para o século XIX.
Mário Gomes é o mesmo de sempre, e nem seu entendimento com Betty Faria – importado da novela das oito, "Duas Vidas" – funciona a contento. Ramalho poderia ter trazido Francisco Cuoco – que na novela fazia triângulo amoroso com a dupla – ou mesmo uma indefectível cenoura – mentira sensacionalista espalhada em 1977 contra Gomes, dando conta de que o galã viril curtia experiências sexuais pouco ortodoxas.
O pano de fundo do movimento republicano, da covardia escravagista – Romão falsifica carta de alforria para Bertoleza – e a óbvia metáfora da formação sócio-cultural do país no microcosmo da estalagem, de uma forma ou de outra sobrevivem na revisão fílmica. A montagem do grande Silvio Renoldi, a dedicatória a Lulu de Barros – quem primeiro adaptou O Cortiço para o cinema, nos anos 40 – e a trilha cantada por Zezé Motta melhoram o resultado.
Logo, se o leitor não tiver paciência com o livro, que assista ao filme. Mergulhando em platitudes que fariam Aluísio de Azevedo considerar dar uma mão no roteiro, o cortiço de Francisco Ramalho é curioso, bem-feitinho, porém tão pálido que desapareceu no tempo. Já o de Azevedo – falecido em 1913, o escritor não deve ter conhecido sequer D. W. Griffith – mantém calor inefável, o que prova ser a transposição entre artes uma tarefa dura, hercúlea.
(in Zingu! #40, novembro de 2010)
5 comentários:
Andreia, o Cortiço pra mim é um típico caso de livro filmado. Dqueles que o diretor tenta tanto dar conta de tudo que quem conhece a obra original sai pensando que tá faltando página no filme. E não precisaria ser assim. Eu adoraria ver o que seria esse cortiço, por exemplo, nas mãos da carioquice vertiginosa de um Julio Bressane. Adaptaçoes literárias que geram comparaçoes de parágrafo com a obra original pra mim já são falhas e não falhas interessantes. Há pouco tempo vi o Mario Bava pegar Tchecov, Maupasant e Tolstoy num filme de tres episódios. Durante o trnascorrer do filme ate me esqueci que a matriz daquilo eram obras literárias. Como sempre nos filmes dele,não importava o mal que tivesse sendo mostrado,parecia que havia algo ainda mais perverso fora da tela querendo entrar. Essa marca autoral nao existe em o Cortiço. E mais, filmes de época quase sempre revelam muito mais da época que foram feitos do que o periodo que tentam retratar,mas no Cortiço, isso não é um dado, é um elemento que aprisiona a dramaturgia toda. Todo mundo ali parece que gostava muito de politica em 1966 e nao ve a hora de fechar o set para ir dançar no frenetic dancin days. Talvez eu esteja sendo implicante,mas acho que as coisas mais legais do livro, o diretor não alcançou e também nao criou nada com força suficiente pra botar no lugar. ë o tipico filme que o tempo literalmente desbotou.
Talvez este tenha sido um dos primeiros filmes com espírito global, a se mostrar na tela como uma novela de época, reservada ao horário das 6 da tarde, na grade da emissora. Não fosse a beleza delicada e rouca de Silvia Salgado a avançar na cena lésbica e teríamos apenas a transposição de uma novela global, com toda a doce censura de então. Lembro-me de que o papel de Silvia foi muito mais chocante para a censura das senhouras da classe média do que o próprio episódio da cenoura, que nada mais foi do uma dor de corno de chefe global ao perder beth faria para o galã do momento... Um ótimo 2011 a você e seu blog, sempre necessário e, como diria o português, d'uma inteligência absolutamente bestial!
Rodrigo, a sensação é essa mesma, não acho que você esteja sendo implicante. "O Cortiço" acaba meio mal das pernas por seguir o livro sem novidades. O Ramalho do "Á Flor da Pele", por exemplo, tinha uma cara própria, sabia mexer na fragilidade do professor, na dominação da aluna, na batalha que foi surgindo dali. Não ficou no estilo de celofane do "Cortiço". Mesmo no "Filhos e Amantes" o Ramalho criou um material próprio, pegando a geração que era novinha para cair nas garras da tigresa em 77, mas já podia brincar de adulto em 81. É um povo elo perdido, cada vez mais desnorteado durante os anos 80.
Roberto, a cena les joga um ingrediente no caldo, apesar de "O Cortiço" decepcionar. É a velha história: um toque de novela pode fazer um filme naufragar fácil. Dosar essa fórmula é um negócio extremamente complicado. Obrigada e um feliz 2011 para você, ó pá!
O livro é atemporal,o filme não prestou nem pra tirar a roupa do Mario gomes,cobiça nacional da época.
Encontrei uma cópia no youtube,imagem ótima e tem,sim,nudez de Mario Gomes,a globo cortou a cena quando eu vi.A cópia que eu tinha visto na internet era tão desbotada que não se distinguia um corpo vestido ou desnudo,rs.
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