O conto "Alguma Coisa Urgentemente", do escritor João Gilberto Noll, é dos mais sinistros relatos a respeito do período da ditadura militar no país. Tema que permanece vivo em dezenas de livros, filmes e peças de teatro, nas mãos habilidosas de Noll ganhou enfoque exasperante. Em parte pela frieza do narrador -- um adolescente, às voltas com a fuga do pai --, em parte pelo período em que foi escrito -- final da década de 70, quando o medo e o ímpeto da denúncia andavam lado a lado.
Com esse ardor de grito abortado nos subterrâneos da alma é que se desenha a história do pai zeloso e condenado em busca do filho, das raízes familiares que a luta interditou e do relâmpago de uma convivência estruturante na vida do rapaz.
Tanto sentimento Noll resumiu em cerca de 2.560 palavras de conto. Alguns anos depois, o jovem Murilo Salles incubiu-se de tarefa igualmente difícil: rever, em seu filme de estréia, "Nunca Fomos Tão Felizes" (1984), a obra-prima do escritor.
Mesmo que "Alguma Coisa Urgentemente" guarde idas e vindas fáceis para um roteiro de cinema, o perigo seria perder nesse movimento o impacto do texto. Principalmente o espírito de uma Copacabana sombria, diferente do estereótipo turístico e luminoso que nos acostumamos a conhecer.
Esse gosto por transformar o bairro mais famoso do Brasil em espaço dark foi também utilizado por Noll em "A Fúria do Corpo", seu romance de 1981. Embora já existisse no cinema e na literatura ("Eu Matei Lúcio Flávio" recria o balneário como uma terra sem lei) foi nos 80, coincidindo com a decadência do Rio, que uma anti-Copacabana surgiria com força total. Lembrem do disco de estréia do performer Fausto Fawcett, de 87 -- aquele que tem "Kátia Flávia", "Chinesa Videomaker" e mais um punhado de pérolas -- que nos faz pensar o quanto um "desaparecimento" na multidão copacabanense poderia ser mais eficiente que arriscar-se nos guichês de aeroportos repletos de milicos.
É para um amplo apartamento na Av. Atlântica que o guerrilheiro Beto (Cláudio Marzo) carrega seu filho, Gabriel (Roberto Bataglin), e esperam. Beto inexplicavelmente some, reaparece de novo. Enquanto isso, Gabriel -- saído de um colégio interno -- quer levar uma vida normal. Impotente em relação ao pai e em relação ao mundo, ninguém gosta dele. Mas Copacabana é um lugar diferente e rico. Nele Gabriel se descobre, enquanto espera. Espera sempre.
Tudo o que é provisório na vida do rapaz, sob perspectiva histórica, nos é plenamente compreensível. Enquanto a realidade de Gabriel a que assistimos não se move, ou se move bem pouco, a do pai adivinhamos entre assaltos a banco, sequestros e fugas da polícia. Filme e conto significam mais pelo que não mostram do que propriamente por aquilo que é narrado do ponto de vista de um inocente solto à própria sorte.
Como sempre, o filme é inventário de apetrechos fabulosos do passado: a tv Philco branco e preto a valvula; o radinho de pilha tocando a falecidíssima Rádio Jornal do Brasil AM; a caixinha de fósforos da boate na rua Gustavo Sampaio, Leme; além da capanga de Cláudio Marzo, um clássico masculino que os trombadinhas de Copacabana adoravam.
Quando pai e filho vão ao cinema, temos uma dica do ano em que a história se passa -- 1972 --, pois assistem a "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro de Andrade. Já a tv Philco exibe o grupo Hues Corporation interpretando o trepidante hit "Rock the Boat". A canção fez sucesso no Brasil em 1974. Ou "Os Inconfidentes" andava reprisando na cidade ou a produção comeu mosca.
Não é o único erro: apesar da presença ocasional do pai, Gabriel insiste em procurá-lo numa investigação melancólica. Assim, chega à dona do apartamento, a perfumista Leonor Camargo (Suzana Vieira), que acabara de abrir uma boutique na rua Barata Ribeiro, 828 loja 22. Ele descobre a inauguração através de convites entregues pelo correio. E, se minutos antes, um letreiro indicava que estamos no dia 28 de novembro, os convites solicitam presença para o dia 14 de setembro. Além disso, o sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, acontecido em dezembro de 1970, é citado explicitamente, aumentando ainda mais a licença poética em relação às datas.
No aniversário do filho, Beto se esforça, leva um bolo de chocolate, mas assim que as transmissões televisivas se encerram (com a Sessão Coruja exibindo "East of Eden", de Elia Kazan) e o menino dorme, o militante parte novamente. "Fique agora na tranquilidade do seu lar", diz o locutor global. Mas Beto não tem lar. Seu porto seguro é a luta.
O cerco começa a se fechar quando Beto marca um "ponto" com Gabriel, em um bar de São Cristóvão, e não comparece. No meio da coisa pegando fogo, Murilo Salles arruma tempo para cenas de sexo insólitas: mantendo caso com uma dançarina balzaquiana da boate Twist, Gabriel inicialmente a maltrata, depois solicita que raspe os pêlos pubianos (!?!). Em troca, recompensa a pantera com um maço de dinheiro que o pai lhe deixara.
Refém do desterro, sentado no calçadão da praia em frente à rua Santa Clara, assistido por seu único amigo -- o vendedor de cachorro-quente -- Gabriel ainda busca um referencial paterno. Tão felizes nunca fomos -- sugerem os créditos, mas há nisso uma ambiguidade: tanto o conto quanto o filme são sobre amor. Amor trágico, verdade, mas alguma réstia de felicidade uniu aqueles dois homens, o grande e o pequeno, em busca de uma intimidade clandestina.
Com esse ardor de grito abortado nos subterrâneos da alma é que se desenha a história do pai zeloso e condenado em busca do filho, das raízes familiares que a luta interditou e do relâmpago de uma convivência estruturante na vida do rapaz.
Tanto sentimento Noll resumiu em cerca de 2.560 palavras de conto. Alguns anos depois, o jovem Murilo Salles incubiu-se de tarefa igualmente difícil: rever, em seu filme de estréia, "Nunca Fomos Tão Felizes" (1984), a obra-prima do escritor.
Mesmo que "Alguma Coisa Urgentemente" guarde idas e vindas fáceis para um roteiro de cinema, o perigo seria perder nesse movimento o impacto do texto. Principalmente o espírito de uma Copacabana sombria, diferente do estereótipo turístico e luminoso que nos acostumamos a conhecer.
Esse gosto por transformar o bairro mais famoso do Brasil em espaço dark foi também utilizado por Noll em "A Fúria do Corpo", seu romance de 1981. Embora já existisse no cinema e na literatura ("Eu Matei Lúcio Flávio" recria o balneário como uma terra sem lei) foi nos 80, coincidindo com a decadência do Rio, que uma anti-Copacabana surgiria com força total. Lembrem do disco de estréia do performer Fausto Fawcett, de 87 -- aquele que tem "Kátia Flávia", "Chinesa Videomaker" e mais um punhado de pérolas -- que nos faz pensar o quanto um "desaparecimento" na multidão copacabanense poderia ser mais eficiente que arriscar-se nos guichês de aeroportos repletos de milicos.
É para um amplo apartamento na Av. Atlântica que o guerrilheiro Beto (Cláudio Marzo) carrega seu filho, Gabriel (Roberto Bataglin), e esperam. Beto inexplicavelmente some, reaparece de novo. Enquanto isso, Gabriel -- saído de um colégio interno -- quer levar uma vida normal. Impotente em relação ao pai e em relação ao mundo, ninguém gosta dele. Mas Copacabana é um lugar diferente e rico. Nele Gabriel se descobre, enquanto espera. Espera sempre.
Tudo o que é provisório na vida do rapaz, sob perspectiva histórica, nos é plenamente compreensível. Enquanto a realidade de Gabriel a que assistimos não se move, ou se move bem pouco, a do pai adivinhamos entre assaltos a banco, sequestros e fugas da polícia. Filme e conto significam mais pelo que não mostram do que propriamente por aquilo que é narrado do ponto de vista de um inocente solto à própria sorte.
Como sempre, o filme é inventário de apetrechos fabulosos do passado: a tv Philco branco e preto a valvula; o radinho de pilha tocando a falecidíssima Rádio Jornal do Brasil AM; a caixinha de fósforos da boate na rua Gustavo Sampaio, Leme; além da capanga de Cláudio Marzo, um clássico masculino que os trombadinhas de Copacabana adoravam.
Quando pai e filho vão ao cinema, temos uma dica do ano em que a história se passa -- 1972 --, pois assistem a "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro de Andrade. Já a tv Philco exibe o grupo Hues Corporation interpretando o trepidante hit "Rock the Boat". A canção fez sucesso no Brasil em 1974. Ou "Os Inconfidentes" andava reprisando na cidade ou a produção comeu mosca.
Não é o único erro: apesar da presença ocasional do pai, Gabriel insiste em procurá-lo numa investigação melancólica. Assim, chega à dona do apartamento, a perfumista Leonor Camargo (Suzana Vieira), que acabara de abrir uma boutique na rua Barata Ribeiro, 828 loja 22. Ele descobre a inauguração através de convites entregues pelo correio. E, se minutos antes, um letreiro indicava que estamos no dia 28 de novembro, os convites solicitam presença para o dia 14 de setembro. Além disso, o sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, acontecido em dezembro de 1970, é citado explicitamente, aumentando ainda mais a licença poética em relação às datas.
No aniversário do filho, Beto se esforça, leva um bolo de chocolate, mas assim que as transmissões televisivas se encerram (com a Sessão Coruja exibindo "East of Eden", de Elia Kazan) e o menino dorme, o militante parte novamente. "Fique agora na tranquilidade do seu lar", diz o locutor global. Mas Beto não tem lar. Seu porto seguro é a luta.
O cerco começa a se fechar quando Beto marca um "ponto" com Gabriel, em um bar de São Cristóvão, e não comparece. No meio da coisa pegando fogo, Murilo Salles arruma tempo para cenas de sexo insólitas: mantendo caso com uma dançarina balzaquiana da boate Twist, Gabriel inicialmente a maltrata, depois solicita que raspe os pêlos pubianos (!?!). Em troca, recompensa a pantera com um maço de dinheiro que o pai lhe deixara.
Refém do desterro, sentado no calçadão da praia em frente à rua Santa Clara, assistido por seu único amigo -- o vendedor de cachorro-quente -- Gabriel ainda busca um referencial paterno. Tão felizes nunca fomos -- sugerem os créditos, mas há nisso uma ambiguidade: tanto o conto quanto o filme são sobre amor. Amor trágico, verdade, mas alguma réstia de felicidade uniu aqueles dois homens, o grande e o pequeno, em busca de uma intimidade clandestina.
5 comentários:
Andrea, devo dizer que o filme finalmente encontrou um texto a sua altura. Muito bom mesmo! Inclusive apontando as comidas de bola da produção em relação a datas. A balzaquiana que raspa os pêlos pubianos é Meiry Vieira, talvez em seu melhor momento nas telas.
Como toda grande resenha, essa me estimulou a rever Nunca Fomos Tão Felizes mais uma vez.
Beijos!
Boa lembrança, Andrea. O que mais gosto nesse filme é a capacidade de por em confronto, com sutileza e sem babaquice, o humano e o político (que é, em essência, humano).
Sergio, sempre bom ter você por aqui :) Obrigada, se o texto leva à curiosidade de revê-lo, a missão foi cumprida. E verdade, a pantera é a Meiry rs Beijos
Fofão, quando o cinema brasileiro acerta, ele traz uma sinceridade que chega a baratinar :)
A atmosfera pesada dos 1ºs anos 70
é bem retratada nesse filme.
Excelente filme, pouco conhecido
do grande público, infelizmente.
Olá. Não acho que houve erro em relação a data do convite de inauguração da loja. Me parece que aqueles convites que o garoto achou no apartamento simplesmente eram sobras da inauguração que já tinha acontecido. Quando ele vai até a loja, ela já está aberta.
Ótimo filme, deveria ser mais visto, mas como quase sempre acontece com os filmes nacionais, acaba sendo esquecido.
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