quinta-feira, junho 15, 2006

Gordos e Magros


Mário Carneiro anda pelas ruas de hoje sabendo que é um dos últimos sobreviventes da festa – a “ferveção” de algumas décadas atrás. Colaborador dos cinema novistas, fez a fotografia de obras seminais como “Porto das Caixas” (1960), de Paulo César Saraceni, e “Garrincha, a Alegria do Povo” (1962), de Joaquim Pedro de Andrade.

Referência na área – sobretudo em função da atividade como artista plástico, o que facilita obviamente a composição do trabalho de fotógrafo –, investiu uma única vez na direção em “Gordos e Magros” (1976). Conscientemente ou não, Carneiro escolheu para o ponto de partida do filme uma reunião de amigos: cabeças pensantes, não-pensantes, coadjuvantes e protagonistas do cotidiano carioca dos anos 70, dentro de uma tradicional mansão do outrora nobre bairro de Botafogo.

Ressaltada pela montagem de Marco Antonio Cury e pela música em tom de fanfarra, levemente orquestral, de Rogério Rossini, “Gordos e Magros” pode ser visto como uma comédia mezzo esquizofrênica, mezzo filosofal, dentro do filão de observar com acidez a “burguesia decadente”. “Tudo Bem”, de Arnaldo Jabor – um dos convidados, no filme –, aproveitou o mote dois anos depois. “Gente Fina é Outra Coisa” (1977), de Antônio Calmon – responsável pelos diálogos adicionais, ao lado do pasquinense Ivan Lessa e de Teresa Queiroz Guimarães – idem.

Ferdy Carneiro assina a direção de arte. Ferdy, falecido em 2003, foi um dos criadores da Banda de Ipanema. Urbanista-cenógrafo que extraía a história do Rio de Janeiro para as telas, pinçou do meio do cenário urbano raridades arquitetônicas como as que se vê não só em “Gordos e Magros” mas também em “Anchieta, José do Brasil” (1977), de Saraceni.

Neste círculo de colaborações, aumentam a trupe Mário da Silva no som direto – escolha que agrega valor às intenções iconoclastas do diretor –; Sergio Luz e Marília Carneiro nos figurinos; ela, ex-esposa de Mário, irmã da atriz Maria Lúcia Dahl –; Marco Alberg, Luiz Carlos Lacerda e Marília Alvim – diretores de produção.

Em relação à trama, Helena (Tonia Carreiro) convive às turras com o o marido Jorge e em especial com o filho Carlos (Carlos Kroeber), um dândi que não pára quieto e comanda a ação praticamente quadro a quadro.

Carneiro não poderia ter acertado melhor na escolha de Kroeber – com quem conviveu durante as filmagens de “A Casa Assassinada” (71), mais uma vez de Saraceni e mais uma vez fotografia sua. Sem Kroeber, “Gordos e Magros” seria de um laconismo sepulcral, sem ter alguém que entendesse os subtextos e o humor tragicômico dos esquetes que marcam o filme.

Ao escapar da mansão e dos convidades – que como dissemos, abrem o longa – Carlão chega ao antigo Cine Bruni em Botafogo e lá conhece Sakhan (Jarbas Cumé-Que-Pode), faquir que tenta quebrar o recorde mundial da abstinência alimentar.

Empresariado por Benedito (Nelson Xavier) e namorado de Edméia (Maria Sílvia), Sakhan mal sabe, mas chegará ao estrelato antes disso, conseguindo o campeonato sul-americano do jejum. A ocasião leva o trio – agora quarteto, com a presença de Carlos – a relembrar o passado que é contado sem qualquer pretensão cronológica e tendo no encadeamento de flash-backs a saída para marcar o discurso do personagem-chave, o Carlão, o gordo do título.

Visto de fraldas, lutando sumô, nu, roubando bolo em festinha de aniversário, correndo atrás das empregadas, apaixonando-se pela tia (Maria Lúcia Dahl) ou, adolescente, indo ao Museu do Sexo – encontra Roberto Bonfim e Hugo Carvana, em pontas que justificam o clima de camaradagem do filme –, Carlão assume com folgas o protagonista em cujo olhar sabemos sobre aquelas críticas à “pobre família rica”: desagregada e hipócrita, apesar de bem maluquinha.

Há tempo ainda para assistirmos a Wilson Grey e Zezé Macedo, impagáveis como Jesus Cristo e Virgem Maria numa procissão do interior, reencenando a Paixão de Cristo – dentro de mais uma cena de nostalgia dos quatro. Grey pára num boteco no meio das atividades e precisa ser retirado por Macedo, que grita sem parar “Cristo, mas que coisa” e outros impropérios parecidos, encarnando uma dona-de-casa suburbana.

Mas a melhor cena surge na briga entre Sakhan e Carlão, vestidos respectivamente de índio Cheyenne e militar da cavalaria norte-americana. O estilo mangüaçado de Cumé-Que-Pode rouba completamente as atenções, passando a impressão de que ele não está entendendo bulhufas dos diálogos, cheios dos clichês do faroeste.

O roteiro de Mário Carneiro leva à essa seqüência alucinante de situações, mesclada ao estilo do diretor que, por força da herança profissional, opera forte com o planejamento da câmera. Carneiro não retornou à direção depois de “Gordos e Magros”, mas no recente “Harmada” (2003) de Maurício Cappovila, estava novamente na fotografia. Entre uma saída e outra do atelier, bem que poderia estar elocubrando uma volta. Para matar a curiosidade de muita gente, que só conhece este seu trabalho na direção como uma lenda.

5 comentários:

Anônimo disse...

Cara Andréia,
"Gordos e Magros" é mesmo genial, pena que o Mário Carneiro não tenha voltado nunca mais a direção. Faço minhas suas palavras sobre o Kroeber. Aliás mesmo no "Bonitinha, Mas Ordinária" embora ele seja um coadjuvante ele dá um show a parte. Nesse filme nem se conta, pode-se lista Kroeber entre os cinco maiores atores que o cinema brasileiro já conheceu.

Anônimo disse...

1- "Visto de fraldas, lutando sumô, nu, roubando bolo em festinha de aniversário"

2- "Wilson Grey e Zezé Macedo, impagáveis como Jesus Cristo e Virgem Maria numa procissão do interior"

3 "O estilo mangüaçado de Cumé-Que-Pode"

RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ RÁ!!!! Que saudade daqui, Andréa. E viva o fim do meu exílio virtual, que não consegue ser eclipsado nem pelo fato de "Harmada" (pra mim o pior filme brasileiro já feito sem contar os do Glauber, e um dos piores do mundo) ter se imiscuído com o diretor do único produto audiovisual em que eu vi Carlos Kroeber sem bigode. Pena que de "Gordos e Magros" eu só lembre disso e de uma sala de estar meio animada (risos).

Bem, tenho que rever urgentemente, já preparado psicologicamente pro fato de que não vai ser tão certeiramente engraçado como a sua resenha.

Anônimo disse...

O Matheus está 'absolutamente certo', o Carlos Kroeber é seguramente um dos 5 maiores atores nacionais e o texto sugere um filme impagável e como aponta o Luiz dá receio de o filme não fazer jus ao talento da Andréa, mas como o texto citou filmes q. Carneiro fotografou p/ Saraceni, pergunto a Andréa: o q. acha de "O Viajante"?

Andrea Ormond disse...

Matheus, no mínimo por "A Casa Assassinada" o Carlos Kroeber deveria ser mesmo lembrado como um dos cinco maiores atores brasileiros. Um cara inteligentíssimo, que sabia usar do tipo físico para quebrar as expectativas do público, como no "Gordos e magros". Um desprendimento total, brincando com o fato de estar acima do peso, na maior displicência.

Luiz, obrigada. Reveja o filme, vale a pena. A sala de estar animada é uma fração do que acontece, as externas são muito interessantes. Algumas, realmente hilárias.

Edu, o Kroeber faz falta mesmo, sem ele o "Gordos e Magros" não teria a mesma profundidade nas caricaturas. "O Viajante" é um filmaço, mas dentre as adaptações do Saraceni para a obra do Lucio Cardoso gostei mais de "A Casa Assassinada".

Ricardo M. disse...

Belíssimo Carlos Kroeber, infelizmente tão pouco lembrado, mas com inumeras atuações marcantes! além dos filmes já mencionados, gostaria de destacar também sua atuação em Joana Francesa!