Eixo da inquietação khouriana – a ponto de ser eleito o filme preferido do diretor, Walter Hugo Khouri – “O Corpo Ardente” (1966) manipula erotismo e esterilidade emocional a partir dos arquétipos de mãe – Márcia (Barbara Laage) – e filho – Roberto (Wilfred Khouri).
Os intérpretes mudariam quinze anos depois, em “Eros, O Deus do Amor” (1981). Dina Sfat no referencial materno, Roberto Maia no papel de Marcelo – alter-ego mais conhecido do realizador paulistano.
Note-se que a denominação diferente não impede que Roberto também seja Marcelo, pois o distanciamento entre ambos se dá no plano cronológico, e não essencial. Roberto vive a infância – como o Hugo de “Amor Estranho Amor”. Marcelo atravessa a adolescência – vide “O Último Êxtase” – e a maturidade – a exemplo de “Eros” e “Eu”.
Há, inclusive, um prolongamento natural entre “Eros” e “O Corpo Ardente”. Se o primeiro consagra o homem de meia-idade, insaciável, vazio, o segundo remete à fonte, ao início de tudo, e aproxima-se da mãe. Márcia é retratada por inteiro; Roberto-Marcelo simplesmente coadjuva.
Casada – com o personagem inominado de Pedro Paulo Hatheyer –, adúltera – com os de Mario Benvenutti e Miguel di Pietro –, traída – pela de Lilian Lemmertz, estreando no cinema –, a mulher de trinta e tantos anos procura refúgio no sítio da família, na região serrana, aonde passava férias quando criança. Leva consigo Roberto, e se a vegetação soporífera ao redor não consegue aplacar o comportamento depressivo, decide subir as montanhas como fazia quando pequena. Volta à infância, arrasta o filho junto e através do passado reconstrói o presente: atinge o cume e ao chegar por lá, consagra o filho como ídolo, colocando-o no trono de pedra. Escolhe para cetro um galho de árvore e, como ornamento, uma pedra oval, na mão esquerda.
― Sua Majestade, o rei das pedras. O rei.
― Vem aqui comigo.
― Não, [olhando para o lado] eu sento aqui. Porque o rei é você.
Percebam a cena como quem se aproxima de um achado gigantesco, o fio da meada. Roberto no topo do nada, no meio da neblina, estabelecendo com a mãe um vínculo que por ser intraduzível, é recontado em imagem.
O amor a que assistimos vem embrulhado na memória, daí a composição do quadro envolver a neblina típica das cordilheiras de Itatiaia, cidade ao sul do Estado do Rio. A memória do Roberto-Marcelo passará a ser reconhecida em outros filmes de Khouri pelo uso desta locação. Aqueles que ainda não associaram o lugar ao fato, basta lembrarem-se das últimas cenas de “Eros”. O trono de pedra expressa o drama edipiano.
Roberto veria, ainda, o cavalo puro sangue, indomável – simbologia evidente para o desejo sexual, compartilhado por mãe e filho, que então percebe o rubor da mãe. O nervosismo do filho retorna nos momentos finais, quando assistem juntos às gravações realizadas numa câmera Super-8, presente do pai. A criada, Glória (Dina Sfat, em seu segundo filme) aparece rapidamente.
O pai em “Eros” vibrava com os instintos priápicos de Marcelo, cedendo-lhe a garçonnière. Aqui em “Corpo Ardente” é ele que ordena a perseguição ao cavalo, a mãe ao volante do carro, o instante do close pela crina e músculos do animal. Em poucos takes “O Corpo Ardente” faz convergir pai, mãe e filho, e deste caldo temos uma espécie de prefácio para as imperfeições futuras de Marcelo.
Aspecto crucial para tanto, a montagem de Mauro Alice excede as expectativas. Através dela o humor de Márcia é percebido por Roberto e pelo público. Um exemplo talvez explique melhor. Depois das férias na casa de campo, Márcia olha para o afresco no fundo de um chafariz, imagem que simula a morte por afogamento da protagonista. Afasta-o com um golpe das mãos sobre a água, as ondinhas balançam a visão do desenho que, mesmo assim, permanece ao fundo.
A própria passagem do campo à cidade é apresentada em “O Corpo Ardente” a partir de descontinuidades temporais, que se alternam em pelo menos cinco momentos. Tempo 1: o affair de Márcia e Benvenutti; tempo 2: a insatisfação de Márcia com Benevenutti; tempo 3: o affair do marido com Lemmertz; tempo 4: a estação em Itatiaia; tempo 5: a festa que inicia, permeia e finaliza o filme. Na festa, há a promessa de um tempo 6, não mostrado à platéia, em que Márcia envolve-se com o novo amante (Pietro).
Mas aliada à ascese artística de Khouri – e que, conforme visto, extrapolou as fronteiras do filme –, existem curiosidades em “O Corpo Ardente” que nem sempre chegam ao conhecimento do público. Como nota de pé de página, podemos citar a toilette da francesa Barbara Laage, confeccionada pelo costureiro Clodovil, em sua fase dândi.
Quanto à mais pitoresca, refere-se ao diretor de produção, David Cardoso – em ponta, ao lado de Sérgio Hingst, como peões. Reza a lenda que o embaixador do Mato Grosso do Sul foi encarregado de tomar conta do alazão. Dentre outras tarefas, teve de acalmá-lo sexualmente – recurso comum em fazendas – com uma loção.
Em “O Corpo Ardente” Khouri ensaiava a criação de uma narrativa fílmica que se irradiaria por anos a fio. Saído da refrega de “Noite Vazia” (1964), em ocasiões posteriores precisou ser explícito, carregando nas cores para arrebanhar a bilheteria e prosseguir. No país que vira as costas aos que não se instalam nos monopólios bancados por incentivos governamentais ou privados, admira-se que existam épicos modernos, como a obra seminal que revisitamos agora. Logo ali, na esquina da eternidade alguém consolidou a paixão do filho pela mãe altiva; presságio de um amor primitivo e traiçoeiro.
Os intérpretes mudariam quinze anos depois, em “Eros, O Deus do Amor” (1981). Dina Sfat no referencial materno, Roberto Maia no papel de Marcelo – alter-ego mais conhecido do realizador paulistano.
Note-se que a denominação diferente não impede que Roberto também seja Marcelo, pois o distanciamento entre ambos se dá no plano cronológico, e não essencial. Roberto vive a infância – como o Hugo de “Amor Estranho Amor”. Marcelo atravessa a adolescência – vide “O Último Êxtase” – e a maturidade – a exemplo de “Eros” e “Eu”.
Há, inclusive, um prolongamento natural entre “Eros” e “O Corpo Ardente”. Se o primeiro consagra o homem de meia-idade, insaciável, vazio, o segundo remete à fonte, ao início de tudo, e aproxima-se da mãe. Márcia é retratada por inteiro; Roberto-Marcelo simplesmente coadjuva.
Casada – com o personagem inominado de Pedro Paulo Hatheyer –, adúltera – com os de Mario Benvenutti e Miguel di Pietro –, traída – pela de Lilian Lemmertz, estreando no cinema –, a mulher de trinta e tantos anos procura refúgio no sítio da família, na região serrana, aonde passava férias quando criança. Leva consigo Roberto, e se a vegetação soporífera ao redor não consegue aplacar o comportamento depressivo, decide subir as montanhas como fazia quando pequena. Volta à infância, arrasta o filho junto e através do passado reconstrói o presente: atinge o cume e ao chegar por lá, consagra o filho como ídolo, colocando-o no trono de pedra. Escolhe para cetro um galho de árvore e, como ornamento, uma pedra oval, na mão esquerda.
― Sua Majestade, o rei das pedras. O rei.
― Vem aqui comigo.
― Não, [olhando para o lado] eu sento aqui. Porque o rei é você.
Percebam a cena como quem se aproxima de um achado gigantesco, o fio da meada. Roberto no topo do nada, no meio da neblina, estabelecendo com a mãe um vínculo que por ser intraduzível, é recontado em imagem.
O amor a que assistimos vem embrulhado na memória, daí a composição do quadro envolver a neblina típica das cordilheiras de Itatiaia, cidade ao sul do Estado do Rio. A memória do Roberto-Marcelo passará a ser reconhecida em outros filmes de Khouri pelo uso desta locação. Aqueles que ainda não associaram o lugar ao fato, basta lembrarem-se das últimas cenas de “Eros”. O trono de pedra expressa o drama edipiano.
Roberto veria, ainda, o cavalo puro sangue, indomável – simbologia evidente para o desejo sexual, compartilhado por mãe e filho, que então percebe o rubor da mãe. O nervosismo do filho retorna nos momentos finais, quando assistem juntos às gravações realizadas numa câmera Super-8, presente do pai. A criada, Glória (Dina Sfat, em seu segundo filme) aparece rapidamente.
O pai em “Eros” vibrava com os instintos priápicos de Marcelo, cedendo-lhe a garçonnière. Aqui em “Corpo Ardente” é ele que ordena a perseguição ao cavalo, a mãe ao volante do carro, o instante do close pela crina e músculos do animal. Em poucos takes “O Corpo Ardente” faz convergir pai, mãe e filho, e deste caldo temos uma espécie de prefácio para as imperfeições futuras de Marcelo.
Aspecto crucial para tanto, a montagem de Mauro Alice excede as expectativas. Através dela o humor de Márcia é percebido por Roberto e pelo público. Um exemplo talvez explique melhor. Depois das férias na casa de campo, Márcia olha para o afresco no fundo de um chafariz, imagem que simula a morte por afogamento da protagonista. Afasta-o com um golpe das mãos sobre a água, as ondinhas balançam a visão do desenho que, mesmo assim, permanece ao fundo.
A própria passagem do campo à cidade é apresentada em “O Corpo Ardente” a partir de descontinuidades temporais, que se alternam em pelo menos cinco momentos. Tempo 1: o affair de Márcia e Benvenutti; tempo 2: a insatisfação de Márcia com Benevenutti; tempo 3: o affair do marido com Lemmertz; tempo 4: a estação em Itatiaia; tempo 5: a festa que inicia, permeia e finaliza o filme. Na festa, há a promessa de um tempo 6, não mostrado à platéia, em que Márcia envolve-se com o novo amante (Pietro).
Mas aliada à ascese artística de Khouri – e que, conforme visto, extrapolou as fronteiras do filme –, existem curiosidades em “O Corpo Ardente” que nem sempre chegam ao conhecimento do público. Como nota de pé de página, podemos citar a toilette da francesa Barbara Laage, confeccionada pelo costureiro Clodovil, em sua fase dândi.
Quanto à mais pitoresca, refere-se ao diretor de produção, David Cardoso – em ponta, ao lado de Sérgio Hingst, como peões. Reza a lenda que o embaixador do Mato Grosso do Sul foi encarregado de tomar conta do alazão. Dentre outras tarefas, teve de acalmá-lo sexualmente – recurso comum em fazendas – com uma loção.
Em “O Corpo Ardente” Khouri ensaiava a criação de uma narrativa fílmica que se irradiaria por anos a fio. Saído da refrega de “Noite Vazia” (1964), em ocasiões posteriores precisou ser explícito, carregando nas cores para arrebanhar a bilheteria e prosseguir. No país que vira as costas aos que não se instalam nos monopólios bancados por incentivos governamentais ou privados, admira-se que existam épicos modernos, como a obra seminal que revisitamos agora. Logo ali, na esquina da eternidade alguém consolidou a paixão do filho pela mãe altiva; presságio de um amor primitivo e traiçoeiro.
7 comentários:
Estou atualmente gostando muito da obra do nosso WHK. O filme que me pirou por ele foi "Convite Ao Prazer" que é extraordinário. Gosto de Noite Vazia, mas acho que preciso rever. As Amorosas eu gosto, e do episódio nas Cariocas, gosto muito. Acho que preciso olhar a obra dele com mais atenção, pra entrar de cabeça nela. O melhor é o personagem Marcelo, é totalmente genial. O Marcelo Carrard do Mundo Paura, me disse que quando ele conheceu o Walter Hugo Khouri pessoalmente e disse que o nome dele era o Marcelo, os olhos do Walter brilharam !!! Sensacional,
Cara Andréia, andei pensando numa coisa, você pode não concordar mas creio que é a pura verdade: o Walter é o Nelson Rodrigues do cinema. Além dos temas e das obras dos dois se pareçam muita, os dois foram acusados por pseudointelectuais de serem alienados, reacionários....Enfim, e parece que só agora com a morte deles, eles vão ser defidamente reconhecidos por suas obras. Os dois eram homens dignos e fugiam desse tipo de pessoas e sempre faziam as coisas em seu estilo próprio. Exemplo: nos filmes de Walter, sempre toca jazz e nos contos, peças e romances de NR sempre se fala "meu filho" ou "é batata !", sempre todos. Nelson sempre escrevia em terceira pessoa, Walter sempre usava o subnome Marcelo. Walter amava e glorificava São Paulo, NR idem com o Rio de Janeiro. Os dois nunca precisaram fazer obras sobre cangaceiros, reforma agrária ou qualquer coisa do gênero. São dois gigantes mesmo, não tem como.
Oi Matheus, vi muito o "Convite ao Prazer" nas reprises da televisão, pré-Canal Brasil. Era tudo com base na Band, e algumas locadoras mais selecionadas. O interessante do "Convite" é que mesmo sem ter muito respaldo pela crítica, ele foi a porta de entrada pra muita gente como nós, que depois passou a gostar e estudar a obra do Khouri. O filme é super atraente e profundo ao mesmo tempo. Mas o meu preferido ainda é "Palácio dos Anjos" :) Sobre a tirada do Carrard, fico imaginando aqui que o Khouri deve ter tb sentido uma felicidade imensa, de ver que alguém sabia e reconhecia o trabalho dele com tanta propriedade. Concordo com o que vc falou sobre o Nelson. Artistas desse nível criam um universo do tipo que a gente reconhece à distância. Por exemplo, não dá pra não rir junto com o Nelson das frases que ele colocava: "Cadelão! Cadelão!" Ele sabia jogar com a platéia como poucos. O Khouri tb é um desses mestres, que merecia mostras e mais mostras lotadas, cheias de gente se emocionando com a grandeza do que ele fazia. E ainda sobre o Khouri, semana que vem vou colocar no ar uma entrevista, cheia de histórias deliciosas sobre ele :) Beijão.
Entrevista?? Fiquei ancioso com a idéia.
Bom, eu não me lembro de vc. já ter dito q. "O Palácio dos Anjos" era seu filme preferido do Walter, e como vc. sabe, é o meu tb. Fico feliz com a coincidência, indicador de q. nosso olhar sobre a obra do mestre é mesmo parecido.
O texto sobre "O Corpo Ardente" está ótimo e aproveito prá dizer q. acharam a cópia de "Lourdes,..." e em breve ele entrará na programação do cineclube beco do rato, semana q. vem, se vc. puder, faço novo contato com eles, p/ 'pressionar' (hehehe) sobre a data de exibição, gostaria muito q. vc. e a Carol assistissem esse meu trabalho em telona, é essencialmente um filme sobre a ascese.
Se como dizem a obra de Antonioni é cara a obra de Khouri, preciso ver filmes do diretor brasileiro (ainda não conheço nada seu) - tomara que que seja totalmente diferente!
Oi Edu, e o festival lá em Tiradentes, como foi? Já te disse uma vez que o "Palácio dos Anjos" é meu Khouri preferido ( o segundo é "Eros"), dê uma olhada nos arquivos aqui ao lado na resenha sobre o filme :) Pode deixar que vou pressionar lá no Beco para passarem o "Lourdes" e estaremos presentes no dia, com certeza.
Oi Marcos Aurélio, assista Khouri sim e escreva algo sobre ele no seu belo blog :) Um abração pra vc.
Encontrei o filme,vou ver.Gostei da lenda sobre o cavalo e o David.
Postar um comentário