quinta-feira, janeiro 19, 2006

O Corpo Ardente


Eixo da inquietação khouriana – a ponto de ser eleito o filme preferido do diretor, Walter Hugo Khouri – “O Corpo Ardente” (1966) manipula erotismo e esterilidade emocional a partir dos arquétipos de mãe – Márcia (Barbara Laage) – e filho – Roberto (Wilfred Khouri).

Os intérpretes mudariam quinze anos depois, em “Eros, O Deus do Amor” (1981). Dina Sfat no referencial materno, Roberto Maia no papel de Marcelo – alter-ego mais conhecido do realizador paulistano.

Note-se que a denominação diferente não impede que Roberto também seja Marcelo, pois o distanciamento entre ambos se dá no plano cronológico, e não essencial. Roberto vive a infância – como o Hugo de “Amor Estranho Amor”. Marcelo atravessa a adolescência – vide “O Último Êxtase” – e a maturidade – a exemplo de “Eros” e “Eu”.

Há, inclusive, um prolongamento natural entre “Eros” e “O Corpo Ardente”. Se o primeiro consagra o homem de meia-idade, insaciável, vazio, o segundo remete à fonte, ao início de tudo, e aproxima-se da mãe. Márcia é retratada por inteiro; Roberto-Marcelo simplesmente coadjuva.

Casada – com o personagem inominado de Pedro Paulo Hatheyer –, adúltera – com os de Mario Benvenutti e Miguel di Pietro –, traída – pela de Lilian Lemmertz, estreando no cinema –, a mulher de trinta e tantos anos procura refúgio no sítio da família, na região serrana, aonde passava férias quando criança. Leva consigo Roberto, e se a vegetação soporífera ao redor não consegue aplacar o comportamento depressivo, decide subir as montanhas como fazia quando pequena. Volta à infância, arrasta o filho junto e através do passado reconstrói o presente: atinge o cume e ao chegar por lá, consagra o filho como ídolo, colocando-o no trono de pedra. Escolhe para cetro um galho de árvore e, como ornamento, uma pedra oval, na mão esquerda.

― Sua Majestade, o rei das pedras. O rei.
― Vem aqui comigo.
― Não, [olhando para o lado] eu sento aqui. Porque o rei é você.

Percebam a cena como quem se aproxima de um achado gigantesco, o fio da meada. Roberto no topo do nada, no meio da neblina, estabelecendo com a mãe um vínculo que por ser intraduzível, é recontado em imagem.

O amor a que assistimos vem embrulhado na memória, daí a composição do quadro envolver a neblina típica das cordilheiras de Itatiaia, cidade ao sul do Estado do Rio. A memória do Roberto-Marcelo passará a ser reconhecida em outros filmes de Khouri pelo uso desta locação. Aqueles que ainda não associaram o lugar ao fato, basta lembrarem-se das últimas cenas de “Eros”. O trono de pedra expressa o drama edipiano.

Roberto veria, ainda, o cavalo puro sangue, indomável – simbologia evidente para o desejo sexual, compartilhado por mãe e filho, que então percebe o rubor da mãe. O nervosismo do filho retorna nos momentos finais, quando assistem juntos às gravações realizadas numa câmera Super-8, presente do pai. A criada, Glória (Dina Sfat, em seu segundo filme) aparece rapidamente.

O pai em “Eros” vibrava com os instintos priápicos de Marcelo, cedendo-lhe a garçonnière. Aqui em “Corpo Ardente” é ele que ordena a perseguição ao cavalo, a mãe ao volante do carro, o instante do close pela crina e músculos do animal. Em poucos takes “O Corpo Ardente” faz convergir pai, mãe e filho, e deste caldo temos uma espécie de prefácio para as imperfeições futuras de Marcelo.

Aspecto crucial para tanto, a montagem de Mauro Alice excede as expectativas. Através dela o humor de Márcia é percebido por Roberto e pelo público. Um exemplo talvez explique melhor. Depois das férias na casa de campo, Márcia olha para o afresco no fundo de um chafariz, imagem que simula a morte por afogamento da protagonista. Afasta-o com um golpe das mãos sobre a água, as ondinhas balançam a visão do desenho que, mesmo assim, permanece ao fundo.

A própria passagem do campo à cidade é apresentada em “O Corpo Ardente” a partir de descontinuidades temporais, que se alternam em pelo menos cinco momentos. Tempo 1: o affair de Márcia e Benvenutti; tempo 2: a insatisfação de Márcia com Benevenutti; tempo 3: o affair do marido com Lemmertz; tempo 4: a estação em Itatiaia; tempo 5: a festa que inicia, permeia e finaliza o filme. Na festa, há a promessa de um tempo 6, não mostrado à platéia, em que Márcia envolve-se com o novo amante (Pietro).

Mas aliada à ascese artística de Khouri – e que, conforme visto, extrapolou as fronteiras do filme –, existem curiosidades em “O Corpo Ardente” que nem sempre chegam ao conhecimento do público. Como nota de pé de página, podemos citar a toilette da francesa Barbara Laage, confeccionada pelo costureiro Clodovil, em sua fase dândi.

Quanto à mais pitoresca, refere-se ao diretor de produção, David Cardoso – em ponta, ao lado de Sérgio Hingst, como peões. Reza a lenda que o embaixador do Mato Grosso do Sul foi encarregado de tomar conta do alazão. Dentre outras tarefas, teve de acalmá-lo sexualmente – recurso comum em fazendas – com uma loção.

Em “O Corpo Ardente” Khouri ensaiava a criação de uma narrativa fílmica que se irradiaria por anos a fio. Saído da refrega de “Noite Vazia” (1964), em ocasiões posteriores precisou ser explícito, carregando nas cores para arrebanhar a bilheteria e prosseguir. No país que vira as costas aos que não se instalam nos monopólios bancados por incentivos governamentais ou privados, admira-se que existam épicos modernos, como a obra seminal que revisitamos agora. Logo ali, na esquina da eternidade alguém consolidou a paixão do filho pela mãe altiva; presságio de um amor primitivo e traiçoeiro.

7 comentários:

Anônimo disse...

Estou atualmente gostando muito da obra do nosso WHK. O filme que me pirou por ele foi "Convite Ao Prazer" que é extraordinário. Gosto de Noite Vazia, mas acho que preciso rever. As Amorosas eu gosto, e do episódio nas Cariocas, gosto muito. Acho que preciso olhar a obra dele com mais atenção, pra entrar de cabeça nela. O melhor é o personagem Marcelo, é totalmente genial. O Marcelo Carrard do Mundo Paura, me disse que quando ele conheceu o Walter Hugo Khouri pessoalmente e disse que o nome dele era o Marcelo, os olhos do Walter brilharam !!! Sensacional,

Anônimo disse...

Cara Andréia, andei pensando numa coisa, você pode não concordar mas creio que é a pura verdade: o Walter é o Nelson Rodrigues do cinema. Além dos temas e das obras dos dois se pareçam muita, os dois foram acusados por pseudointelectuais de serem alienados, reacionários....Enfim, e parece que só agora com a morte deles, eles vão ser defidamente reconhecidos por suas obras. Os dois eram homens dignos e fugiam desse tipo de pessoas e sempre faziam as coisas em seu estilo próprio. Exemplo: nos filmes de Walter, sempre toca jazz e nos contos, peças e romances de NR sempre se fala "meu filho" ou "é batata !", sempre todos. Nelson sempre escrevia em terceira pessoa, Walter sempre usava o subnome Marcelo. Walter amava e glorificava São Paulo, NR idem com o Rio de Janeiro. Os dois nunca precisaram fazer obras sobre cangaceiros, reforma agrária ou qualquer coisa do gênero. São dois gigantes mesmo, não tem como.

Andrea Ormond disse...

Oi Matheus, vi muito o "Convite ao Prazer" nas reprises da televisão, pré-Canal Brasil. Era tudo com base na Band, e algumas locadoras mais selecionadas. O interessante do "Convite" é que mesmo sem ter muito respaldo pela crítica, ele foi a porta de entrada pra muita gente como nós, que depois passou a gostar e estudar a obra do Khouri. O filme é super atraente e profundo ao mesmo tempo. Mas o meu preferido ainda é "Palácio dos Anjos" :) Sobre a tirada do Carrard, fico imaginando aqui que o Khouri deve ter tb sentido uma felicidade imensa, de ver que alguém sabia e reconhecia o trabalho dele com tanta propriedade. Concordo com o que vc falou sobre o Nelson. Artistas desse nível criam um universo do tipo que a gente reconhece à distância. Por exemplo, não dá pra não rir junto com o Nelson das frases que ele colocava: "Cadelão! Cadelão!" Ele sabia jogar com a platéia como poucos. O Khouri tb é um desses mestres, que merecia mostras e mais mostras lotadas, cheias de gente se emocionando com a grandeza do que ele fazia. E ainda sobre o Khouri, semana que vem vou colocar no ar uma entrevista, cheia de histórias deliciosas sobre ele :) Beijão.

Anônimo disse...

Entrevista?? Fiquei ancioso com a idéia.

Bom, eu não me lembro de vc. já ter dito q. "O Palácio dos Anjos" era seu filme preferido do Walter, e como vc. sabe, é o meu tb. Fico feliz com a coincidência, indicador de q. nosso olhar sobre a obra do mestre é mesmo parecido.

O texto sobre "O Corpo Ardente" está ótimo e aproveito prá dizer q. acharam a cópia de "Lourdes,..." e em breve ele entrará na programação do cineclube beco do rato, semana q. vem, se vc. puder, faço novo contato com eles, p/ 'pressionar' (hehehe) sobre a data de exibição, gostaria muito q. vc. e a Carol assistissem esse meu trabalho em telona, é essencialmente um filme sobre a ascese.

Anônimo disse...

Se como dizem a obra de Antonioni é cara a obra de Khouri, preciso ver filmes do diretor brasileiro (ainda não conheço nada seu) - tomara que que seja totalmente diferente!

Andrea Ormond disse...

Oi Edu, e o festival lá em Tiradentes, como foi? Já te disse uma vez que o "Palácio dos Anjos" é meu Khouri preferido ( o segundo é "Eros"), dê uma olhada nos arquivos aqui ao lado na resenha sobre o filme :) Pode deixar que vou pressionar lá no Beco para passarem o "Lourdes" e estaremos presentes no dia, com certeza.

Oi Marcos Aurélio, assista Khouri sim e escreva algo sobre ele no seu belo blog :) Um abração pra vc.

ADEMAR AMANCIO disse...

Encontrei o filme,vou ver.Gostei da lenda sobre o cavalo e o David.