quarta-feira, setembro 03, 2014

Noite em Chamas


Quando “Noite em Chamas” (1978) estreou no Marabá, corria glorioso o setembro do ano em que o Brasil assistia à febre de “Os Embalos de Sábado a Noite”, que estreara em julho. Provincianos que só, muitos de nossos conterrâneos se assustaram ao descobrir que John Travolta não era cantor de nenhuma música, apenas o dançarino Tony Manero. 

E foi para se aproveitar da jequice extrema de um país fechadíssimo, que a Boca do Lixo paulistana conseguiu requentar o fenômeno do cinema catástrofe – lembrem de “Aeroporto” (1970), “Inferno na Torre” (1973) ou “Terremoto” (1974) – criando sua versão um tanto ultrapassada: o hotel, os dramas dos hóspedes, um incêndio terrível. Você estava na Avenida Ipiranga, na altura do número 727, não custava pagar o ingresso baratinho e se deleitar com um elenco inexorável: Maria Lucia Dahl, Zilda Mayo, Benjamin Cattan, Helena Ramos e quem mais estivesse passando pela rua do Triumpho na data das filmagens.

Ah, sim: direção dele, o grande Jean Garrett. E uma mãozinha no roteiro de Carlos Reichenbach. Isso faz toda a diferença. Porque mesmo que a publicidade o vendesse como uma “superprodução”, ao custo de “seis milhões de cruzeiros, 45 atores, mil extras e sessenta e cinco dias de filmagens”, “Noite em Chamas” não tem uma única cena que justifique este desperdício. É ruim, pobre como espetáculo. Porém, seguindo a tradição da Boca e de Garrett, um achado enquanto drama de costumes.

Praga do futuro século XXI, em pleno 78 das calças boca de sino e das meias lurex, Garrett tenta contextualizar sua obra com um arremedo politicamente correto: em entrevista para Jairo Ferreira na Folha de São Paulo, afirmou que se interessava por um novo personagem, “o homem urbano pressionado pela máquina social”. E que não estava imitando “Inferno na Torre”, pois não era um “colonizado cultural”.

Justiça seja feita: os dramas de Garrett eram paulistaníssimos. João (Tony Ferreira), o funcionário psicótico que quer colocar fogo no hotel, é premido por uma exigência de subdesenvolvida operância que só São Paulo tem a hipocrisia de causar. Querem que ele faça tudo, mas ganha uma miséria, coitado. Um dia, João surta. O hotel Passport (na verdade, Comodoro, na avenida Duque de Caxias) está ameaçado. A fauna que habita suas entranhas corre perigo.

E que fauna, chuchus. Até o Jassa, o cabeleireiro do Silvio Santos, faz uma pontinha. O ônibus pára e João, o funcionário, desce, aparentemente vindo da rodoviária (em 78, a rodoviária ainda ficava ali perto, na Luz). Em seguida Carlão Reichenbach, potente e irônico, pressiona o porteiro do hotel em busca de informações jornalísticas. Os quartos têm colcha de chenile, em um clima mais “Romance da Empregada” (1987) do que Maksoud Plaza. Laura (Zilda Mayo) se encaminha para o hotel. Será preterida pelo amante.

A prostituição corre solta no antro. Lola Brah sobe o elevador com um poodle preto. Carlão Reichenbach continua sua investigação: procura um assassino que estava escondido em um dos quartos. A história do assassino inseguro, dependente da proteção paterna, é levemente inspirada em Michel Frank e no caso Cláudia Lessin, recém-acontecido. Maria Lucia Dahl, loura como uma pré-Xuxa, é a atriz de pornochanchadas Bete Lemos. Ela quer morrer. Estava no lugar certo.

Aí vem a cena linda, de Laura trepando e rompendo com o amante, enquanto a esposa está na porta ao lado. Quem inventou aquilo devia ter uma cátedra de cafajestice em alguma universidade. A trilha sonora apelativa, a maquiagem pesadíssima de Zilda Mayo. Notem, o Brasil continua cheio daquelas mulheres e nosso cinema hoje se contenta com patricinhas da Barra da Tijuca. Laura é a periguete literária, a manteúda de gordos ressentimentos. Como diria o saudoso Reichenbach, ganha uma feijoada na Marquês de Itu (essas feijoadas deviam ser depois do Minhocão, da Santa Casa pra dentro a rua é pura Higienópolis), quem adivinhar o desfecho do imbróglio.

Talvez as feijoadas fossem lá na parte alta da rua, no Ugues, esquina com Martim Francisco. Ou seriam perto da praça da República? Estou divagando. O que importa mesmo é que o jovem Carlão continua sua busca. Vai parar em uma boate. Enquanto isso, Zilda Mayo e o amante estão debaixo do chuveiro. Roberto Maya aparece como um palestrante charlatão, um guru de meia tigela usando a sala de convenções do hotel. Todos os acontecimentos fazem escada para as sabotagens do funcionário maluco, que culminarão no incêndio.

Sexo e mulher nua são delícias que escorrem pelos corredores. Há mais sexo em “Noite em Chamas” do que em todo o cinema brasileiro desde “Carlota Joaquina”. Sexo é aquela coisa que os antigos faziam – sem medo de cheiros, fluidos, gosto de cigarro na boca, etc. – e mulher nua é apaixonar-se por Helena Ramos. Nesta alucinação, quem se lembra do incêndio? O incêndio é uma bobagem. Garrett, quase khouriano, constrói obsessões discretas, intimistas. 

São Paulo não precisa de mar, São Paulo já é o mar. Aquele cinema paulistano não precisava de mar; Jean, Alfredo, Fauzi já eram o mar. Não importa onde chegavam, o prazer estava no caminho. No cinema catástrofe da Boca, a desgraça mostrada de fora pra dentro, na verdade irrompe ao contrário: do âmago das personagens. 

2 comentários:

Marcus disse...

Gosto do drama/conflito/atração existente entre o personagem do Dênis Derkian o amigo pobre no filme. E Helena Ramos como prostituta sensível que tenta ajudar o pobre amigo humilhado.

ADEMAR AMANCIO disse...

Encontrei disponível na net,vou ver.Dênis Derkian jovem,faz valer qualquer cena.