sexta-feira, novembro 04, 2005

Festa


A idéia é de imensa praticidade: um apartamento, figurantes, poucos personagens centrais, uma mesa de sinuca, o submundo da festa de alta sociedade. Orçamento enxuto, pronto para concretização. Aparições-relâmpago de velhos conhecidos, naturalmente. Globais – como Ney Latorraca e Patrícia Pillar –, além de egressos dos quadriláteros que povoam a história do cinema nacional. Do Beco dos Aflitos, José Lewgoy; do Beco da Fome, Otávio Augusto; da Boca do Lixo, Jesse James Costa.

“Festa” (1989), escrito e dirigido por Ugo Giorgetti, promove também o encontro de Jorge Mautner, Adriano Stuart e Antonio Abujamra. Respectivamente, o gaitista, o jogador de sinuca e o acompanhante. São contratados para divertir a festa na mansão do onipresente “senador”, um bacana qualquer. Os comes e bebes rolam soltos no andar de cima, enquanto os garçons – capitaneados por Otávio Augusto – correm freneticamente de um lado para outro. Enquanto isso, no andar de baixo, o trio permanece esquecido, revezando-se entre os dois sofás que compõem a sala de estar.

A eles se reúne, vez por outra, a empregada (Iara Jamra), que suspira de amores ao conhecer Latorraca – cinicamente no papel de ator, prima donna, discursando bobagens sócio-filósoficas para a multidão. Lewgoy é um bêbado foragido da festa, impagável, procurando o poire que lhe foi apresentado pela dupla Abujamra-Stuart. Prestem atenção em um dos primeiros closes do filme: eis que surge ele, Jesse James Costa – protagonista de “Jogo Duro”. É o vigia que conversa com o garçom encarregado de transportar um cachorro gigantesco, acochambrado na entrada principal do saguão.

Mautner, Stuart e Abjamra não sabem ao certo quando serão chamados para fazerem o que acham que irão fazer. O planejamento da festa é anárquico, a convivência forçada dos três rende a mistura de hilaridade e melancolia que caracteriza o filme. Um tanto quanto cético – os eventos se sucedem à margem da possibilidade de escolha dos personagens –, enxergo nele, porém, uma carga onírica, em pequeníssima escala, felliniana.

A cena em que os convidados invadem o primeiro andar e depois somem, como por encanto, é arrebatadora. No alheamento em que os renegados permanecem, durante toda a movimentação, encontra-se uma das senhas para análise do todo. Se estão ali por conta da festa, por que, afinal, a festa não se integra a eles? E mesmo no instante em que a festa vai ao encontro dos três, por que sentem-se presos ao primeiro andar, apesar da desconfiança que o gaitista sente pelos outros dois e os outros dois pelo gaitista?

No plano extra-ficcional, as filmagens foram trabalhosas, estressantes, e nisto há detalhes curiosos que valem a pena ser conferidos. O cantor, letrista, escritor, ator – para alguns, “maldito” – Jorge Mautner, é amigo de Giorgetti desde os tempos da adolescência, quando freqüentavam a biblioteca municipal da praça Dom José Gaspar, em São Paulo – lembrem-se dos memoriais de “O Príncipe” (2002), penúltimo filme do diretor: a praça é um dos personagens mais relevantes.

Imaginem que a certa altura das gravações de “Festa” iniciou-se uma quase-greve; Mautner, um dos subversivos principais. Com a possibilidade do cronograma em atraso, Giorgetti chamou-o em um canto, relembrou-lhe que se conheciam há anos, Mautner concordou sem hesitação nenhuma e a paralisação virou uma possibilidade canhestra, sempre impedida pelo delirante autor de “Maracatu atômico”.

Adriano Stuart, diretor do célebre “Bacs” – vulgo “Bacalhau” (1976), paródia do “Jaws”, de Spielberg – repetiria em “Boleiros (Era Uma Vez No Futebol...)” (1998) a parceria com Ugo. Ele dá voz a um dos momentos menos pormenorizados e mais interessantes de “Festa”. Grande injustiça, em razão do contexto em que foi gerado. “Quinzinho” – também conhecido pela nome de “Joaquim Pereira da Costa” –, rei da Boca, foi o insólito companheiro de Giorgetti em alguns de seus projetos, contando-lhe causos das altas rodas do Carandiru. Um deles é o da “Pensão Tupinambá”, em que, devido à superlotação, os hóspedes dormiam sentados, amarrados em cordas para não caírem. Abujamra, adormecido, está ao lado de Stuart, que repete o evento a Mautner, acompanhando-o com tremenda incredulidade.

“Festa” opera com maestria todos os eixos da película. A locação – com ambientes demarcados em fronteiras – expõe igualmente o âmago do texto, e a movimentação dos atores faz espocar os micro-plots entre garçons versus garçons, trio versus trio, trio versus garçons, convidados versus o restante. Algo próximo de “Sábado” (1995), mas distante de “Boleiros” ou “O Príncipe” – cronologica e existencialmente – é a prova de que o realizador paulistano supera-se, reinventa-se, cria uma obra a ser acompanhada com especial admiração por seus inúmeros entusiastas. O cinema de Giorgetti é como a cidade que o abarca: se você não gosta, é porque, simplesmente, não compreende suas infinitas possibilidades.

7 comentários:

Anônimo disse...

Filmaço,Andréa! Finalmente um texto que faz justiça a esse grande e esquecido filme! Abç!

Anônimo disse...

Nesse seu texto, e não poddia deixar de ser, já q. se trata de um filme de Giorgetti, estamos diante da melhor tentativa de entender a aparente e ainda presente dicotomia entre paulistas e cariocas, admito do meu lado, q. tenho dificuldades em assimilar o Hugo Carvana, mas vou procurar rever com olhos mais livres.

Anônimo disse...

Felliniano talvez, mas é Bunuel, de 'anjo exterminador', o primeiro que me vem a cabeça quando lembro deste filme.

Anônimo disse...

Olá Andréa! Giorgetti é uma espécie de poeta amargo dessa problemática cidade que é São Paulo. Essa amargura - que ao mesmo tempo é uma declaração de amor à cidade que o diretor tanto gosta - viria se cristalizar em "O Príncipe", um filme ótimo que foi muito mal interpretado pela crítica. Giorgetti utiliza pequenos espaços e personagens pouco comuns para resenhar a complexidade tanto da cidade como daqueles que aqui vivem. Adoraria ler um texto seu sobre "O Príncipe", e também sobre "BACS", um clássico! Abraço!

Andrea Ormond disse...

oi sérgio, o giorgetti, junto com o khouri, o carlão e alguns outros gênios, quando este for um país justo, serão nomeados como os maiores diretores brasileiros de todos os tempos :)...Abração!

oi eduardo, vou voltar a esse assunto da dicotomia cinema paulistano x cinema carioca mais tarde e com mais cuidado, com certeza. Possuo inclusive uma pesquisa que realizei nos jornais do Rio sobre estréias de filmes e encontrei verdadeiras "pérolas", curiosamente a maioria delas sobre filmes que fugiam ao cartel do Cinema Novo. Abraços!

fala Walner, verdade, "Festa" lembra Bunuel tb...a cena do cachorro, puxando pela memória, não deixa de lembrar um pouco aqueles carneiros que aparecem no início do "Anjo Exterminador"...:) Um abraço!

oi fernando, assisti "o principe" no cinema, na estréia em 2002, tb adoro o filme e percebo nele exatamente as mesmas coisas que vc citou :) assim que encontrar em video para rever, com certeza vou escrever uma resenha sobre ele e sobre o famigerado bac´s :) abraços!

sitedecinema disse...

O mais interessante é saber, por outros posts, que a intenção desse blog não é, necessariamente, formar uma opinião unÂnime sobre esse ou aquele longa e que é possível se deleitar num texto mesmo quando não concordamos com tudo o que le propõe..
Meus ´dois centavos´: não sou entusiasta desse filme, que acompanhei no seu lançamento no Festivel de Cinema de Gramado nos anos 80 (o acho artificial e esquemático em demasia, os personagens não muito mais do que arquétipos e me causam distanciamento).

Anônimo disse...

Excelente filme, ousado, pois é difícil não tornar um filme
monótono quando se tem apenas o desdobramento de elementos em um
cenário fixo. Mas não achei
genial.

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