quarta-feira, fevereiro 01, 2017

Gente Fina É Outra Coisa


Em 1977 Antonio Calmon tinha 31 anos. Já era um desgarrado do Cinema Novo e mergulhava de cabeça na sua própria visão de cinema. Sorte nossa que Calmon, apesar da amizade sincera que nutriu pelas turmas por onde circulava, sempre desconfiou das ideias absolutistas e dos delírios conceituais que regiam parte dessas turmas. Nunca serviu a um Deus e soube fazer, de todas as histórias, a sua história. 

No dia 25 de setembro de 77, por exemplo, disparava em entrevista ao Jornal do Brasil que “Gente Fina É Outra Coisa”, seu filme prestes a estrear, era, na verdade, “a vingança da pornochanchada”. E prosseguia: “Esse filme mostra que valores tão pregados e cultivados como o casamento, a família servem apenas para a classe média. As elites não têm valores e elas sempre se permitiram tudo (…). É um filme sobre a impunidade das elites”. 

Se o leitor achar a declaração sobre a impunidade das elites e o aparvalhamento da classe média transgressora e atual, temos sinal evidente do óbvio: os filmes e o pensamento do diretor não envelheceram. Permanecem incômodos e insurretos. O cronista Carlinhos de Oliveira, certa vez, quis fazer um estranho elogio e chamou Calmon de “cineasta de mão firme”. É bom epíteto não só para seus filmes, mas também para sua personalidade. 

O jovem diretor vinha de “Paranoia” (1976) um policial bem-visto em São Paulo e por parte arejada da crítica carioca, chamando a atenção do produtor Pedro Rovai, que o convidou inicialmente para dirigir o primeiro episódio de “Gente Fina”, que seria parte de “O Ibraim do Subúrbio”. Acabou com o filme inteiro nas mãos e fez o que quis. “É nosso Luis Buñel”, disse Nelson Pereira dos Santos, em um arroubo de entusiasmo, talvez pela presença do filho, Ney Sant´Anna, como ator principal.

A frase “Gente Fina é Outra Coisa” vivia na boca do povo nos anos 1970. Era música de Rita Lee, um bordão do colunista Zózimo, e se encaixava perfeitamente aos propósitos da história de Tadeu (Ney Sant´Anna), recém-chegado no Rio, egresso de Palmeira dos Índios (a terra de Tenório Cavalcanti). Bonitinho, Tadeu lembra um Jim Morrison bugre, ou outro galãzinho do período, o cantor Donny Osmond. Dá com os costados na casa de uma madame de Ipanema, Magali (Maria Lucia Dahl) e, trabalhando de mordomo, se apaixona por ela. Quem não se apaixonaria? Entre os anos 70 e 80, Dahl era uma delícia ambulante. 

A maior mentira carioca do mundo é que cariocas não são arrogantes. A classe alta de Ipanema e Leblon, até hoje, faz seus congêneres de Higienópolis e dos Jardins parecerem uma turma saída de Woodstock. A diferença entre a elite carioca e a paulista é a hipocrisia, que escorre pelas escadas do Restaurante Degrau. “Gente Fina…” capta bem essa atmosfera rançosa, em contraponto à pobreza colorida de empregadas bailando ao som dos sucessos populares. O brega setentista era uma potência e, ao sequestrar uma calcinha usada da patroa, Tadeu vive êxtase ao som de “Moça”, o clássico de Wando.

O filme divide-se em três episódios, “A Guerra da Lagosta”, “Chocolate ou Morango” e “O Prêmio”, que no fundo são uma coisa só: as aventuras de Tadeu. A “Guerra da Lagosta” acontece pois o herói resolve envenenar o cachorrinho da madame, chamado Petit, com uma lagosta embebida em formicida. Dahl havia servido a mesma lagosta aos convidados (estava há quatro dias no congelador) e, ao ver o totó estrebuchando, acha que a culpa do envenenamento é sua. Grita, com sotaque de gata ipanemense: “Eu matei todos vocês…”. E escuta de volta: “Que delícia, Magali!”. Quem parece moribundo na história é o marido de Magali (Paulo Villaça), duro no papel, que caberia melhor ao denso e peludo Carlos Kroeber, um dos convivas do jantar amaldiçoado.

Os diálogos são brilhantes: “Empregado não tem sexo”, diz Magali, nua na frente do inquieto Tadeu. Nos jogos de sedução, Calmon exercita um elaborado e perverso grafismo, deixando a marca de sua genialidade. A presença da mulher rica e inatingível, da calcinha usada, das humilhações verbais ao empregado, são impensáveis no presente. Notem que o último terreno para esse tipo de ideias, para essa linha tênue entre o fetiche e o cinema, que diretores como Calmon operavam com naturalidade, será a pornografia. Por isso é que eu digo sem medo que o futuro de certa experiência cinematográfica está no filme pornô – e em sua distribuição subversiva, fora dos canais dominados pelo patrulhamento ideológico. 

A luta de classes existe, Marx tinha razão, só que é muito mais complexa do que supõe os pseudomarxistas. Eis que Tadeu consegue o que queria e traça a patroa. Termina confuso, despedido, saindo no braço com Paulo Villaça, o marido traído. Depois de aplicar uma surra no patrão, está com uma mão na frente e outra atrás, catando coquinho no Jardim de Alah, quando conhece Doutor Guimarães, que lhe oferece um emprego de motorista. 

Guimarães é pai de Cecília (Louise Cardoso, outra delícia setentista). Ela namora um cafajeste, Alfredinho (Nuno Leal Maia) e o pai quer acabar com o namoro. Oferece a Alfredinho 200 mil cruzeiros (cerca de 266 mil reais, em valores de hoje) para largar a moça. Ao som de “Cecilia”, de Simon and Garfunkel, ele topa a parada e Cecília é obrigada a casar com um noivo-bolha, Olavo. O que o pai não sabia era que a filha também estava caindo nos encantos de Tadeu. A moral da história é que através da hipocrisia – Cecília casa-se já desvirginada pelo falo santo do motorista – se formavam as madames da elite brasileira. 

Depois do segundo “episódio” o filme cai bastante e ganha ares, voilá!, de uma real pornochanchada. Tadeu, já em versão micheteiro assumido, de óculos escuros e blusão aberto, é recrutado por Íris (Selma Egrei, terceira delícia) para “atender” uma amiga (Márcia Rodrigues, irmã de Cláudia Lessin) corneada pelo marido. Curiosamente a mise-en-scéne remete à pornochanchada paulista, de José Miziara ou Ody Fraga, não aos congêneres cariocas. 

Esquemas se repetem (o humilhado vence a humilhação pelo sexo) e, assim como gostamos, cansamos. Mas tudo já estava dito e apresentado na primeira hora. Havia o desejo expresso de fazer um “Gente Fina É Outra Coisa 2”, envolvendo uma milionária americana. Porém não saiu do papel, talvez porque Calmon e Rovai tenham notado que a fórmula esgotara. Ao invés disso, realizaram “O Bom Marido” (1978) e “Nos Embalos de Ipanema” (1978), sempre com roteiro de Leopoldo Serran e Armando Costa.

No dia 23 de julho de 1977, Cláudia Lessin Rodrigues foi assassinada no Rio de Janeiro. O filme chegou às salas em setembro, convivendo com a boataria de que Michel Frank, um dos assassinos, havia sido apresentado a Cláudia na pré-estreia da produção no Hotel Meridien, vinte dias antes do homicídio. Até Valério Meinel, em seu espetacular “Porque Cláudia Lessin Vai Morrer” alimenta a ilação. Georges Khour, o outro acusado, era cabeleireiro em um salão no Meridien e, segundo Meinel, teria sido o apresentado da noite. O que isso diz sobre “Gente Fina É Outra Coisa”? Absolutamente nada. E tudo ao mesmo tempo. 

Michel Frank era filho do industrial Egon Frank, dono da fábrica de relógios Mondaine. Com a ajuda do pai, fugiu para a Suíça enquanto aguardava decisão judicial. Egon teria sido também um dos financiadores do filme. Rubens Ewald Filho, na Tribuna de Santos (25/10/77), citando o jornalista Sergio Augusto, questiona: “(…) não deixa de ser sintomático que escroques como Egon Frank e Fernand Legros tenham sido os grandes financiadores da pornochanchada brasileira”. 

A verdade é que Egon havia sido parceiro da Sincrocine de Rovai em outras produções, mas não participara do financiamento de “Gente Fina É Outra Coisa” (embora seu nome apareça rapidamente em cena, quando é mostrado um cartaz de “O Roubo das Calcinhas”, 1976). 

A coisa tomou tal proporção que Calmon foi obrigado a se pronunciar. Na Folha de São Paulo de 04/10/77, afirmou: “Não sei por que estão tentando relacionar meu filme com o terrível ‘caso Cláudia’ (…) só posso deduzir que estão tentando me prejudicar com esses terríveis comentários injuriosos”. Estava certo. A imprensa usou e abusou do sensacionalismo para envolver gente inocente no caso. E ninguém percebeu até hoje que a única relação possível entre o “Caso Cláudia” e “Gente Fina É Outra Coisa” bailava diante dos olhos.

“As elites não tem valores e elas sempre se permitiram tudo”, voltemos à frase de Calmon. 

5 comentários:

fabio fernandes disse...

estreou 2017 com um belíssimo texto (como sempre) e uma pérola do cinema brasileiro, que foi muito prejudicada por associações ao caso cláudia lessin.

ADEMAR AMANCIO disse...

Não conheço o filme,vou procurar.

ADEMAR AMANCIO disse...

Me lembro de ter lido um texto de Eça de Queiróz,que já falava de certas semelhanças entre os muito ricos e os muito pobres no desdém a certos valores.A classe média é que tenta segurar os pilares-morais.

Aloi disse...

Andrea, e você, que é sempre atenta aos aspectos pitorescos dos filmes, não vai comentar sobre o rock de abertura do Odair José? Ele estava numa fase pop nesta época. Um abraço.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Fabio. Infelizmente, o caso Cláudia é um fardo muito intrincado, enrolado demais com o filme.

Procure, Ademar. Tem a verve do Calmon, o que é sempre garantia de algo além, acima da média.

Aloi, entra no pacote das loucuras do Calmon rsrs