segunda-feira, outubro 17, 2016

Engraçadinha Depois Dos Trinta


Em junho de 1960, quando lançou a primeira parte de “Asfalto Selvagem” em livro, Nelson Rodrigues declarou: “Engraçadinha existe, sim. É carioca e tem atualmente 39 anos. É linda, uma das mulheres mais bonitas do Brasil. Lembra muito a Vivian Leigh, de O Vento Levou, quando a atriz estava no apogeu de sua beleza (…) Mora no Grajaú”. O boato, levantado pelo próprio Nelson, piorou na noite de autógrafos, que aconteceu no dia 7 de julho, na livraria São José, Centro do Rio. Engraçadinha estaria presente! Talvez por timidez suburbana, a diva não apareceu. E, se viva fosse, acreditando na informação de Nelson, teria hoje 95 anos de idade. 

Viajamos rapidamente para 1962, e flagramos o croata J.B. Tanko procurando uma protagonista para o filme, baseado no livro, através de uma seleção feita pelos jornais do Rio. “Você quer ser Engraçadinha?”, perguntavam. Creio que, na Velhacap daquele finalzinho de 62, muitas mulheres não só queriam ser Engraçadinha, como já eram. Muitas sonhavam sair da Zona Norte e se mudar para Copacabana. Muitas eram tão bonitas que os maridos as trancavam em casas tristes de vilas, esperando que envelhecessem. Outras, pecavam nas garçonnières, no frêmito de uma histeria charconiana. Engraçadinhas, a cidade amada tinha muitas. Nelson, como todo gênio, não mentira sobre a veracidade da protagonista: havia criado um ícone, síntese de muitas mulheres.

Curioso que a ex-repórter do Jornal do Brasil, Vera Vianna, tenha sido logo escolhida para ser a Engraçadinha jovem (o filme de Tanko, como o livro, seria dividido em dois). Vera voltaria na sequência “Engraçadinha Depois dos 30”, no papel de Silene, a filha pubescente da heroína. Em pleno 1964, Tanko rebolou com a Censura, viu o filme ser interditado no estado da Guanabara – Nelson defenderia sua obra chamando-a de “moralista”. Quando finalmente deu as caras, o espectador do Metro Tijuca, do Bruni Ipanema, saía do cinema pensando que era melhor ter ficado em casa, lendo o livro. Para piorar, era proibido para menores de 21 anos (!). Claro que, com a amizade do porteiro ou uns cruzeiros no bolso, qualquer um entrava. Mas, naqueles dias, a maioria das pessoas estava interessada mesmo era na turnê de Rita Pavone pelo país. A produção mutilada de Tanko ganharia o público aos poucos, graças à presença de Jece Valadão no elenco e, no final das contas, todos respiraram aliviados por reverterem um fracasso que parecia anunciado.

“Engraçadinha, Depois dos 30” (1966) é bem mais palpitante do que o antecessor, muito porque lambuza-se do Rio de Janeiro da segunda metade da década de 60. Nelson, responsável pelo argumento e pelos diálogos, parece estar corporificado na tela. Quando suas histórias saíam do Rio – a primeira parte de “Asfalto Selvagem” é passada no Espírito Santo – a potência do autor murchava. De volta ao lar, encalacrando a musa na casinha de Vaz Lobo, a trama reluz. J.B. Tanko é hábil em construí-la, apesar de novamente sofrer o assédio da Censura, que prejudicou bastante todas as adaptações rodrigueanas dos anos 60. Não só a Censura oficial, como também a autocensura dos diretores, que, nos anos 70, fizeram leituras menos formais de Nelson. A contracultura, os movimentos libertários, vejam só, ajudaram o reacionário Nelson a ver sua obra respirar melhor.

Se o leitor quiser escarafunchar as origens do termo “pornochanchada”, saiba que, àquela altura dos anos 60, filmes como “Engraçadinha Depois dos 30” já eram chamados de “chanchadas pornográficas”. E foi como uma “chanchada pornográfica” que chegou ao público. Nada tem de chanchada, muito menos de pornografia. Fossem sábios os intelectuais brasileiros da época, entenderiam ter às mãos uma preciosidade: o quartel carioca entre os anos 40 e 60 do século XX será muito mais lembrado pelos olhos de Nelson Rodrigues, do que por qualquer outra coisa. A força de seus textos é algo extraordinária, e lidar com essa matéria ainda fresca era como brincar com ouro. 

Tanko realiza um filme inesquecível, embora em tom menor dos que fizeram a glória do escritor nos anos 70. É ajudado pela boa interpretação de Fernando Torres, no papel do procurador Odorico Quintela, sujeito dos tempos do Espírito Santo que reencontra Engraçadinha (Irma Alvarez) no Rio e quer, sem muitos preâmbulos, comê-la. Para isso lhe oferece conforto material, espiritual, e uma televisão comprada a prestações. Tudo sob o olhar displicente do marido Zózimo (Nestor de Montemar), flamenguista empedernido – Nelson, tricolor, se vingava do clube rival – e os protestos dos filhos, Silene (Vera Vianna) e Durval (Mário Petraglia).

Tanto no livro quanto no filme, o idílio de Silene, em um quarto de bar nos sertões da Barra da Tijuca, são a melhor parte da história. Leleco (Cláudio Cavalcanti), o namorado, a leva para aquele lugar e vivem um romance sob a pressão de Silene ser currada pelo bando de Cadelão (Cícero Costa). Leleco vira homem, a protege, e termina envolvido em um crime. Outra cena linda é a capitulação de Engraçadinha ao pecado, junto com um funcionário do Itamaraty (Oswaldo Loureiro). Chove bastante e a mulher parece perceber que sua vida, o assédio do patético Odorico, o marido estulto, nada faz sentido. O único sentido da vida, para Engraçadinha, é o gozo. O imediato, o agora a ser vivido e esquecido.

Anotar todas as nuances da cidade, todas as pequenas minúcias reveladas pelo transitar das personagens, nos ocuparia bastante. Mas basta dizer que a Rua Gonçalves Dias surge em esplendor, os  carros de praça com os taxímetros “capelinha”, as ruas suburbanas – o subúrbio, como o sábado, era uma ilusão – um Aterro do Flamengo em obras, o túnel para Copacabana – a partir de Copacabana, iniciava-se o Rio moderno – a Casa Tavares – Rua da Quitanda, 30 – e uma profusão de caras, penteados, roupas e prosódias que emocionam. Sim, porque rever o século XX através do cinema brasileiro é, antes de tudo, um júbilo comovente.

No futuro distante, surgiriam outras “Engraçadinhas”. A de 1981, dirigida por Haroldo Marinho Barbosa e, principalmente, a da minissérie da Rede Globo, de 1995. Com roteiro de Leopoldo Serran, auxiliado por Carlos Gerbase, direção de Denise Saraceni e João Henrique Jardim, a Engraçadinha global foi a mais fiel (ops!) ao romance de Nelson. Traz Alessandra Negrini levantando defuntos como a protagonista jovem e a espetacular Maria Luísa Mendonça incorporando a prima Letícia – limada do filme de 66, provavelmente pela Censura anti-sáfíca. Se o leitor quiser desbravar os mistérios de Engraçadinha nas telas, comece pela minissérie, facilmente encontrável em DVD. Febril por um reencontro, veja o filme de Tanko. Parafraseando Letícia, grogue do tesão reprimido de décadas,  Engraçadinha não é tara. Engraçadinha é amor. 

7 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

Bons tempos de mini séries em que a Globo passsava aos montes mas com qualidade. Visite o meu blog de cinema: http://cinemacemanosluz.blogspot.com.br

Adilson Marcelino disse...

Maravilhoso, querida.
Adoro todos os filmes adaptados do Nelson, sejam os maiores ou os menores.
E tenho paixão pelo Engraçadinha com a Lucélia, um de seus melhores momentos no cinema. Tudo lá é lindo, desde a abertura, a música com a Zizi, e aquela cena final congelada espetacular.

Beijão

Adilson Marcelino disse...

Tenho paixão pelos filmes adaptados do Nelson, querida. Adoro esse filme. E amo o Engraçadinha do Haroldo, um dos meus cineastas prediletos e, para variar, pouco aclamado. E amo a Lucélia no filme, um de seus melhores momentos no cinema, tudo ai é lindo, a abertura, a música com a Zizi, e cena final congelada. Enfim, um arraso.

Andrea Ormond disse...

Marcelo, considero "Engraçadinha" um momento raro nas minisséries da Globo.

Adilson querido, a Lucélia e o Nelson no cinema são um caso seríssimo mesmo! Impressiona como ela conseguiu captar o espírito de certas personagens. No "Bonitinha Mas Ordinária" dá um banho total. Beijo!

Agente X9 disse...

Andrea: por favor, você tem notícia da existência da edição (comercial ou não) do filme Asfalto Selvagem? Chegou a passar no Canal Brasil ou na TV educativas (Cultura e TV Brasil? Grato por sua atenção, e parabéns pelo Estranho Encontro.

ADEMAR AMANCIO disse...

O filme com a Lucélia Santos não teve duas fases como na minissérie né!Inclusive a atriz escalada pra viver a protagonista na televisão,e que era mais parecida com Claudia Raia,foi vetada pelo Ministério da Justiça por ser menor de idade.Parece que tem personagens que tem o endereço certo.

ADEMAR AMANCIO disse...

Não sabia que tinha o filme 'Engraçadinha depois dos 30',e nem o primeiro.Eu só conheço o de 81.