Primeira
cena: Ana abre o portão de uma casa de vila, estúpida e feiosa, no
subúrbio do Rio de Janeiro. Está cercada pelos trens, os mesmos que
Leon Hirszman usou para “A Falecida” (1965), de Nelson Rodrigues.
Em “O
Anjo da Noite” (1974), a protagonista muda. Não temos aqui a
mulher chata, cepecista, cliente da RFFSA. Pelo contrário. Ana é
uma criatura diáfana, acima do tempo real.
Outro
Rodrigues está mais próximo do filme: Roberto, o irmão de Nelson.
Com pinta de Rodolfo Valentino e assassinado a tiros, Roberto
costumava desenhar manecas lúgubres. De mãos finas e delicadas. E
as mãos são o objeto do fetichismo de Walter Hugo Khouri. O diretor
enquadra os dedos de Selma Egrei como uma resposta à (deliciosa)
nuca de Jacqueline Myrna, em “As Cariocas” (1966).
Ana
(Selma Egrei) viaja para Petrópolis. Quer ser babá de duas
crianças. Alta, bonitona e impávida, ela circula pela Central do
Brasil. Sobe a escada rolante da Rodoviária Novo Rio, paga a
passagem. Ao fundo, como uma praga de Lovecraft (“even
death itself may die”),
escutamos a marcação de um surdo. Em compasso marcial. Parece a
recordação de um enterro que ainda não vimos: escuro e
indefinível. Quem mais colocaria um surdo esotérico na Novo Rio?
Não conheço outro diretor, na história do cinema brasileiro, que
tenha subvertido dessa maneira o lugar.
“O Anjo
da Noite” é uma coleção de atmosferas. Essa breve descrição de
menos de quatro minutos do filme deixa claro o veredito. Há um peso
em situações que seriam medíocres. Khouri e a montagem de Mauro
Alice realizam o destino de toda obra de vulto: passar a impressão de
que o difícil é tão fácil quanto lamber um punhado de cerejas.
Acontece que não é.
Para
conseguir esse estado permanente de quase-surto, um truque
perturbador: afinal de contas, quem observa Ana? A câmera muda a
toda hora, levando a um estranhamento brabíssimo. Na cartilha das
boas intenções cinematográficas, todo espectador sabe quando um
personagem está sendo olhado por outro. No “O Anjo da Noite”, o
cerebralismo de Khouri faz com que percamos o fio da meada. Talvez
seja Deus quem a observa. Ou talvez o Demônio, ou até mesmo o
delírio da moça.
Exemplo:
telefones começam a tocar na mansão de Petrópolis. Ana atende. É
um trote. Acontece outro. E mais outro, em seguida. Qual deles será
o trote de Augusto (o vigia noturno), qual será o de Marcelinho (o
filho da patroa), qual será o telefonema de Raquel (a patroa)? Não
podemos predizer quem está do outro lado da linha, tudo se mistura
na necessária confusão mental. Uma vertigem que Khouri e Alice
expõem visualmente.
Décimo-segundo
longa-metragem de WHK, “O Anjo da Noite” conta com um velho
convidado: Rupert Khouri, aka Walter Hugo. É ele quem opera a
câmera e assina como Rupert, para disfarçar o controle que exercia
em cada aspecto de seus filmes. Rupert poderia ser um primo distante,
mas não. Era o próprio Kaiser.
Outro
aspecto recorrente na obra khouriana está nos atores. Selma Egrei
contracena com Lilian Lemmertz (Raquel). Raquel contrata Ana para
cuidar dos filhos (Carolina e Marcelinho), enquanto o marido
(Fernando Amaral) se refastela em uma poltrona. Zonzo de uísque, na
sublime aversão a tudo o que seja compromisso de esposo ou de pai.
Lemmertz encarna mais uma vez o ideal feminino: soberano, reinante,
mas agora anestesiada pelo compromisso de ir a uma festinha. Em “O
Desejo” (1975), o mesmo trisal Lemmertz-Amaral-Egrei leva ao
extremo a vontade de se possuírem sob o mesmo teto – nesse caso,
com a alta voltagem do sexo e das histerias irrealizáveis.
“Corpo
Ardente” (1966) usou o “trono de pedra”, o lugar aonde a mãe
de Marcelo coroa o filho. Já o totem de “O Anjo da Noite” é
imenso e concentra boa parte da trama: a casa de Petrópolis. A
mansão é o personagem-central, sem ela não existiriam as explosões
de Marcelinho, de Ana ou de Augusto (Eliezer Gomes). Tornam-se
cativos em uma vigília de mil eons, sentem o abafamento no
cangote (“Hic Habitat Numen”, diz o letreiro inicial).
E não
demora muito para o espectador perceber o formato da casa. Lembra um
caixão, claustrofóbico, com estátuas de anjos que seguram espadas
e asas, típicos da arte tumular. Rupert Khouri rebaixou o teto de
propósito com a câmera e, no canto de cada cena, vemos algumas
daquelas imagens, como se os entes inanimados conjurassem para a
perdição de Ana e de Augusto.
O homem
não gosta do que vê. E diz que a casa “é bonita, mas não é
amiga da gente”. Armas aparecem nas paredes: uma espingarda aponta
para a cabeça de Ana. Na janela em frente à mansão, as heras
formam uma cruz. As crianças tomam remédios, sabe-se lá por quê.
A crueldade infantil granjeia: principalmente Marcelinho, que
manipula Ana.
Augusto
sofre da síndrome de isolamento. O adorável Jack de “O Iluminado”
(1980) sentiu o frio e as neves do Colorado. Anos antes, “O Anjo da
Noite” teve a lua e as árvores; o expressionismo na escuridão. O
surdo ressoando agora pelo jardim, lembrando os primeiros acordes de
“Coração Materno”, na versão do LP “Tropicália” (1968),
produzido por Rogério Duprat. Duprat que, aliás, é responsável
pela trilha sonora do filme, com outro companheiro de longa data na
obra de Khouri: Franz Peter Schubert.
Criados
negros e fleugmáticos convivem com criados brancos. Em “As Filhas
do Fogo” (1978), os papéis espectrais couberam aos louros
de sítio, no sul do Brasil. A divisão de tarefas é,
portanto, democrática. No sul, os caipiras descendentes de alemães.
Na serra fluminense, o caldeirão de mulatos, negros e brancos.
Sob esse
aspecto, convém lembrar que “O Anjo da Noite” recebeu análises
cretinas, atribuindo a escolha de Eliezer Gomes a um ato racista do
diretor. Ora bolas, Augusto não é apenas mais-um-malfeitor-negro.
Não se trata de type casting. Augusto é um demente, um
domado pela casa e pela quebra de lógica que deixa a trama suspensa
do chão.
Mesmo
porque a violência de “O Anjo da Noite” é instintiva. E todo
cinéfilo, já iniciado nos mistérios khourianos, sabe que o diretor
deixava pistas no meio do caminho, em cada filme. Ana consulta
obcecadamente o livro de Carl Gustav Jung – o suíço que falava em
anima, a inscrição insculpida na casa de “As Deusas”
(1972). A garota começa a sublinhar os parágrafos e quase caímos
para trás: “O encontro com o dragão pode realizar-se de
diferentes modos, mas o essencial é que o encontremos”.
É óbvio
que o dragão (o mal, a morte, a expiação) era pressentido e até
mesmo querido pela garota. Daí deitar-se no chão, com as mãos (de
novo elas) sobre o tapete. “O Anjo da Noite” fala de um processo
existencial, que pode servir de parábola para o encontro perante
ele: o Desconhecido. O elemento desestabilizador, que chega nas matas
de “As Filhas do Fogo” como viajante pecaminoso. No “O Anjo da
Noite”, é uma aparição, um Eliezer Gomes, de olhos acesos e
esbugalhados.
Por ser
um homenzarrão de quase três metros de altura (o Tião Medonho de
“Assalto ao Trem Pagador”), Eliezer contrapõe-se perfeitamente
ao estilo pré-rafaelita de Egrei. Ana submerge na banheira, como a
Ofélia de John Everett Millais. Augusto aparece agitando a roupa
negra de vigia, qual asa de morcego. “A Consciência Humana é este
morcego!/ Por mais que a gente faça, à noite, ele entra/
Imperceptivelmente em nosso quarto!” Augusto dos Anjos também
ajuda a matar a charada.
O
roteiro, “inspirado numa ideia de Fernando César Ferreira e
trechos de uma história de Hugo Conrado”, convida a uma visão
corajosa da transcendência. Em plenos folguedos setentistas, Walter
Hugo enxotou os clichês, colocou um homem negro atormentado, criança
apontando metralhadora de brinquedo para a lua e uma babá suburbana
que estuda psicologia.
No filme,
Khouri apostou todas as fichas na visão de autor e ficou rondando,
assim como Augusto, o resultado do crime: o de pensar, o de
permanecer íntegro a si mesmo. Até o dia em que finalmente deu o
último suspiro e habitou a mansão do nada, talvez perdida no
quintal de “O Anjo da Noite”, no meio da terra que Ana escolheu
para se deitar, pela última vez.
11 comentários:
Sensacional, Andrea! Um texto que faz jus ao filme. E muita coisa que eu deixei passar e que vou prestar mais atenção na revisão.
Obrigada, Ailton! Está aí um dos momentos mais inspirados (e importantes) do Khouri, indo para o horror mas mantendo a linha base de questões vistas em outros filmes dele.
Que maravilha, querida.
Dizem que a Elis Regina canta vez melhor. É como o nosso Khouri, cada vez mais fundamental.
Beijo, Adilson
Adilson, "O Anjo da Noite" é um filme riquíssimo, o texto precisava tocar em vários aspectos. O Khouri tem essa característica mesmo, de ser um fenômeno, um OVNI fundamental no cinema brasileiro. Beijo, querido
Excelente filme & Selma Egrei no Auge de Sua Beleza.
Andrea, mais uma excelente análise de um dos melhores exemplares de Khouri. Aproveito para parabenizar pela postagem de "Amor, Palavra prostituta", do saudoso Carlão. Uma belíssima sequência de textos do Estranho Encontro.
Márcio/MG
Não conheço o filme,só posso dizer que você escreve cada vez melhor.
andrea,
seu blog é excelente.
acompanho os textos há muito tempo, quando eu me 'iniciava' no cinema nacional.
descobri textos, filmes, referências. parabéns pelo trabalho e pelo resgate ao nosso cinema nacional - atualmente tão desvalorizado, mau visto.
abraço!
Andrea, mais uma vez parabéns pelo blog que leio há um tempo, estava revisitando esse filme. Escrevi um poema sobre ele, quando quiser dê uma prestigiada e opinada? Tudo de bom pra vc, poste mais! https://twitter.com/MarlosPobre/status/1105671626618753024
Onde encontro uma cópia decente?
Vi o filme ainda criança e sou fascinado por ele. Mesmo depois de ler esta tua incrível resenha, a sensação e o mistério continuam, ao som do bater de um surdo assustador.
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