No livro de ouro do
anedotário carioca, alguns verbetes são fundamentais. Desde
Villegaignon (o amigo de infância de Araribóia), temos um carrossel
de mitos e a delicada genealogia. Percebam a beleza da coisa: o
pivete, o camelô, os apontadores de bicho, as madames, os
professores da Puc, os incompreendidos e eles, os eternos, os
“paraíbas” [sic].
Designar um imigrante
nordestino como “paraíba” é ato de imperial non chalance.
Mussum dizia-o com frescor nos dentes. Equivale ao “dragão
chinês”, à “filhinha de papai”, ao “velho do frescobol”,
à “mulata boazuda”. Evidente que até mesmo o deboche pode se
degenerar e transformar-se na tosquice de alguns: o xingamento,
propriamente dito. O que fazer? Imbecilidades existem.
“As Aventuras de Um Paraíba” (1982) homenageia o que há de
melhor (e utópico) no cabra clássico e urbano. E isto muito embora
o filme seja encabeçado por um “filhinho de papai”, o galã
Caíque Ferreira, que saiu do augusto Posto 9 e coloca a saint-tropez
desbotada da Mesbla, rebolando qual vedete, na terra prometida.
De certa forma, há em
“As Aventuras de Um Paraíba” um prolongamento da Zona Sul do
Rio, já vista nos filmes de Antonio Calmon – “Nos Embalos de
Ipanema” (1978), “Gente Fina é Outra Coisa” (1977).
Especialmente nos “Embalos”, temos a subversão da
homossexualidade, que choca tanta gente quanto as bandejas de pó em
“Rio Babilônia” (1982). Zé (Caíque Ferreira) aprende a ganhar
dinheiro com o próprio corpo. Dorme com bacana, dorme com coroa, se
vira. E a cidade ferve, armaria.
Marco Atlberg dirigiu e
Calmon andou nos créditos das “Aventuras”. Em entrevista a este
blog, Calmon afirma que o espírito do filme sempre esteve, porém,
com José Gonçalves do Nascimento, o verdadeiro roteirista. Mesma
produtora (LC Barreto) e mesmo estilo jovial também poderiam
aproximar “Aventuras” de “Menino do Rio”, o blockbuster
de Antonio Calmon. As coincidências morrem por aí. “As Aventuras
de um Paraíba” dedica-se a construir um Zé alegórico.
O rapaz chega na
Rodoviária Novo Rio (outro verbete importante) e é recebido pelo
irmão preto: Zé Preto (Paulão) e Zé Branco são o que há de
comum nas famílias interioranas. O Preto agregado, o Branco que o
considera do mesmo sangue e vice-versa. No minuto seguinte, as
catracas e os vagões dos trens levam os dois ao Grande Rio. A um
bairro ou a um município anônimo, vizinho, que serve de dormitório.
No vai-e-vem entre o
barraco sujo e as praias de Copacabana, Zé Branco vira falso
paralítico, vendedor na areia, michê, transa de fotógrafa
prafrentex (Débora, Tamara Taxman). Samba com o furor de quem
vai ao Maracanã na celestial Era Zico. Canta no programa do
Chacrinha, repetindo o sucesso de Jackson do Pandeiro: “Vige
como tem Z/ Zé de baixo, Zé de riba/ Tesconjuro com tanto Z/
Como tem Zé lá na Paraíba”. As chacretes pira.
Em momento que se pode
reputar chapliniano (tentativa de), Zé apaixona-se por uma cega.
Branca (Cláudia Ohana) mora em um casarão. Bucólico, tomado pelas
matas – que mais tarde caracterizariam a atriz –, pelas
palmeiras, samambaias e pés direitos altos, faltando talvez um
passarinho na gaiola para compor a calmaria. Branca senta-se em um
banco, o vilão Miguel (Paulo Villaça) faz a corte. É o chato mais
velho, uma espécie de noivo arranjado, a estragar o barato do Romeu
e da Julieta.
“As Aventuras de Um
Paraíba” se quer jovem. Zé poderia lembrar, na distância de
alguns anos, o “Não confie em ninguém com mais de trinta anos/
Não confie em ninguém com mais de trinta cruzeiros”. Marcos e
Paulo Valle sussurravam em 1971. A geração de Caíque e Ohana
misturou o conselho no “Marrom Glacê” de outro destino. Entre a
higiene da saúde e a restinga de sexo que ainda se podia ter, seguro
e talvez libertário, antes dos sarcomas de Kaposi.
Transições bruscas,
uma notória falta de concatenação entre as cenas, uma volúpia
adorável, cheia de graça. Para quem imaginava pregação da Sudene
e as mazelas das vidas secas, “As Aventuras de Um Paraíba” acaba
no exato oposto. Zé Branco está mais para o Super Zé, herói
devorador que cata dondocas, recusa-se a trabalhar como peão de obra
e, ainda assim, vence. Fenômeno que todo retirante gostaria de ser,
na malemolência serena do cotidiano. Ei-lo aqui, direto de 1982 para
o nosso colo. A revanche vingadora, o cara de pau, que leva todos
(incluindo o público), no beiço.
4 comentários:
Hola , Andrea..!! Que mais que Eu posso dizer.. Perfeito: excelente..!!
Andrea, lendo o seu blog, embora meu portugués ainda seja de principiante, faço um curso de cinema brasileiro de graça.
Carlos GQ
Paraíba na minha cidade é um termo designado às lesbianas,lésbicas ou homossexual feminina,sei lá qual o termo politicamente correto.
Olá, Ricardo, obrigada. Procurei mexer bastante em várias referências do cotidiano que são importantes para o entendimento do filme. Um abraço!
Carlos, a proposta do blog é exatamente a de abrir os olhos para a história do cinema brasileiro, que é riquíssima.
Ademar, nesse terreno do politicamente incorreto, aqui no Rio lésbica seria sapatão mesmo. E variações em torno disso.
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