domingo, maio 30, 2010

Textos Novos


Na Revista Cinética, "As Melhores Coisas do Mundo". Aqui embaixo, "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" . Espero que gostem :)

sábado, maio 29, 2010

Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia


Em 1977 um jovem argentino, com cara de hippie, bateu na porta da casa do jornalista e escritor José Louzeiro, no Rio. Vindo de São Paulo, o moço queria adaptar o romance-reportagem de Louzeiro, "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia", para o cinema.

Acreditando no ímpeto do jovem, que se chamava Héctor, Louzeiro passou por cima de uma proposta de Roberto Farias e cedeu os direitos. Quando voltou do Festival de Cannes, Farias não gostou nem um pouco do arranjo e se desentendeu com o escritor.

O roteiro acabou sendo escrito por Louzeiro e Jorge Durán -- e o papel principal entregue ao irmão do preterido Roberto, Reginaldo. Tranquilizados os ânimos, realizaram um dos melhores policiais brasileiros da década de 70, quando o gênero alcançou no país um nível de expressão e criatividade ímpares.

Mas vamos recuar no tempo e desvendar o mistério: quem era o argentino que impressionou Louzeiro naquela tarde em que o jornalista, atrasado para o trabalho, ouviu suas considerações?

Héctor Eduardo Babenco foi criado em Mar del Plata, famoso balneário na província de Buenos Aires, filho de pai portenho e mãe polonesa. O pai, dono de uma mercearia em Mardel -- como os argentinos chamam carinhosamente a cidade -- ficou doente, vendeu seu negócio e o rapaz teve que fazer de tudo para sobreviver. Inclusive carregar malas em um hotel de luxo, servindo a cineastas famosos como François Truffaut.

Receoso do serviço militar, em 1964 se mandou pra Europa com uma mochila nas costas e vinte dólares no bolso. Andarilho, sobrevivia graças a trabalhos temporários, como o de figurante em westerns. Decidido a voltar para a América, esbarrou com o problema de não ter servido o exército. Assim, em 1969 desembarcou em São Paulo, onde fixou residência.

Apaixonado por cinema, durante alguns anos Babenco esteve envolvido na produção de documentários, trabalhando com Pedro Carlos Rovai e com o próprio Roberto Farias. Estreou na ficção em 75, com "O Rei da Noite", e em 77 já tinha credenciais para bater na casa de Louzeiro com a proposta sobre "Lúcio Flávio".

O marginal Lúcio Flávio Vilar Lírio, assassinado em 29 de janeiro de 1975, a facadas em uma cela no presídio da Ilha Grande, era àquela altura dos acontecimentos uma espécie de símbolo da bandidagem carioca, mito alimentado pela imprensa, sustentado pela boa articulação verbal do assaltante. Refém do corrupto sistema policial, Lúcio -- como quase todo bandido brasileiro -- no fundo era um coitado, isca de uma organização criminosa formada por gente graúda da polícia, que tomava dele a maior parte dos lucros sem correr qualquer risco.

No filme de Babenco, Lúcio Flávio (Reginaldo Faria) é atormentado pela figura repugnante de Moretti (Paulo César Peréio), uma espécie de disfarce do detetive Mariel Mariscott de Mattos, que, de tão vaidoso, implorou a José Louzeiro para ser retratado com seu nome real.

Toda a história é um gato e rato entre Moretti e Lúcio, mas a composição do submundo é rica e a força dos personagens impressiona. Em "Lúcio Flávio", Babenco não só consolida uma escolha temática -- o olhar aos marginalizados -- que o acompanharia por toda a carreira, mas também rascunha o esforço seguinte, "Pixote, a Lei do Mais Fraco", que lhe abriria as portas do mercado internacional.

O endeusamento de bandidos comuns, prática na época, hoje soa bastante discutível, principalmente por seus desdobramentos nos anos 80 e 90, quando o crime quebrava a espinha do Rio de Janeiro e setores da imprensa e da intelligentsia ainda tratavam bicheiros e traficantes como se fossem personagens da Revista Caras. Por outro lado, nunca devemos cair na esparrela de reduzir o drama ao embate polícia versus ladrão. Nesse ponto, "Lúcio Flávio" é brilhante nas sequências em que Moretti enrola Lúcio, afirmando que "estão do mesmo lado". Conseqüentemente a tomada de consciência de Lúcio chegará através da sentença: "Polícia é polícia, ladrão é ladrão". Esta idéia, embora óbvia, parece tão difícil de ser aplicada no Brasil quanto não jogar lixo nas calçadas ou silêncio depois das 22 horas.

O sucesso de "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" motivou Jece Valadão a produzir uma resposta pró-polícia: "Eu Matei Lúcio Flávio", de 1979. Tentou contratar Louzeiro para seu projeto, mas o escritor não tinha tendências esquizofrênicas suficientes para contrargumentar a si mesmo.

Jece, claro, acabou fazendo melhor, juntando Leopoldo Serran e Antônio Calmon em um exploitation mentiroso, tresloucado e brasileiríssimo de tanta cretinice e farsa. Bancado com dinheiro do jogo do bicho e de amigos de Mariel Mariscott, "Eu Matei Lúcio Flávio" é a obra-prima que o filme de Héctor Babenco tenta, mas não consegue ser.

Chega perto nas seqüências teatrais do bando enfurnado no apartamento de Liece (Ivan de Almeida), amante de Lígia (Lady Francisco). A consciência de que são bucha de um sistema perverso cresce na angústia do esconderijo, no cerco hipócrita dos policiais-bandidos e na ruína financeira em que permanecem, apesar dos roubos.

E o que seduz em Lúcio -- ou pelo menos na construção de Reginaldo Faria -- é que ele tem o raciocínio de um homem comum, distante das elucubrações psicopatas a que se entregam os artífices de crimes. Namora Janice (Ana Maria Magalhães), cria um filho com ela, reclama do trabalho e tem medo. Tanto medo que sofre de pesadelos ao imaginar Janice à mercê da loucura de Moretti.

A razão pela qual uma fábula em que a lei é doente e o bandido humano foi permitida pela censura explica-se por mais um olé inteligente da dupla Louzeiro-Durán: denigre-se a polícia carioca, mas em certo momento surge a "federal", no intuito de consertá-la. Elogiados, os federais não viram razão em caçar a história. A punição dos que "se desviaram da conduta" parece explícita -- e cabe ao espectador preencher lacunas com seu julgamento particular.

Mesmo assim, para desgosto de Louzeiro, a exibição do filme foi interditada na sua cidade natal, São Luís do Maranhão. Como sempre acontece, o Estado atrapalhou o que lhe parecia incômodo com um inferno de exigências e burocracias, disfarçando mera perseguição à liberdade. Ironicamente, proibição em moldes parecidos se repetiria na pré-estréia argentina, dessa vez para a tristeza de Babenco.

Lúcio Flávio, Liece e outros são legítimos arautos da paranóia criminosa que tomou conta do país. Olhá-los, como querem alguns, pertencentes a um contexto "romântico" é tolice. Profissionais do crime matavam, corrompiam, traficavam e assaltavam quase da mesma maneira que hoje. O que mudou não foi só a barbárie, mas a imprensa, a repressão e a sociedade. Analisar este processo como um todo, apontando o papel de cada agente, responderia muitas questões. Só que ninguém dá bola pra cultura, mesmo quando ela pode salvar milhares de vidas.

sábado, maio 15, 2010

Quem Matou Pixote?


Lançada em 1996, "Quem Matou Pixote?", a cinebiografia do garoto Fernando Ramos da Silva -- Pixote no filme de Héctor Babenco, de 1981 -- surgiu quando ninguém sabia ao certo como enxergar as novas produções brasileiras: se fenômeno sazonal ou tendência estabilizada. Passados quatorze anos, vale a pena voltarmos a ela.

Baseado nos livros "Pixote Nunca Mais", de Cida Venâncio, e "Pixote, a Lei do Mais Forte", de José Louzeiro, o filme busca apelo no mérito sentimental da obra escrita pela esposa do falecido. Por outro lado, tem coragem de adaptar um autor incisivo, dogmático, em um momento no qual todo mundo ainda estava pisando em ovos, ignorando a tradição de outras décadas em nome do paradoxo higienista chamado "Retomada".

O resultado é híbrido: ora avança em busca de uma "verdade" -- à la Louzeiro -- ora escorrega no esquematismo do olhar passional, vitimizante.

Fernando Ramos da Silva nunca quis ser herói. E qualquer construção sobre ele necessita guardar o caráter acidental dessa trajetória. Na elipse de acidente, conta ainda a vaidade -- inerente a qualquer um -- e a frustração de tornar-se uma sombra de si mesmo.

Lapso, hiato cruel -- quando as luzes se apagaram e Fernando (Cassiano Carneiro) descobriu no espelho quebrado da fama uma triste imagem -- é tudo o que o filme precisava expressar.

Interdições o prejudicam: Iracema (Joana Fomm), a mãe deslumbrada demais, e Cafu (Tuca Andrada), o irmão bandido, saem de alguma espécie de aula de roteiro para principiantes. Igualmente o policial cruel, Lobato (Roberto Bomtempo), cujas intervenções lembram certos delírios do neon-realismo paulistano, tamanha artificialidade e postura over. Mas o prêmio abacaxi vai mesmo para a trilha-sonora de David Tygel e Maurício Maestro, uma das mais esquisitas desde que pianistas tocavam ao lado das telas nos silent movies.

Ao trabalhar com elementos cotidianos, o filme cresce e quase alcança seus objetivos. Fernando passeia por São Paulo, atravessa o Viaduto do Chá, quando uma olheira, Malu (Maria Luísa Mendonça), o convoca para um teste: "Está cheio de verme, lombriga", diz um dos mauricinhos da produtora. Sua espontaneidade garante lugar no elenco. O resto é história.

Amantes do cinema nacional vão perceber total falta de empatia com a parte mais importante da trama: o sucesso e o contexto em que o "Pixote" de Babenco estava inserido. A obra-prima é transposta de forma apressada, em flashes burocráticos. Closes dos letreiros do Cine Odeon, notícias fakes de jornal e uma rápida entrevista à imprensa, querem satisfazer o espectador sobre o abismo de alguém sair de um barraco em Diadema para o topo.

Passado o tempo, bem rapidinho Fernando cresce. Já tem quinze anos e procura emprego. É tentado pela amargura do irmão, crente de que, na hierarquia da fome, um bandido cinematográfico significa menos do que na vida real. Fernando abraça o vaticínio, segue Cafu e ouve "ensinamentos". Este irmão revoltado e pragmático seria um típico personagem de Louzeiro, não fosse a ligeireza de sua construção.

Mergulhando no crime, Fernando vai pro xilindró, e cai nas mãos de Lobato. O policial inveja o ator. Utiliza de suas prerrogativas para derrotá-lo moralmente. Vez ou outra, a imprensa lembra de Fernando e o entrevista, comparando o passado glorioso com o triste presente. Sabemos que no Brasil, país sem memória, a cretinice machuca bastante. Esse aspecto torna-se bem explorado à medida em que Fernando afunda, como um fantasma.
E ele, de fato, não sabe o que fazer com o esquecimento. Confunde realidade e fantasia -- ora aceita-se Pixote, ora reafirma-se Fernando, "o maior ator do Brasil". Ganha alguma alegria quando conhece a fã, Cida (Luciana Rigueira), e ela lhe oferece uma paixão morna. As cenas entre Fernando e Cida, ao som de Raul Seixas, pelo menos nos poupam da trilha extravagante.

Quase no fim da linha, Fernando ruma para o Rio de Janeiro e faz última tentativa de voltar a ser famoso. Pede ajuda a José Louzeiro (Orlando Vieira), que o encaixa em uma novela. Só que Louzeiro desconfia que o rapaz não sabe ler direito, e o manda recitar um poema de Augusto dos Anjos, na melhor cena do filme. Expulso da novela por não decorar as falas, termina faxineiro na produtora de "Pixote".

Um derradeiro convescote junta os filhos de Iracema, dançando com a mãe "Emoções", de Roberto Carlos, em momento pueril. De acidente em acidente, quando inscreve suas mãos em uma calçada da fama sangrenta, resume o dilema: não alcançando seus sonhos, eternizou-se assassinado covardemente.

Em 2002, José Joffili fez o que parecia impossível, dirigindo um remake da peça de Plínio Marcos, "Dois Perdidos Numa Noite Suja", ambientado nos Estados Unidos, e tão interessante quanto o primeiro filme, de Braz Chediak (1971). Também adaptou bem o escritor hispano-copacabanense Luiz Alfredo Garcia-Roza em "Achados e Perdidos" (2005). Infelizmente, "Quem Matou Pixote?" não reclama esses méritos. Coleciona tantas imperfeições, tantos clichês, que mais prejudica a intimidade e empatia com Fernando do que propriamente a consolida.

terça-feira, maio 11, 2010

Tico-Tico no Fubá


Neste país de etnocêntricos invertidos e revolucionários apocalípticos, muito se discutiu e falou mal do projeto da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O que pouca gente lembra, ou sabe, é que a criação do estúdio paulista representou ambicioso projeto de modernização nacional, surgido a partir do dinheiro da burguesia de São Paulo.

Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho, visionários fundadores, não tinham uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, mas capital suficiente para importarem técnicos e diretores de tantos lugares do mundo que, em certo momento, São Bernardo do Campo devia parecer um mercado persa. Vinham da experiência de levantarem o Museu de Arte Moderna e agiam, na esfera privada, com o mesmo pragmatismo de certas políticas públicas de centralismo cultural.

Dentre os chegados, destacava-se o italiano Adolfo Celi. Natural de Messina, região da Sicília, ex-aluno da Accademia Nazionale d'Arte Drammatica de Roma, Celi morava na Argentina quando ouviu boatos de que, em São Paulo, a efervescência cultural era tanta que gente de toda a Europa se encaminhava para a cidade. Não conversou e logo fazia parte do meio teatral da metrópole, namorando a atriz Cacilda Becker e integrando o Teatro Brasileiro de Comédia, outra criação da dupla Zampari-Matarazzo.

Do teatro para o cinema, acabou responsável pela estréia dos Estúdios Vera Cruz, dirigindo – ao lado de Tom Payne – “Caiçara” (1950), drama ambientado em Ilhabela, litoral norte. Em “Caiçara” já encontramos o modelo da companhia: estrangeiros realizando uma produção de qualidade impecável, sobre um tema marcantemente nacional.

Quando a indústria de cinema parecia de vento em popa, Adolfo Celi recebeu missão de adaptar a biografia do músico Zequinha de Abreu. Para o papel principal, o escolhido foi Anselmo Duarte, àquela altura galã consagrado. Seu par romântico, Branca, era Tônia Carrero, com quem Celi havia casado em 1951.

Em “Tico-Tico No Fubá” (1952) a bela, vestindo trajes sumários, encanta o fiscal de prefeitura Zequinha, homem dividido entre a arte e o ofício burocrático no torrão natal, Santa Rita do Passa Quatro. Os dois se conhecem enquanto ele notifica o circo onde Branca trabalha, e engatam um daqueles flertes que casou muitos dos nossos avós no século XX.

Os minutos iniciais dispersam um pouco o espectador, mostrando interminável espetáculo circense. Por sorte, cai um temporal e a platéia foge. Zequinha vai atrás de Branca e acaba envolvido pela amizade dos artistas, que o reconhecem como um igual.

Apaixonado por Branca, Zequinha é noivo de Durvalina (Marisa Prado), moça que resume a atmosfera interiorana e o cotidiano simplório dos quais gostaria de se afastar, mas não consegue.

Quando ficam evidentes suas diferenças em relação à amante, e ouve colegas do circo o chamarem de "caipira", casa-se com Durvalina. Pai de três filhos, vira homem amargurado pois esqueceu a música que fizera certa ocasião para Branca. Além disso, sua única composição editada encalha nas lojas. No futuro longínquo de 2010, vale explicação de que partituras impressas rendiam dinheiro e prestígio aos compositores.

Zequinha come o pão que o diabo amassou até que a memória lhe traga de volta a música, o "Tico-Tico no Fubá", e a redenção consagradora. Há também o reencontro com a musa e um chorôrô típico de melodrama.

Este seria o último filme dirigido por Celi em terras brasileiras. Deixaria um longa inacabado, antes de voltar para a Itália e atuar em dezenas de papéis coadjuvantes. Já Anselmo Duarte usaria, nas décadas seguintes, muito do que aprendeu com os estrangeiros. Não só ele, mas todos os que passaram pelos estúdios de São Bernardo.

Grande parte das críticas à Vera Cruz merecem desconfiança, pois não passam de teimosia subdesenvolvida, recalque ideológico de provincianos orgulhosos. Mas cabe dizer que, excessivamente concentrada em São Paulo, a companhia ignorava que a civilização brasileira vibrava no Rio de Janeiro, capital da República. Se até hoje contornar o Rio – em busca de contato direto com o resto do país – é tarefa difícil, que dirá nos áureos 1950, quando a influência carioca reinava absoluta.

Por este lapso, a história – contada pelos vencedores, confortavelmente instalados na beira-mar e rodinhas do Paissandu – terminou retratando a empreitada dos industriais em cores perversas, doença a ser combatida e superada. Lembrar da Vera Cruz necessita sempre de tom desculposo, ressalva ao velho temor de que novamente se repita tal fracasso.

Claro que os intelectuais brasileiros estavam, como sempre, errados. A utopia da fábrica de filmes era aspiração legítima de um país que sofisticava-se. Sua localização nas franjas da capital paulista indicava o óbvio de que aquela geração, rica e afluente, trazia consigo vontade de afirmação, de apuro estético em sintonia com o resto do mundo. Quebrados em dívidas, o sonho desmoronou. Porém sobrevive um mito a ser abraçado sem mágoas, com encanto.

(in Zingu! #39, Março-Abril de 2010)


* Excepcional o Dossiê Vera Cruz publicado neste número da Zingu! Textos de Adilson Marcelino, Alfredo Sternheim, Ailton Monteiro, Daniel Salomão Roque, Gabriel Carneiro, Leandro Caraça, Matheus Trunk, Pedro Ribaneto, Sergio Andrade, Vlademir Lazo Correa e William Alves formam um detalhado e saboroso painel, filme a filme, da Companhia. O trabalho de edição e organização do Gabriel foi, como sempre, original e primoroso.

sexta-feira, maio 07, 2010

Escalada da Violência


O Beco da Fome carioca, situado nos arredores da Cinelândia, produziu filmes bastante curiosos. Primos pobres da Boca do Lixo paulistana, os cineastas independentes do Rio igualmente desenvolveram estética própria, que merecerá aqui revisão honesta e lúdica, como sempre livre de paranóias ideológicas e cinemanovismos messiânicos.

Pode-se dizer que, no espaço geográfico das ruas Senador Dantas, Álvaro Alvim e adjacências, os cariocas fizeram as coisas da sua forma: bebendo hectolitros de chopp, transando nos hotéis baratos -- e, de camaradagem em camaradagem, pulando de um trabalho a outro.

No Rio, diferente de São Paulo, a grana corria menos frouxa e a liberalidade mais quente. A praça Floriano, de madrugada, fervia de homossexuais e travestis. Uma discussão sobre roteiro ou efeitos especiais podia terminar em grossa pancadaria. Algumas jovens suburbanas vinham de longe em busca de namorados cinéfilos. Um vendedor de amendoins traficava maconha. E, a partir dos anos 80, betamax e vhs de pornôs estrangeiros corriam de mão em mão, anunciando o fim de um ciclo.

"Escalada da Violência" (1982), de Milton Alencar Jr., é paradigma dessa febre do Beco: roteiro absurdo, trilha-sonora fantasmagórica, exploitation requentado e muita, muita vontade de se fazer cinema. A história do arquiteto que perde a família, assassinada de forma brutal, e parte para uma vingança implacável, foi tirada do blockbuster norte-americano "Desejo de Matar", de oito anos antes. E, felizmente, "Desejo de Matar" inspirou no Beco um clássico nacional: "Ódio" (1977), de Carlo Mossy. Pois em "Escalada da Violência" o que temos é cópia, diluição rasa.

Filha e mulher mortas na casa da Barra da Tijuca, o arquiteto Jaime Cortez (Deny Perrier) oscila entre o catatonismo e o desespero canastrão. Nem o cunhado Jô (Helber Rangel) consegue dialogar com ele sem um sorriso no rosto, apesar da tragédia.

A polícia incompetente, a fotografia de pesadelo e Jaime beirando a psicose convidam o espectador a fugir. Mas o herói guarda uma carta na manga: o projeto de um carro Maverick com superpoderes. Implorando o auxílio de Jô, que servira no CPOR (?), Jaime manda o carro pra oficina e faz um curso de tiro, antes de perseguir os homicidas.

Armado e motorizado, o arquiteto vai à luta, panqueca da silva. Olhando de relance, Deny Perrier de óculos escuros até lembra Peter Fonda, se o filho do velho Henry comesse bolinhos de bacalhau no Amarelinho.

Lembrem que estamos no Rio, início dos anos 80, um calor dos diabos, governo Chagas Freitas. Se você estivesse na mesma situação e precisasse de informações do submundo, quem procuraria? Acertou quem respondeu Wilson Grey, no incrível papel do bicheiro Rato Seco. Em 82, exatos 165 filmes no currículo, Grey sabia de tudo e mais um pouco. Dando expediente em um botequim fétido no Rio Comprido, Rato Seco conta o suficiente para Jaime iniciar a caça.

Um a um, os malandros vão caindo. No meio deles, Jaime e Jô explodem transeuntes de lambuja, mas quem se importa? "Nessa cidade não há inocentes!", vira o lema de Jaime, à vontade no estilo Charles Bronson.

Massa, ex-pm, é o primeiro a ser tocaiado, graças à vigarice de sua namorada, Matilde, dançarina da Boate Dolly, que transa com Jaime em um motelzinho da Via Dutra. A cilada acontece em meio a uma espécie de ménage à trois, envolvendo Massa, Matilde, o comparsa Ventania e um torturante disco de Waldick Soriano na vitrola. Dominado por Matilde, Jô leva um tiro e agoniza. Jaime não interrompe o serviço e vão parar todos em uma praia deserta. Antes que os bandidos partam desta pra melhor, entregam o terceiro cúmplice, um certo Piolho.

Co-autores do filme -- inclusive o roteirista José Louzeiro -- afirmam que ele não foi lançado nos cinemas, caindo direto em home video. Teria havido um entrevero entre produção e exibidores. Porém, na maioria das fontes confiáveis, existem inclusive as datas e salas de lançamento: 9 de maio de 1983, em São Paulo, no Marabá; 13 de junho de 83 no Palácio, Rio de Janeiro. De qualquer forma, bancado por um rico mecenas, convencido a se meter em cinema por seus amigos do ramo, "Escalada da Violência" deu emprego a um monte de gente, e hoje convém ser degustado por espectadores de fino paladar.

Retrospectiva do Beco que se preze tem que ter "Escalada da Violência", "Rapazes das Calçadas", "Sexo e Sangue" e mais uma meia dúzia de pérolas. Ah, sim!, não podemos esquecer de "Viagem ao Céu da Boca", cujo título merecia ser "Viagem ao Céu do Beco" -- ou ao inferno, como preferirem. Pois muito mais do que na dicotomia glauberiana, é naquele trecho da terra do sol que Deus e o Diabo ainda se encontram, tomam umas e outras, e até esquecem o duelo, afundados nas poltronas do Orly ou do Rex. "Mais fortes são os poderes do cinema popular!" -- diriam o bem e o mal em uníssono.

quinta-feira, maio 06, 2010

Ninfas Diabólicas


Entre 2007, 2008, o famigerado episódio "O Pasteleiro", de "Aqui, Tarados!" (1981), andou sendo exibido em sessões no Rio e em São Paulo. Embaraçosa, chocante, pode-se dizer que a direção de David Cardoso, estrelada por John Doo, calou o público, domesticado pelas sociochanchadas e pelo ansiolítico cinema de hoje. A Boca, com sua estética selvagem, sua dialética amoral, era naquele instante um monolito de civilização rodeado por quem não tinha mais a mínima tradição em compreendê-lo.

Na recente mostra "Clássicos & Raros do Nosso Cinema", o longa de estréia de Doo, "Ninfas Diabólicas" (1978), foi recuperado, louvando que nem só da incrível performance em "O Pasteleiro" viverá para sempre este chinês de Chungking, nascido Chien Lien Tu -- desembarcado em São Paulo por volta de 1950 e, como tantos, um faz-tudo no cinema, de continuísta a ator e diretor.

Tal como a obsessão salvadora de Oskar em "A Lista de Schindler", fascina e oprime pensarmos que, de onde saiu "Ninfas Diabólicas", há muito mais no holocausto das cinematecas esperando resgate.

Aldine Muller e Patrícia Scalvi, quase púberes, vivem Ursula e Circe, duas louquinhas de uniforme escolar que seduzem um velho, Rodrigo (Sergio Hingst), fascinado pela perspectiva de sexo fácil com a dupla. Nem Aldine nem Scalvi, apesar da juventude, estavam propriamente bonitas na trama. É terror brasileiro na veia: sorrisos careados, pele imperfeita, falta de maquiagem.

Acontece que tio Rodrigo guardava um atraso de dar dó. Amacia as pernocas de Aldine enquanto, no banco de trás, Circe pratica aquela espécie de voyeurismo que lembra antiquíssimos relatos da Revista Ele & Ela. Desviando Rodrigo de uma viagem para São José dos Campos, vão parar no litoral, em um clima meio trash-khouriano no qual a Anima insiste em ludibriar o macho idoso, de cuecão ridículo e barriga pantagruélica. Se o objetivo era assustar, vemos o interlúdio entre peitinhos e bumbum apetitosos de Aldine e a imensidão de pelancas do extasiado Hingst, cinqüenta e quatro anos de praia.

O tête-à-tête monta um desfecho que o vocativo ao mito grego -- Circe -- já entrega. Sinistros pratos de comida, turbinados por algum pó de pirlimpimpim, não surgem na mesa de Ursula e Rodrigo à toa. Circe, na mitologia, era uma deusa com poderes de feitiçaria, que envenenava os homens que visitavam sua ilha. Na versão Ody Fraga ela some, reaparece e tem um jeitinho sonso, de caipira deslumbrada.

John Doo, bem amparado pelo roteiro de Ody, a montagem de Máximo Barro e a fotografia de Ozualdo Candeias, filma com tosco capricho, absorvendo a estrada, o vagar da areia e mesmo a paisagem urbana de uma São Paulo setentista e adorável. No rádio, ouvimos sobre a perseguição aos algozes de Cláudia Lessin Rodrigues, tema quentíssimo do período.

Certos filmes da Boca, pela necessidade óbvia de agradarem ao público, equalizavam roteiro, fotografia e diálogos em uma espécie de didatismo que lembra Hollywood dos anos 40 e 50. Isso pode ser visto em produções tão díspares quanto "As Intimidades de Analu e Fernanda", de José Miziara, e "Os Desclassificados", de Clery Cunha. Um cinema às vezes de autor, mas não tanto quanto gostariam críticos franceses ou Andrew Sarris. "Ninfas Diabólicas" guarda este suspense linear, de anedota, oferecendo recheio permissivo nas longas cenas das moças nuas -- alisadas pelo sugar daddy aparvalhado -- emulando interpretações fantasmagóricas que não se sustentam e falando um dialeto provinciano de beira de rodovia.

O resultado final, menos pela forma e mais pelo conteúdo pitoresco, é sempre manancial de riqueza e surpresa inesgotáveis. Feita por chineses, italianos, lusos e até mesmo baianos e paulistanos, a maior indústria de cinema da América Latina está, aos poucos, reeguendo-se do pó e nos observando, cheia de ironia e volúpia, pronta para dar o bote. Qualquer semelhança com "Ninfas Diabólicas" não terá sido mera coincidência.


sábado, maio 01, 2010

Biografia Entrevista - Patrícia Scalvi


Antes do início das atividades deste blog, uma curiosidade sempre me atiçou, faiscando as orelhas. Se o cinema brasileiro é conceito amplo e mal formulado, o que dizer das mulheres que nele trafegaram? Para piorar, a dúvida aumenta quando tocamos na Boca do Lixo paulistana, o suposto antro de obscurantismo e de falta de talento generalizada.

Reflito sobre o assunto até mesmo por um exercício direto, indisfarçável, de espelhamento. Apaixonada pela causa desde a púbere idade, ouço um quê de terror a cada vez que subo nas tamancas e defendo o que parece indefensável: a potência dos filmes que muitos se negam a ver.

Decidida a entrevistar uma criatura do belo sexo para o Estranho Encontro, escolhi Patrícia Scalvi. Articulada e doce, deixou o caminho livre para um papo fluido, sem falsos rodeios, inúmeras vezes cômico.

Atriz levada ao sets por uma casualidade do destino, neles se transformou em elemento da atmosfera que nos idos dos 70 e 80 ganhava forma. Walter Hugo Khouri, Jean Garrett, David Cardoso, Carlos Reichenbach, Cláudio Cunha, Luiz Castellini, Ody Fraga, Antonio Polo Galante. Nesta sopa de elementos heterogêneos – e a heterogeneidade é fato que não se pode perder de vista –, Patrícia foi se reformulando a ponto de hoje dar vazão à faceta de dubladora. Fãs de animes, tremei, ei-la aqui.

Sem mais delongas, aqui vai o registro do bate-papo recheado por sonoras risadas e pela certeza, inevitável, de que sempre haverá muito a se detalhar no inventário que vamos reescrevendo de nossa arte.


ESTRANHO ENCONTRO – Patrícia, antes de falarmos sobre você no cinema, seria interessante vermos outros aspectos da sua vida. Quais são as suas primeiras recordações?

PATRÍCIA SCALVI – Nasci em São Paulo, meus pais em Amparo, ambos. Somos 6 irmãos, meu pai se casou 3 vezes. Dois filhos do primeiro casamento, 2 do segundo, 2 do terceiro. Um falecido, meu irmão por parte de pai e mãe. Os outros por parte de pai estão todos vivos, nos damos super bem. Estudei em colégio de freira, o Santa Marcelina, bastante tradicional. Nunca pensei em ser atriz, até os 14 anos. Quando minha adolescência começou, resolvi parar de estudar no colégio de freira, por minha conta. Meu pai “p” da vida comigo, não queria nem saber...

EE – ... Imagino. Família de italianos?

PS – De italianos. “Quero trabalhar, quero o meu dinheiro!” E lá fui trabalhar, larguei o Santa Marcelina. Terminei o 2o. grau no Colégio de Aplicação. Um lugar, vamos dizer assim, totalmente de esquerda. Época de grande repressão, de ditadura mesmo. Aí comecei a me interessar por teatro, porque havia um grupo de adolescentes fazendo teatro, junto com o César Vieira, também conhecido como Edibal Piveta, que montou o “Rei Momo”. Essa foi a primeira peça que eu fiz na vida. Teatro levado pra periferia, pra conscientizar as pessoas. Político, teatro político, mesmo. Depois disso, pulei pra Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, do Iacov Hillel, atualmente um grande diretor de ópera, um portento. Ele tomava conta desse pessoal, dessas crianças, apesar de ele ser criança também, só um pouco mais velho. Quando ele saiu fora, pra fazer outras coisas, quem assumiu foi o Marcos Caruso. Fiz exame para a Escola de Artes Dramáticas, a EAD, não consegui entrar. Mas quando o Antunes Filho começou uma seleção para o “Bonitinha, Mas Ordinária” no Teatro Paiol, eu tentei. Tentei, fui aprovada e por “n” coisas acabei não fazendo a peça. Apesar disso, continuei a fazer teatro, a buscar teatro. O Timol, por exemplo, que era mais amador. Até que surgiu a possibilidade do cinema.

EE – Então o cinema não foi a primeira coisa que você teve em perspectiva. Apareceu no meio disso tudo.

CC – Sim, o cinema foi bem depois. Quando eu completei mais ou menos 21 anos, eu soube de um teste que estavam fazendo na Boca, pra um filme chamado “Presídio de Mulheres Violentadas” [risos]. Assim eu conheci o [Luiz] Castellini, diretor, e o [Antonio Polo] Galante, produtor. O Galante olhou pra mim, o meu tipo, e disse “Ah, você pode fazer uma das presidiárias, uma bailarina.” Realmente, eu praticava balé. “Uma bailarina com mania de ficar fazendo barra dentro da prisão. Fica fazendo barra lá.” Quem seria o papel central desse filme era a Nicole Puzzi. Na época não era nem Nicole Puzzi, esse nome quem deu foi o Walter Hugo Khouri. Era Nicole Salini, nada a ver com Nicole Puzzi. Uns 2 ou 3 dias antes de eu começar, chego em casa e tem um recadinho embaixo da porta: “Venha correndo no escritório do Galante, precisamos falar com você.” E não é que a Nicole havia sumido do mapa? Ela viajou pro Rio, acho que estava namorando alguém [risos], não sei. Eu brinco muito com ela sobre isso. Sumiu, e tinham que começar o filme. “Vamos chamar aquela moça! De teatro, que fez o teste. Como é que é o nome? Patrícia.” Não usava nem sobrenome ainda. O Scalvi é de família, mas eu não usava.

EE – Era Patrícia, só?

PS – Era Pat Pietro. Patrícia nem é o meu nome verdadeiro, é o nome que eu viria a dar à minha filha, não é o meu. Me chamo Vera Lúcia. No início foi Pat e de Pat virou Patrícia, pra não ficar americanizado, parecendo ser “pét”. Ninguém me conhecia como Vera, claro. O José Júlio Spiewak, super amigo do Biáfora, e o Khouri ajudaram a compor esse nome artístico. Eles perguntaram: “Qual é o seu sobrenome?” “Scalvi.” “Decidido: Patrícia Scalvi! É lindo!” Ficou.

EE – E assim a Patrícia Scalvi estrelou o filme.

PS – Pois é, e o que que aconteceu? Entraram em contato comigo, disseram na bucha: “Olha, nós vamos lançar você.” Bonito, né? Que, como, onde, por quê? Cinema, eu? “É, vamos te lançar. Porque você tem o tipo que a gente quer, você vai fazer a Tininha.” Fui fazer o filme sem conhecer absolutamente nada. Não sabia da linguagem cinematográfica, como trabalhar com câmera, como me portar, o que a câmera pega, o que a câmera não pega, a distância, a lente. Enfim, não sabia nada. Mas como eu não sou idiota nem nada, o que eu fazia? Ficava do lado do diretor de fotografia nas horas em que eu não estava filmando. “O que é isso?” Ah, lente 50, tal, numa distância dessa está pegando até ali. No início eu exagerava tudo, todas as expressões. E em cinema você trabalha com o olhar, com a alma. Em teatro você abre, é tudo maior.

EE – Depende até do corte que vão colocar na montagem...

PS – Exatamente. Coisa assim que eu não [risos]... eu não sabia nada.

EE – Esse ambiente da Boca é um ponto-chave. Queria saber como foi pra você, uma moça de classe média, que estudou em colégios sofisticados. Você teve que vencer algum preconceito seu ou foi no embalo de garota? Nós sempre vemos os homens falando sobre a Boca, mas as mulheres falando sobre esse assunto é um tanto difícil.

PS – Olha, eu fui no embalo, porque achei muito interessante experimentar cinema. O tipo de cinema que se fazia então era esse, e pra mim era muito louco ver de perto. Quando eu resolvi parar de estudar em colégio de freira, e partir, a cabeça foi abrindo. Uma virada, 180 graus. Eu pensei “Meu Deus, o mundo não é aquilo, é muito maior.” Apesar disso, era complicado. Um local perto de rodoviária, não muito bem freqüentado, até hoje não é. Local de prostituição à noite, de dia fervilhava, era uma festa. Na realidade, aquele trecho, a rua do Triunfo, apesar de todos os senões, era uma grande festa porque ali desfilavam atores consagradíssimos hoje em dia. Gente que estava começando a carreira, diretores muito importantes e não-importantes, atrizes que eram atrizes com formação e atrizes que não eram atrizes. Moças que buscavam uma vitrine pra poderem vender “outras” coisas. Pra poderem subir na vida, gente que nunca estudou, nunca fez nada. Um monte delas, que acabou-se peneirando e sumindo. Sobrou o pessoal que tinha embasamento, um certo estudo. Mas, nossa, era um lugar barra pesada. Não vou dizer pra você que eu não me assustei [risos]. A gente se assusta, sim, mas depois você vai convivendo. Eu acabei me casando com um cineasta, o Castellini, e eu convivi pelo menos durante 10 anos, indo à Boca praticamente todos os dias. Porque eu não fui só atriz. Eu dirigi, eu fiz assistência de direção, continuidade, cenário, produzi. Tudo o que você pode imaginar em cinema.

EE – Você testemunhou fases e grupos diferentes, de lá.

PS – Ah, sim, sim. Os grupos eu acho que iam muito pelo cinema que as pessoas faziam, sabe? Eu trabalhei com praticamente todos os diretores de São Paulo. No Rio, pouco. Só com o Cláudio Cunha, que também era de São Paulo e depois foi pro Rio. Não trabalhei com o Tony Vieira, uma gracinha de pessoa, uma alma maravilhosa. Lembro que ele falou pra mim: “não, você não é atriz pra trabalhar nos meus filmes. Você é uma atriz muito...” Eles falavam que eu era uma atriz “muito boa pra trabalhar em filmeco”. Ele próprio considerava, já tinha essa coisa. O engraçado é que eu pegava o roteiro, às vezes nem gostava muito da história, mas topava porque virei muito amiga das pessoas. O que é um erro [risos]. Eu nunca cobrei certo pelos trabalhos que eu fiz. Você acorda, vai pra rua do Triunfo, encontra com um e com outro. Senta, almoça junto, vai, toma um café, bate papo. Está produzindo, tem um elenco ali, tem um elenco aqui, tem uma turma ali. O Khouri e o Massaini, o Galante, os produtores da época que eram considerando melhorzinhos aqui em São Paulo, eram uma tchurma. O Candeias, que era absolutamente à parte. Fazia direção de fotografia de muitos filmes, também dirigia, não trabalhava com atores, trabalhava com pessoas comuns. A divisão existiu, sim. Mesmo o Enzo Barone, que tinha uma produtora nos Jardins, acho, vira e mexe também se associava. O Fauzi Mansur, essa gente toda.

EE – Era uma sucessão de projetos, de lançamentos, muito grande.

PS – A rua do Triunfo da década de 70 ao final de 80, nossa! Tinha ano em que se produziam 80, 100 filmes. Uma indústria, e tudo com iniciativa própria. Não havia Embrafilme, que ajudava mais o Rio, inclusive. Além de o pessoal do Rio ser considerado mais engajado, entre aspas. Ao passo que os paulistas, mais comerciais, como se dizia. Mas o fato é que os atores, na realidade, trabalhavam tanto lá quanto aqui. A Sandra [Bréa], a Sônia [Braga], a Vera [Fischer], essa gente toda estava em São Paulo e no Rio.

EE – Alguns diretores são mais presentes na sua carreira, outros menos. Com o Carlos Reichenbach você fez “Paraíso Proibido” e depois “Amor, Palavra Prostituta”. O que você lembra do processo de filmagem do Carlão?

PS – O Carlão é um anarquista, graças a Deus [risos]. É gozado, com o tempo cada um foi pra um lado. No set era sempre muito divertido, não havia tensão. Muito relaxado, deixando todo mundo muito à vontade, e assim o trabalho flui. Flui bastante. Era exigente, claro, e com ele a gente tinha condições de “filmar 3 por 1”. Fazer 3 vezes a mesma tomada. O negativo era muito caro, mas em algumas produções havia possibilidade de se trabalhar um pouco melhor. Trocávamos idéias, mas cinema é a arte da direção, não tem por onde. Ator é importante, óbvio, porque se você não tem um bom ator também, não ajuda muito. Mas o produto final está na mão da direção e do montador. O diretor é o único ali que tem o filme na cabeça, inteirinho. Então ele dava os caminhos corretos e tal, era um prazer.

EE – O “Amor, Palavra Prostituta”, aliás, sofreu na mão da censura, não foi?

PS – A cena do aborto com a personagem da Alvamar Taddei foi cortada. Tiraram, parece, quase meia hora de filme, o Carlão ficou louco. Um absurdo. Por quê? Não era nada de mau gosto, nem explícito. Estava-se falando de um aborto que a mulher fazia, por questões que aconteceram com a personagem. Ela passava mal, ia ficar na minha casa, enfim. Cortaram muita coisa, o filme ficou mutilado. Acho que a cópia que existe em Rotterdam, aonde ele foi premiado, está na íntegra, é a total. Que coisa absurda. Em teatro eu também passei esses apuros, porque eles iam lá e quebravam tudo mesmo. Não havia o menor respeito.

EE – E com o Castellini, como é que foi a parceria que ultrapassou as fronteiras do cinema? [risos]

PS – [risos] O Castellini me ensinou muita coisa. Um homem simples, autodidata total. Barretense, chegando em São Paulo foi ser projecionista. Aprendeu inglês assim, pra você ter uma idéia. Fala fluentemente, traduz até hoje. E foi uma pessoa mais velha, por quem eu me apaixonei, vivi 8 anos com ele. Foram anos legais, bons e maus momentos. Me lembro que quando fizemos o “Presídio de Mulheres Violentadas” tive uma discussão séria com o Galante. Ele me tirou do filme, eu não terminei, o Castellini brigou também. Saímos os dois. A Zilda Mayo, se não me engano, posou para a minha morte, de costas. O Galante vociferou: “Você nunca mais vai fazer cinema, quero ser mico de circo!” Respondi: “Vou te comprar uma fantasia de mico” [risos].

EE – [risos]

PS – Depois eu voltei a trabalhar com ele. Mas nos letreiros do “Presídio” meu nome não aparece, estava no meio da figuração. Nada de “apresentando Patrícia Scalvi”, nada. Nem me dublei! Quem me dublou foi a Rosinha Quinto, atriz, de uma voz muito parecida comigo, não dá pra sentir a diferença. Só fui me dublar pela primeira vez no “Dezenove Mulheres e Um Homem” com o David Cardoso. Tive uma facilidade imensa, tanto é que atualmente eu trabalho com isso. Enfim... E essa discussão, por quê? Por conta de uma questão que nem era minha. Esse é o grande problema, em relações humanas. Você é casada com uma pessoa e acaba comprando a briga do outro. As pessoas mesmas juntam o casal e acham que não podem ser amigas individualmente. Faz parte, é assim que o mundo funciona. Mas aí, o Biáfora assistindo ao filme disse: “Quem é aquela moça que faz a Tininha? Maravilhosa, não tem nem o nome dela lá, e faz o central.” Ele descobriu e colocou: Patrícia Scalvi. A partir daí, não adiantou, fugiu ao controle do Galante. Eu não conhecia o Biáfora, mas ele me deu muita força. Depois eu o conheci, pessoalmente.

EE – Durante a parceria com o Castellini foram quantos filmes, no total?

PS – Uns 10, 12. “Instinto Devasso”, por exemplo. Essa coisa dos títulos era engraçada. Porque “Tara, Amores Proibidos” não tinha nada de tara. Mas de repente pensavam “tara é legal, vai chamar público”. E realmente chamou, ficou 4 semanas no Marabá. Ficando 2 semanas no Marabá e no Ipiranga, era sucesso no Brasil inteiro. Vários filmes que eu fiz ficaram muitas semanas. O “Instinto Devasso” foi o último que ele dirigiu, acho que nem entrou em circuito comercial. Éramos 2 atores, praticamente, o filme todo. Eu e o Ênio Gonçalves. Tudo muito falado, verborrágico mesmo, não era popular. Nunca mais o vi, não consigo cópia. Participei de 48, 49 filmes e é dificílimo. Pouquíssimos filmes chegaram a ser telecinados. Os poucos que foram, o Canal Brasil reprisa.

EE – Uma personalidade da Boca que me intriga bastante é o Jean Garrett. Não só pela vida, pelas circunstâncias de ter falecido da forma que foi, mas também pela abordagem dele nos filmes. “A Mulher Que Inventou O Amor” é qualquer coisa de transcendental...

PS – O Jean... Uma pessoa tão divertida, tão bacana, peculiar. Pra você ter uma idéia, eu sabia que ele era casado, mas não conheci a mulher dele. Em 89, estava o Collor pra entrar no poder, eu fui a Portugal, gravar meu último filme. Na volta, ele me convidou pra fazer “Rapunzel” no teatro. A bruxa, ao lado da Luciana Vendramini, numa adaptação do Walcyr Carrasco. Nessa época eu percebi que ele estava muito amargo. Não sei o que que rolou, qual foi o mecanismo, em que momento se partiu. Me tratava muito bem, gostava muito de mim, me dei super bem com ele, mas eu não sabia dos meandros da vida pessoal dele. Muito talentoso. Aliás, todo mundo que fazia cinema na Boca tinha, na sua maior parte, muito talento. Porque com pouco dinheiro, com poucas condições, com roteiros às vezes ruins, mal escritos, se fazia cinema.

EE – O “Noite em Chamas”, na linha catástrofe, deixa clara essa falta de recursos.

PS – O “Noite em Chamas”, especialmente, tinha muito figurante. E a figuração, se você não tomar cuidado, eles passam por cima de você. O Jean ficava louco. Tínhamos uma câmera para rodar tudo. Nem 2, nem 3. Acho que só no dia do incêndio ele conseguiu ter 2 câmeras. Eu o via muito irritado, nervoso. Já no “O Fotógrafo”, também do Jean, eu atuei ao lado do Roberto Miranda. Que, aliás, incorporou o personagem. Enquanto ele estava filmando, vivia 24 horas por dia o fotógrafo. Quando acabou o filme, ele continuou a viver também [risos]. Demorou um pouco pra voltar. Eram muito amigos, os dois, inclusive.

EE – Pobres homens, não sabiam que nos filmes do Garrett eles sempre perdiam [risos]. No próprio “O Fotógrafo”, vocês é que deglutiam o “protagonista” totalmente....

PS – [risos] Acho que nem o Jean tinha consciência disto, será? Mas é verdade... No final a minha personagem dá um chega pra lá no fotógrafo, um egocêntrico do caramba. Dava um pontapé mesmo, como ele fazia antes com todas. O Jean escolhia os roteiros, não escrevia, mas dava os argumentos. Todos bem favoráveis à raça feminina, mesmo [risos]...

EE – E enquanto isso, você também gravava com o David Cardoso, proprietário-fundador da Dacar.

PS – Que, por sinal, funcionava em Campos Elíseos, alameda Dino Bueno, numa casa aonde ele morava. Longe da rua do Triunfo, mas o David estava sempre por lá, apesar de se reunir mais nessa casa. Normalmente as pessoas trabalhavam com as suas equipes. Sempre tinha um ou outro que trabalhava em todas. Os maquiadores eram os mesmos, pulavam de produtora em produtora. E o David tem muita história pra contar, é fantástico.

EE – Interessante, Patrícia, é que em muitos filmes produzidos pelo David havia personagens do mundo gls. Você mesma contracenou em vários episódios deste tipo.

PS – Eu, Patrícia, sou hetero. Mas é engraçado, porque em cinema a gente pode viver muitas coisas, e até experimentar muitas coisas, eu diria. Porque no cinema, quer queira, quer não queira, você vai fazer mesmo o sexo simulado. Se você vai beijar, em cinema não dá pra enganar, você tem que beijar. Você encosta, não tem como. É lógico que é tudo simulado, mas você encosta. Eu beijei a Nicole [Puzzi], numa cena no meio de um bar, em “Tessa, A Gata”. Então eu tive a oportunidade de beijar e saber que não é muito a minha, mas não tenho preconceito nenhum. Nunca tive. A primeira vez que eu tirei a roupa num set, por exemplo, eu estava tão temerosa, e depois que fiz a cena, pensei “nossa, mas é tão tranqüilo”. Porque as pessoas tem uma imagem outra, acham que não há respeito. Não, era uma equipe que super respeitava. Só ficou no campo de filmagem, no set, as pessoas que interessavam ficar e que eram necessárias. E sempre foi assim comigo.

EE – No “Profissão Mulher”, dirigido pelo Cláudio Cunha, roteiro da escritora Márcia Denser, essa questão da homossexualidade fica ainda mais acentuada.

PS – É, exato, eu fazia a própria. Recentemente eu vi fotos do “Profissão Mulher”, de uma cena minha com o Otávio Augusto. No hotel, quando a personagem está bêbada. Me puseram de peruca [risos], uma editora de moda, homossexual, apaixonada por uma menina, que é apaixonada por outro. Aquela velha história. Gravamos no Rio e tive a oportunidade de trabalhar com alguns atores que não vinham muito a São Paulo. Cláudio Marzo, Lady Francisco, Marlene, a cantora. Imagina, Marlene.

EE – Marlene que saiu como uma revelação, na cena com outra garota. Uma diva dos anos 40, com esse ato de coragem, sem falso puritanismo...

PS – Vou te dizer uma coisa, não foi fácil, não. Ela teve muita dificuldade, demorou um dia inteiro. Lembro que em um momento eu achei que ela fosse desistir. Ela parou, falou “Ai, eu não vou fazer. Não vou conseguir fazer isso, não vou conseguir”. Mesmo tendo lido o roteiro, sabendo que teria que fazer. Ela topou, assinou o contrato e tudo, mas eu sei que é difícil. Uma outra geração, uma outra cabeça. O humano da coisa é fantástico, ela teve que romper bareiras e mais barreiras, mas fez. E ficou lindo, lindo.

EE – Voltando pra São Paulo, o Alfredo Sternheim. Vocês rodaram “Corpo Devasso”, também bastante corajoso, ousado, por abordar a homossexualidade entre rapazes.

PS – Eu queria ter feito outros filmes com o Alfredinho. Até hoje a gente se encontra, moramos no mesmo bairro, praticamente. É um gentleman, um doce de criatura, cultíssimo. Trabalhar com ele foi um raro prazer também. Eu guardo a imagem dele fazendo assim [encaixa o polegar e o indicador de cada mão, formando um quadrado]. Ele ia enquadrando, olhando, refletindo. No “Corpo Devasso” tive uma pequena participação, atuei com o David, o filme é do David. O tema era sempre comentado, e o nu masculino já estava frontal, antes era meio camuflado. Já se estava abrindo um pouco mais, se falando mais abertamente sobre esse tabu. Problema pra fazer, não havia. Os atores topavam. Ator é ator. Ator que não é ator é que fica cheio de dedos com as coisas. É que foi tão rotulado o nosso cinema. Foi tão rotulado como “porno” isso, “porno” aquilo. Hoje em dia, às vezes eu estou batendo papo na internet e logo vem: “você transava nos filmes?!” As pessoas confundem. Tinha cena de sexo, não era explícito, porque vendia. Fiz coisas muito ruins e coisas muito boas também, era a opção que a gente tinha de trabalho. E esse tipo de cinema, quer queira, quer gostem, quer não gostem, trouxe o público de volta às salas. Com o advento do sexo explícito, nos anos 80, a gente achou que ia ser dividido, que ia ter espaço para os dois públicos. Não. Isso tudo acabou.

EE – Chegando no Walter Hugo Khouri, “Eros” e “Convite ao Prazer”. No “Eros”, qual a marcação utilizada, já que vocês atuavam de frente para a câmera?

PS – O Khouri era impressionante. Mesmo o figurante que entrasse para servir o café, naquele momento era a estrela do filme. Ia lá o Khouri, penteava, arrumava, conversava. “Olha, é assim que você tem que andar, colocar a bandeja.” Marcava até a maneira de andar pra pessoa, quando ele percebia que era um pouco sem técnica. Em relação aos atores, foi a mesma coisa. Sempre muito atento, indicando o que ele queria. Com o Khouri eu tive não só o prazer de atuar na frente das câmeras, ele também me chamava pra dirigir a dublagem. Não a interpretação. Interpretação, ele dirigia. Eu só olhava o sincronismo. Paciência para ver a interpretação ele tinha, mas na hora do sincronismo, ia embora. Ia fumar um cigarro [risos].

EE – E o “Convite ao Prazer”?

PS – “Convite ao Prazer”, com Serafim González. Nesse e no “Eros” eu fiz pontas, o Khouri trabalhava com muitas mulheres, muitas histórias entrelaçando com uma só. Mas o interessante do “Convite ao Prazer” é que pela primeira vez na vida eu trabalhei em estúdio, você acredita? Construíram a garçonnière do Marcelo em estúdio. Todos os filmes que eu tinha feito eram em locação. A gente fica tão à vontade, porque ali não é a casa de ninguém. Normalmente você tem que tomar cuidado com tudo, não pode mexer. E se some alguma coisa é um caos. “Esse pessoal da Boca”...

EE – A forma de produção era no improviso.

PS – Eu lembro que no “Dezenove Mulheres e Um Homem” nós saímos de São Paulo já fazendo o filme no ônibus. O David dirigindo o ônibus. Tinha eu, a Zélia Diniz, a Helena Ramos, várias outras. Atrizes, poucas. O resto eram garotas que o David tinha chamado, ele é louco. Dirigindo, filmando, parando, dormindo. “Ah, vamos fazer a cena aqui, a freira ali, a não sei o quê ali.” Pára, segue. Pára no hotel, vamos dormir. Dorme todo mundo, aí volta [risos]...

EE – [risos] Uma coisa meio “Priscilla, a Rainha do Deserto”!

PS – É, bem isso! Chegamos no Mato Grosso pra filmar, era pra ficarmos hospedados na fazenda de um amigo dele. Quando a esposa do homem viu aquela mulherada, surtou: “Vocês não vão ficar aqui!” Botaram a gente nas cabanas de colono, que não estavam sendo usadas, de terra batida...

EE – [risos]

PS – ... Não, você não acredita... Como não tinha aonde dormir, buscaram rápido umas camas de campanha, aquelas camas de campanha do exército. Beliche. Pra tomar banho, a gente tinha que bombear água! Aí a mulherada começava a o quê? A dar piti na vida. O que que acontecia?

EE – [risos]

PS – ... Começava a dar problema. O David e o Ody Fraga, que estava junto: “Mata fulana. Manda embora.” Então o Ody escrevia: “Vai pro pau.” Morria. Eu fiquei, eu fui a última! Peguei o avião na volta. Fui ficando, porque eu não reclamava, toda ali, calma. A esposa do fazendeiro ainda foi com a minha cara, eu tinha acabado de me casar, era novinha. Tinha gente que se estapeava. Imagina, uma mulher não ia com a cara da outra, ia lá e metia a mão. Uma coisa, coisa fina mesmo! Fina, bem fina. Pra piorar, eu tinha saído de uma caxumba, me deu caxumba dos 2 lados. Sarou a caxumba, fui fazer o filme. Quando voltei, o Castellini estava trabalhando com o Mazzaropi, em Taubaté, aonde ele tinha estúdio, hoje museu. Depois, dentre muitos outros, veio o episódio em “Noite das Taras”, comigo e com o Arlindo Barreto. Gosto muito desse episódio. Gravamos num apartamento na avenida Angélica, outra locação. Ganhei também o prêmio APCA por “Duas Estranhas Mulheres”. Muito engraçado esse APCA, porque empatamos eu, a Tania Alves e a Carla Camuratti. A Carla com “O Olho Mágico do Amor”. Já nos anos 80, é que começou a mudar.

EE – O seu último filme você gravou em Portugal?

PS – Chama-se “A Eternidade”, uma co-produção Brasil/Portugal, da Haway. A maioria dos atores eram brasileiros, a equipe técnica era toda de Portugal, com exceção do diretor de fotografia e do assistente dele. Participamos eu, o Dionísio Azevedo, que já é falecido, o Denis Derkian, a Ana Maria Nascimento e Silva, e alguns atores portugueses também. O filme não veio pro Brasil, não foi sucesso lá também. Isso em 1989. Como já era a época do cinema de sexo explícito, eu parei. Não era mais o cinema simulado. Fiz uma novela no Sbt, o “Meus Filhos, Minha Vida”, grande sucesso. No teatro, “O Alquimista”, um furo n’água, adaptação do Walcyr Carrasco. “O Alquimista” pode ser cinematográfico, mas não tem carpintaria teatral, não é uma coisa pra teatro. E não foi bem. Aí eu continuei dublando e dublo até hoje. Atualmente eu dirijo dublagem.

EE – Uma área a que você sempre se dedicou.

PS – Eu acordava cinema, dormia cinema, comia cinema, respirava cinema. Mas eu me dublava. As pessoas da área de dublagem, nos estúdios aonde eu ia, diziam “Ah, você dubla tão bem”. Quando o cinema acabou, quando o teatro ficou escasso... porque no Brasil, você sabe, teatro atualmente só se forem grandes musicais, grandes produções, ou então atores muito famosos que chamam público. Teatro pelo teatro não é como era. Quando eu fazia cinema e teatro, nós viajávamos. Lotava a casa, as pessoas nos reconheciam nem tanto pela televisão, mais pelo cinema. Então o que que acontece? Como eu tive sempre essa facilidade de dublagem, eu aproveitei. O que eu sei fazer é interpretar. Eu sou atriz. Óbvio que eu prefiro estar de frente pra câmera, em cima de um palco, criando um personagem, porque dublagem não é uma arte criativa, dublagem é uma reprodução. Você reproduz o que já está feito, você tem que fazer dentro do que já está feito. Bem feito dentro do que está feito. Daqueles tempos pra cá eu tenho dublado e dirigido dublagem. Já dirigi nos estúdios da Álamo, na BKS, atualmente no Gabia. Ontem mesmo eu fiz uma Diane Keaton, num filme maluco, eu dublando, botando a voz. Dublo muito essas mulheres todas. A Anjelica Huston, Kathleen Turner…

EE – E o público dos animes? Tem um lado meio show de rock, quando acontecem as reuniões com os dubladores.

PS – Anime, mangá, eles têm um público muito grande e são fãs dos dubladores. Existe até uma premiação, o Oscar da dublagem, com votação na Internet: o melhor filme, a melhor série etc. A gente é super querido. Vira e mexe damos palestras, em vários lugares no Brasil. Quando chegamos nos auditórios, não dá pra acreditar. Parece show de rock mesmo, é lotado de gente. Você dá um grito de guerra de qualquer personagem, os caras enlouquecem. Vem, inclusive, pessoal do Japão. Em um evento, em Porto Alegre, estava o Akira Kushida, que canta as músicas dos animes. A gente sai do palco querem arrancar, pegar a gente. Gente, nem quando eu fazia cinema era isso! Eu me sinto global! [risos] Ator que fala que não gosta de aparecer, é mentira. Se não, não seria ator. Dirigi recentemente toda a redublagem do Chaves para dvd. Ganhei prêmio como melhor direção, e não é nem pela direção, é porque eles gostam do Chaves. Então dá prêmio pra todo mundo que trabalhou em alguma coisa do Chaves. Naqueles eventos que eu estava contando, as pessoas vão e pagam pra falar com você, pra saber como é a dublagem. Tem um público muito, muito grande mesmo, que eu nem fazia idéia. Fiquei sabendo...

EE – ... Fazendo.

PS – Fazendo. “Perdidos no Espaço” está na dublagem original até hoje, e ninguém quer que mude. É assim com vários outros filmes, séries. Também fiz muita radionovela, dirigi 5 curtas, um deles sobre a EAD. Aprendi na prática.

EE – Os curtas foram nos anos 70?

PS – Final de 70, mais para começo de 80, junto com aquela lei da obrigatoriedade de um produto nacional quando exibido qualquer filme estrangeiro. Precisava fazer um monte, eu fiz 5. No curta sobre a EAD, a turma que ilustrou tinha a Lília Cabral no elenco. Na época ela era aluna. Não sei aonde foi parar isso, infelizmente. Fiz outro sobre a Escola de Circo, aqui de São Paulo. Outro sobre os casarões da avenida Paulista que estavam sendo demolidos, falando mais sobre a arquitetura. Um sobre balé clássico e um sobre viotismo, que é a confecção de violinos, artesanal. Obviamente, eu não era uma grande diretora, mas tive sempre a colaboração dos colegas, tipo o Cláudio Portioli, que já faleceu também. Grande Cláudio, me ajudou muito na fotografia. Eu enquadrava e ele me dava todas as dicas. Da mesma forma, toda a equipe que trabalhava comigo. Havia muito trabalho sobrando e, como eu gostava de fazer, quis testar. E também para me integrar, aprender, ver como é que é direção. Foi muito bom, não fiquei porque não é a minha, eu sou atriz mesmo. Mas adorei fazer.

EE – Patrícia, nessa retrospectiva da sua carreira, quais são as suas características que se eternizam, em termos de cinema brasileiro?

PS – Fica o prazer que eu tive, e tenho ainda, de trabalhar, de ter trabalhado com pessoas muito legais. Ter feito bons trabalhos, ter ganho até prêmios com a famosa pornochanchada, que o pessoal rotulava. Perguntam “Ah, mas você não tem alguma frustração?” Nenhuma. Fui fazer cinema, estrelei. Fui fazer teatro, fiz bons papéis. Fui fazer televisão, tive bons papéis. Estou dublando, estou no alto posto de dublagem. Então, dentro da minha carreira de atriz, não tenho do que reclamar, só tenho a agradecer a tudo e a todos. Não renego nenhum filme. Tem muito ator que fala: “Não, não fiz”. Fiz, tenho muito orgulho de ter participado dessa fase do cinema, frutífera. Adorei ter feito e faria tudo de novo, sem o menor problema. E continuo. Se amanhã ou depois pintar de novo um trabalho, alguém chamar, vou fazer, vou atuar. Não tenho grandes planos, a minha vida é essa. Continuo trabalhando dentro do que eu gosto, dentro da minha área ainda, de interpretação, e muito feliz. Não virei uma burocrata. Todos os trabalhos que eu fiz, sejam quais forem, se bons, se ruins, não importa. Todos dignamente feitos, e com muito respeito. Foi tudo de bom, foi muito gostoso. E se eu pudesse escolher, na minha vida, entre as linguagens, não há dúvida de que eu escolheria o cinema como a preferida.