sexta-feira, setembro 30, 2005

Ódio


Leitores apressados julgam um livro pela capa. No máximo vão ao prefácio, conferem a dedicatória, lêem as orelhas ou escolhem uma página ao acaso, citando parágrafos, para induzirem o interlocutor mais próximo ao erro. Leitores atentos, por sua vez, não apenas decifram os livros. São capazes de escrever livros sobre os livros que reconhecem como bons.

Um espectador apressado julga o galã das pornochanchadas dos anos 70, Carlo Mossy, como um ator de recursos limitados – um figurante de segunda linha no panorama do cinema brasileiro daquele tempo. Mossy realmente trabalhou em filmes muito ruins e em outros que são interessantes apenas para quem cultua a época em que foram feitos – “Essa gostosa brincadeira a dois”, que resenhei aqui há algum tempo, se encaixa nesse segundo grupo. Mas quem prestar atenção e virar as páginas da carreira deste múltiplo realizador cinematográfico – foi ator, diretor, produtor e até sonoplasta! – vai encontrar trechos quase perdidos e preciosos de história.

“Ódio”, filme de 1977, dirigido e atuado por Mossy, talvez seja o maior deles. “Ódio” não se trata de um filme policial violento. Ele, na realidade, subverte o que seja o modelo deste tipo de gênero, para criar uma espécie de “supra-violência” – tão inacreditável do ponto de vista ficcional, que chega a parecer em certos trechos um documentário em câmera aberta.

Roberto (Mossy) é um advogado, que ao visitar sua família no interior do estado do Rio chega na hora errada e acompanha a chacina dos parentes por funcionários da fazenda onde viviam. Por um descuido dos bandidos, é o único sobrevivente. Depois de longo período de convalescência, decide se vingar, e tal qual um Charles Bronson carioca sai em busca de cada um dos assassinos. O filme tem um fim óbvio, mas o importante não é a história contada, e sim a maneira brutal que o diretor escolheu para contá-la.

A chacina da família de Roberto é mostrada em detalhes, não detalhes de violência gráfica, parte integrante de qualquer thriller, mas uma tensão psicológica como poucas vezes se viu no cinema mundial. São quinze minutos initerruptos de gritaria, tortura e sadismo, lembrando em certos momentos o melhor cinema de Sam Peckinpah ou o clássico de Wes Craven, “Last house on the left”. A diferença é que o cinema de Mossy fala nossa língua – e isso incomoda e aterroriza muito mais.

As atuações são primorosas e, por muito menos, em Hollywood se presenteiam diretores e atores com o Oscar. Mossy não fez sua melhor performance como ator – devia estar possuído, dirigindo –, pois Atila Iório, Celso Faria, Ivan de Almeida e Jotta Barroso roubam a cena no papel dos bandidos. Cada um deles, depois do assalto e da chacina, encontra um rumo torto para seu destino. A demonstração da vida inútil e desgraçada desses homens, após o intento bestial, merecia uma reflexão sociológica séria; igualmente a amizade entre Roberto, Toninho e Diva – um jovem marginalizado que o acolhe e uma lutadora de boxe que se apaixona pelo advogado vingador.

Na trilha sonora, outro chocante achado. De um disco do compositor francês chamado Saint Preux, “Concerto pour une voix” de 1969, foram extraídas várias seqüências de ambientação, tendo o conhecidíssimo tema principal homônimo como guia. A construção psicológica dos personagens, por trás da miséria deprimente de suas vidas, também se mostra sutil, quase inesquecível.

“Ódio” é uma produção da “Vidya Produções Cinematográficas”, que Moisés Abraão Goldszal (o verdadeiro nome de Mossy) mantinha junto com Victor di Mello, também cineasta. A “Vidya” repartia nos filmes seu risco e custo com a Embrafilme – e com certeza, nos seus melhores momentos, representou algum do dinheiro mais bem empregado pela estatal na década de 70.

Quem discorde que me desculpe, mas não troco os quinze minutos iniciais de “Ódio”, ou a cafajestagem libertária de “Giselle”, por nenhum desses filmes que habitam as listas dos “dez mais” da intelligentsia brasileira. Com obras desse porte, Mossy perdeu qualquer respeito dos pseudointelectuais – e virou motivo de desprezo no meio em que lutava para sobreviver. Mas hoje, quase trinta anos depois, pode colher sua glória através dos que amam o cinema como arte, não como mero instrumento ideológico de uma nomenklatura.

quinta-feira, setembro 29, 2005

Palácio dos Anjos


“Palácio dos anjos”, de Walter Hugo Khouri, é um encantamento. Procuro cada detalhe, como os expedicionários franceses, que varriam a superfície do deserto e encontravam a glória. O diferencial, porém, está em que nada existe de desértico ou inanimado na obra. Ela é arte, preciosa, de magnitude que devemos sempre rever e escavucar um pouco mais, encontrando detalhes a cada nova leitura, a cada novo quilômetro sob a superfície, no intuito de ter decifrada a esfinge.

“O filme que estremeceu o Festival de Cannes de 1970”, diziam as capas dos vhs da Globo Filmes, lançados nos anos 80. Quando o assisti pela primeira vez, numa mostra da Cinemateca do MAM-RJ -- e o ambiente lotado de almas do passado, na sala mítica e atemporal --, pensei comigo mesma: “preciso rever.” Revi muitas vezes.

Geneviève Grad é a moça de 22 anos de idade, secretária de um banco, assediada pelas constantes investidas de Ricardo (Luc Merenda). Divide um apartamento com uma amiga, Maria (Rossana Ghessa). Grad é autoritária, dominante, de traços físicos absurdamente perfeitos, das coisas mais bonitas a atingirem as telas de cinema.

Quando falei acima de um “encantamento”, muito dele se deve ao fato de a personagem de Grad mesclar esse ideal de beleza helênica a uma postura forte, prepotente, segura. A inteligência e erudição. Esta é Bárbara. Administradora de um negócio de luxo, concebido entre as paredes do apartamento residencial, também dividido com a terceira integrante da turba, Ana Lúcia (Adriana Prieto).

Vamos colocar desta forma os arquétipos das três meninas de “Palácio”: Grad, fria -- viril --; Ghessa tola -- renitente --; Prieto dinâmica -- empreendedora. São prostitutas, recebem visitas preferenciais, subvertem o conselho de uma agenciadora (Joana Fomm) que pretendia fazer delas meros “objetos em exposição” na casa que dirige.

Grad pensa, acertadamente, que poderia ser rufiã e meretriz, usando o fichário de informações confidenciais juntadas pelo banco em que trabalhava com as amigas. Estas roubam-no e assim conseguem o crème de la crème nacional. Os homens podres de ricos, cuidadosamente vigiados nos arquivos, com todos os dados possíveis -- financeiros e de atividades em geral. As três, então, armam a meta de em um ano estarem ricas para largarem tudo, viajarem de navio, viverem de renda.

No meio tempo é visível que existe um clima de côrte -- explícita em algumas cenas, implícita em outras -- entre Grad, Prieto e Ghesa. Mas côrte talvez não seja palavra. Há, na verdade, fuga, caça e domínio. Fuga, na personagem de Ghessa -- mocinha que em primeiro momento chegou a defender a tese de ter saído virgem da cidade de origem, para receber, em seguida, a gargalhada triunfal, das outras. Há caça por parte de Prieto -- ela é o animal domesticado por Grad, que lhe estabelece completo domínio. Domínio literal, convém dizer, em pelo menos uma cena, em que agarra os braços de Prieto, deita-a, beija-a, e recebe o sorriso pleno da outra.

Entretanto, esse domínio de Grad não se restringe às meninas, sendo exercido, igualmente, sobre os maridos infiéis que entopem o apartamento. Mais: chega a envolver-se com a esposa de um deles (Norma Bengell), que sente por ela um amor cego, doentio, pensando que assim pudesse reviver um relacionamento do passado. Não contava ela com a crueldade de Bárbara, que impede qualquer via de mão dupla. Bárbara é livre, como as moças que iluminam os quadros de Gustav Klimt -- um deles, “O Beijo”, mostrado diversas vezes pelas lentes de Khouri. Bengell é abandonada, entendendo o quanto aquele território é infrutífero, o corpo de uma personagem absolutamente gananciosa, que não conhece fronteiras.

Voltando ao aspecto icônico em “Palácio dos Anjos” -- citado na obra de Klimt --, lembro-me ainda da sensação de arrebatamento que senti desde as primeiras imagens na tela. É bem sabido que Khouri preocupava-se com a direção de arte, cercando-se de objetos meticulosamente dipostos em cena. Gravuras, esculturas, quadros -- Magritte era recorrente. No início de “Palácio dos Anjos”, vemos uma sucessão de rostos femininos, pintados por Sonia Grassman, tendo ao fundo a música de Rogério Duprat, no mais bem acabado casamento de todas as aberturas dos filmes de Khouri, creio eu. Começa ali uma sessão de transe, que encerra-se 96 minutos depois, com a impressão de ter-se visto algo único.

“Palácio dos Anjos” tem uma detalhe curioso. O produtor é “William Khouri”, o cameraman “Rupert Khouri”. A princípio, parece um feudo cinematográfico, uma obra gerada em família. Mas se William era irmão de Khouri, quem seria Rupert? A resposta é saborosa.

Assim como o “Alfred Stin” de Carlos Reinchenbach -- nome criado pelo diretor para esconder os trabalhos de fotografia que realizava em determinados filmes e considerava ruins --; “Rupert Khouri” também é uma criação, nunca existiu. Era o próprio Walter Hugo Khouri, na tentativa de iludir o espectador, levando-o a crer que o diretor e roteirista dividia os louros com mais alguém.

Como vêem, este realizador brasileiro, um prestidigitador das imagens em movimento, construiu uma obra com muitos sulcos, muitos ruas, muitas obsessões e desejos. Triste constatar que pessoas deste tipo um dia fecham os olhos e adormecem para sempre. A ele dizemos, “boa noite, doce príncipe”. E o resto é silêncio.

quarta-feira, setembro 28, 2005

Finis Hominis


O cinema produzido em São Paulo nos anos 60 e 70 representou uma espécie de universo paralelo no cenário brasileiro – dominado por poucos e mesmos, intoxicado pela Embrafilme e pelo estatismo ufanista.

Neste universo paralelo, que jogava por outras regras, é preciso ter em mente a visão anarquista e iconoclasta (por extensão identificada com a marginalidade), de alguns dos seus principais diretores e roteiristas. Isto se aplica tanto ao cinema de intelectuais como Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla, quanto à produção naïf da Boca, calcada no empirismo da bilheteria e do gosto medíocre popular.

Falar deste apego à transgressão, a uma revolução não ideológica mas de costumes, é fundamental para que se explique o cinema de José Mojica Marins. Criador do personagem Zé do Caixão, por vezes se confunde com a criatura, e seu talento e sua obra parecem apenas um estereótipo de lenda.

Mas Mojica não foi só Zé do Caixão, foi também uma galeria de outras figuras absurdas: Oaxiac Odéz, um excêntrico professor que mantinha em casa um circo dos horrores para justificar seu niilismo; e em dois filmes, “Finis Hominis” de 1971 e “Quando os Deuses Adormecem” do mesmo ano, viveu o personagem Finis Hominis, criado pelo roteirista Rubens Lucchetti para uma novela da Tv Bandeirantes, “O Homem que Apareceu”.

De fato, o homem aparece, surge vivo e caminhando de dentro do mar em Santos (só isso já faria um milagre sua aparição), e entra pela cidade adentro, no princípio de “Finis Hominis”. De início nu, em sua jornada pela cidade ganha uma estranha roupa na casa de uma mulher rica que se apaixona por ele. A indumentária foi sugestão de um amigo de Mojica, um indiano que entraria com dinheiro na produção, que de resto, foi financiada pelo próprio diretor.

“Finis Hominis” tem apenas um fio de história, que se conduz através de vinhetas onde a hipocrisia do mundo é mostrada pelos atos e “milagres” de Finis. Médicos que não cuidam de uma criança morrendo em um hospital, uma paralítica que anda, uma adúltera que é salva – e todos gratos à atuação do misterioso Messias. Em meio à população atônita, o rádio e a tv transmitem o percurso de Finis pela cidade e ajudam a amplificar sua fama, até o êxtase final.

De todas as vinhetas, duas se destacam: em uma comunidade hippie, Finis “prova” que o paz e amor são apenas ilusões, dissolvidas diante da cobiça material (arremessa moedinhas e os hippies brigam, em uma das cenas mais pueris do cinema brasileiro). Logo depois vemos a “musa” de Mojica, Andréa Bryan, vivendo uma inescrupulosa mulher, casada com um homem impotente, que se finge de morta para matar o marido de enfarto. Nesta parte, ressalta-se o imenso potencial perverso (para não dizer doentio) do cinema de Mojica, pois a personagem de Andréa é uma masoquista nata, descontando a frustração de odiar o marido em uma relação com um amante cafajeste, que a maltrata com tapas no rosto e com sexo, digamos assim, não-convencional, exigido chorosamente por ela.

“Finis Hominis” nem de longe é um dos melhores trabalhos do diretor – que merecerá mais tarde aqui uma extensa revisão –, mas é infinitamente superior ao tipo de cinema que Mojica praticaria a partir da segunda metade dos anos 70, sufocado em dívidas e na dependência da boa vontade alheia até para sobreviver. Ainda temos em "Finis" elementos da iconoclastia divertida de Zé do Caixão, da inteligência criadora do roteirista Lucchetti e a participação de amigos de Mojica – como Carlos Reichenbach no papel de um médico – que avalizavam o seu cinema, tênue fronteira entre a aberração e a arte.

segunda-feira, setembro 26, 2005

Baixo Gávea


Baixo Gávea é um pequeno território da zona sul do Rio. Dizem, por convenção, que começa na Praça Santos Dumont e termina na Rua José Roberto Macedo Soares. Mas há os que crêem ser o Baixo um estado de espírito, um continente aberto, algo indecifrável, sem princípio nem fim.

Ali perto, a algumas quadras, descendo a rua Marquês de São Vicente, encontram-se os pilotis da PUC, o campus que é parte da geografia amorosa da cidade, refúgio de algumas das melhores cabeças brasileiras que lá estudaram e ponto de encontro para várias gerações de cineastas. Na PUC formaram-se, por exemplo, Cacá Diegues, David Neves, Arnaldo Jabor e, quem nos interessa no momento, Haroldo Marinho Barbosa – na turma de 1967 de engenharia mecânica!...

Haroldo escreveu, dirigiu e produziu “Baixo Gávea” (1986), longa que reflete uma parcela dos freqüentadores do Baixo: artistas, consumidores de etil, boêmios que voltam pra casa a pé, citando Kant no meio do caminho. No filme não há Kant, há Fernando Pessoa, personagem da peça de teatro encenada pela diretora Clara (Lucélia Santos), que tem no elenco Ana (Louise Cardoso), atriz lésbica com quem divide uma casa nas redondezas. Ana vive Mário Sá Carneiro, poeta português, amigo de Pessoa, interpretado por Rui (Carlos Gregório). Wilson Grey, grande ídolo do cinema nacional, mártir da causa, aparece como “Seu Wilson”, faxineiro do teatro.

A trama se divide entre o acompanhamento diário da peça, o dia-a-dia dos bastidores, e o mundo de Clara e Ana fora do trabalho. A primeira, procurando o Príncipe Encantado – sob a fachada de mulher independente, que acorda com um estranho num quarto de motel --; a segunda, morrendo de vontade de agarrar a amiga, mas contentando-se com a fama de má, perseguidora de “gatinhas” – calma, o filme é de 1986 – inocentes.

José Wilker aparece como o personagem esquisitão, que manda bombas pelo correio – vício da geração que sobreviveu ao atentado do Riocentro, três anos antes? – e consegue inclusive estuprar Clara, numa cena em tomada bastante esquisita, que possivelmente refletiu o mal-estar dos atores. Como pode haver relação sexual entre dois seres humanos, se um mantém mais de dois palmos de distância do outro? Estavam abraçados, vá lá, mas não convence. Menos ainda o papo entre ambos depois da curra, como se pouca coisa tivesse acontecido. Não se trata de subversão da linguagem cinematográfica, uma zombaria godardiana, mas certa falha no filme que, de resto, é delicioso.

Já em "Engraçadinha" (1981) Marinho tratava com sensibilidade o universo feminino, que ganhava na protagonista, Lucélia Santos, uma encarnação interessante de um dos mais famosos tipos rodrigueanos: a mulher suburbana. Darlene Glória, Geni em “Toda nudez será castigada”, era cruel, manipuladora, vingativa; Lucélia Santos, como Engraçadinha, era diabólica, prepotente, dissimulada.

Louise Cardoso ainda se consagraria em “Leila Diniz” (1987), dirigida por Luiz Carlos Lacerda. Professora do Grupo de Teatro Tablado, de Maria Clara Machado, é dessas atrizes que apaixonam e habitam um pedaço da nossa memória.

Em “Baixo Gávea” as personas de Lucélia e Louise, como atrizes, ganham as telas com grande autoridade. Olho para elas e me lembro do onipresente “Ciranda, cirandinha”, que volta em círculos quando se contempla a geração de fins dos anos 70. “Baixo Gávea” é o veículo perfeito para a vida na metrópole sonhadora, quando os herdeiros das Diretas-Já, chegando aos trinta, batalhavam arte e liberdade sexual, anos antes do neo-conservadorismo estúpido deste início de século.

domingo, setembro 25, 2005

Mulher Objeto


Sílvio de Abreu é mais conhecido como autor de novelas da Tv Globo, ambientadas em São Paulo, com doses cavalares de humor inofensivo. Escreveu “Guerra dos Sexos”, estrondoso sucesso de 1983, em que Paulo Autran e Fernanda Montenegro trocavam tapas e beijos em meio à revoada de pães, doces, mingaus e utensílios comestíveis em geral. Dois anos antes, porém, Sílvio caminhava pelas calçadas da Rua do Triunfo e dirigiu “Mulher objeto”, produção de Aníbal Massaini Neto, estrelada por Helena Ramos – musa da Boca do Lixo e dos mais variados esportes eqüestres --, Nuno Leal Maia, Kate Lyra, Hélio Souto.

O título não se aplica muito bem ao roteiro de Jayme Camargo, que segue razoavelmente inteligente até o final, quando então o moralismo debilóide e machista conspira contra as andanças da heroína e une-a ao marido depois do bom e velho sexo selvagem. Regina (Helena Ramos) é uma histérica daquelas de dar inveja às analisandas de Charcot e Freud. Toda vez em que aproxima-se do que os franceses, lugubremente, apelidaram de “pequena morte”, Regina surta, vê pombos voando, grita, não atinge o prazer. Detalhe mais importante: há meses não transa com o marido, e acumula fantasias eróticas, não concretizadas, com todos os homens da face da terra menos ele. Nuno Leal Maia, coitado, especializando-se no papel de esposo insatisfeito (repete a dose de “A Dama do Lotação”, 1978) argumenta em vão. Pelo menos decide pagar a Regina as consultas a uma psicanalista (Karin Rodrigues).

“Mulher objeto” marca a fase do “pornô não-explícito” – contradição em termos – da Boca, expondo aqui e ali certas passagens curiosas. A protagonista expõe-se ao marido, conta absolutamente tudo, e ao invés de ser estapeada, vai ao analista. Nisto, o roteiro de Jayme Camargo, creio eu, desenvolve interessantemente o argumento de Alberto Salvá. Ressalve-se, no entanto, que o clássico “Mulher, Mulher” (1977), de Jean Garrett, também tratava de uma mulher frígida (a mesma Helena Ramos), esposa de um analista, que, enviuvando, procura chegar ao prazer das maneiras mais inesperadas.

Nus frontais masculinos, detalhe curioso, são vistos algumas vezes em “Mulher objeto”, confrontando o bom e velho tabu brasileiro. Aparecem desde o garoto de cerca de 13 anos – a primeira quase-transa consensual de Regina ainda criança, no orfanato religioso – ao rapagão que conheceu numa boate e larga na cama do motel, momentos depois de perceber que sentia-se segura o suficente para começar novos relacionamentos.

Hitchcock faz ponta em “Mulher objeto”. Melhor dizendo, a música de Bernard Herrmann, emblema de “Psicose”, quando Regina começa a decifrar os traumas de infância que a paralizaram sexualmente. Como não consta dos créditos do filme, é uma homenagem dos autores, muito bem-vinda. Homenagens não faltam, pois a história de Regina lembra um pouco a de Helena Ramos, também ela interna de um colégio de freiras, dos oito aos dez anos de idade.

Assistir ao filme transmite uma sensação de déjà vu. Certas vezes “Mulher objeto” parece um episódio da antiga série “Casal Vinte”, pela decoração setentista carregadíssima, cheia de samambaias, óculos escuros imensos, unhas vermelhas, o “chic do chic”. O cuidado proposital na direção de arte visava justamente a fazer com que o filme se tornasse mais palatável, uma espécie de Emanuelle dos trópicos.

Como boa Emanuelle, Regina tem o momento da escapada lésbica. Contracenando com Maria Lúcia Dahl (Maruska), as atuações são primorosas, em especial o monólogo de Maruska, no frêmito de convencer Regina, com um papo ardilosíssimo. Transcrevi apenas o começo:

– Eu adoro as mulheres, as mulheres sabem das coisas... Eu sempre me dei muito bem com elas... Esse mesmo número com homens e mulheres não seria tão suave, tão plástico, tão excitante, você não acha?

Já de volta para casa, no carro e de piteira na mão, Dahl lança a frase antológica

– Eu gosto muito de uma relação entre mulheres, sabe?

Poucas vezes ouvi tanto a palavra “mulher” e sua variante no plural quanto nos minutos que envolvem a cantada de Dahl, o desenlace entre as duas – imaginado por Regina – e a despedida no carro. “Mulher objeto” tem dessas coisas. Entra para a galeria de filmes brasileiros que ousavam nas telas, levavam hordas de espectadores ao cinema e povoavam os sonhos de senhores e senhoras, respeitáveis ou não. Helena Ramos com olhares transtornados, típica travada sexual, faz da personagem um show à parte. Mal sabia ela, consagrava-se eternamente como a Norma Desmond do Bar Soberano e adjacências.

sexta-feira, setembro 23, 2005

Eros, o Deus do Amor


107 minutos, produção de 1981, escrita e dirigida por Walter Hugo Khouri. Acompanhamento incidental da Traditional Jazz Band, música de Rogério Duprat. No elenco, Lillian Lemmertz, Denise Dummont, Norma Bengell, Dina Sfat, Renée de Vielmond, Kate Lyra, Nicole Puzzi, Selma Egrei, Monique Lafond, Kate Hansen, Lara Deheinzelein, Maria Cláudia, Christiane Torloni, a voz e o vulto de Roberto Maya.

“Eros” foi o 19o. trabalho de Khouri, na carreira iniciada em 1952, com “O gigante de pedra”. Mas devemos esquecer o aspecto cronológico e analisarmos o filme à luz de “O Corpo Ardente”, lançado quinze anos antes, em 1966, para compreendermos alguma coisa a respeito da intimidade do personagem “Marcelo”, alter-ego do diretor.

Se em “O Último Êxtase” Marcelo é um adolescente em fuga – personificado por Wilfred Khouri, filho do diretor – em “O Corpo ardente” Marcelo é o menino levado pela mãe a conhecer as montanhas e o trono de pedra, às bordas de um precipício, cena que mais tarde se transformará num dos pontos centrais de “Eros”. Este encontro materno, edípico, fundamental -- ao qual o diretor voltará reiteradamente e intercalará com imagens de um animal enjaulado, furioso --, represa a gama de sentimentos do Marcelo quarentão, observado em “Eros” em plena crise de meia-idade.

De Barbara Laage, em 1966, a Dina Sfat, em 1981, a mãe de Marcelo passa da depressiva de “O corpo ardente” à invisível no “Último Êxtase” para, finalmente, já falecida, ter a foto rasgada por uma dupla de prostitutas sádicas. Convidadas ao programa, foram ao último andar do prédio construído pelo pai, cúmplice na “caça e domínio” de meninas por todo território paulistano.

“São Paulo, Brasil, América do Sul, hemisfério meridional, Terra, sistema solar, universo... um deles. Eu nasci aqui. Vivo aqui a maior parte do meu tempo, cada vez mais.” O texto inicial de “Eros”, narrado em voice-over por Roberto Maia (Marcelo) é das coisas mais belas em cinema nacional, a sinfonia plena da metrópole, reveladora da profissão de fé do personagem. “Em quase todos os lugares alguma coisa aconteceu. Por isso, mas não só por isso, alguma coisa me agarra aqui, me prende, me segura e me fascina. [...] No meu plano individual, me sinto como ela: o mesmo turbilhão, a avalanche, a ânsia e a fúria, a falta de medida, a vontade de não sei o quê. O meu interesse se concentra em mim e nas minhas obsessões, que eram muitas e que agora reduziram-se a praticamente uma só. Restou apenas uma coisa encrustada aqui dentro, que às vezes parece o começo e outras o fim.”

Mas Marcelo quarentão nunca é visto, é presumido. Não tem o rosto do filho de Khouri, não tem qualquer outro referencial imagético. Como dissemos acima, conhecemos apenas a voz e o vulto de Roberto Maya. Em termos de narrativa cinematográfica, o filme cria paixões e antipatias, pois muitos posicionam-se contra o recurso da, assim chamada, câmera subjetiva.

Vemos o que Marcelo vê, ouvimos o que ele ouve, pensamos o que ele pensa e o que não dá a entender aos outros membros da trama. Entramos no que possa haver de mais tortuoso e nostálgico no personagem – as caminhadas com a mãe, os olhares pelo corpo da filha, as cenas de sexo precoce, o sexo atual, o desejo que explode como o urso, visto de relance, e morre depois de satisfeito. Em um dado momento, lembra-se de uma aula com a professora de filosofia no colégio. Discute-se Eros, o deus do amor, citado por Platão em “O banquete”: “É pobre e está longe de ser delicado e belo, como muita gente supõe. E vive como sua mãe, em eterna penúria. Por outro lado, herdeiro das qualidades paternas, anda sempre no encalço do belo e do bom. Não é mortal, nem imortal. No mesmo dia floresce e vive, enquanto na abundância; mas quando satisfeito, morre.”

Assim, os impulsos priápicos de Marcelo levam a uma sucessão de personagens femininas contrapostas a um único masculino – desprezando-se o mordomo, peça coadjuvante no enredo –: ele próprio. Duplo, dúbio, como a natureza do Eros, que vive diariamente num esquema de moralidade cindida. A personagem de Denise Dummont (Ana) lê trechos de um livro sublinhado, na garçonniere, que ressaltam a dualidade: “Olha aqui isso. Isso serve pra nós, hein, Marcelo? Há uma interessante mistura entre moral absoluta e relativa dentro do indivíduo. Na Gestalt nós usamos o termo ‘duplo padrão’, o que significa que temos duas formas de medida moral: uma para nós e uma para os outros.”

Note-se que “Ana” foi outra das obsessões de Khouri. Em “As deusas”, por exemplo, era a psiquiatra (Kate Hansen), que se mistura com a dor da paciente e termina em fuga. Em “Eros”, Ana representa a tentativa de conversão de Marcelo para um lado mais humano de relacionamento amoroso. Assemelha-se com uma força interna, que tenta-o a desprezar os dias de conquistador, a esquecer o apartamento, a construírem algo juntos, mas que vê tudo evaporar-se com a chegada da segunda Ana (Cristiane Torloni), atriz de cinema, jovem. A segunda Ana leva-o, então, a outro filme. Ao filme dentro do filme dentro de outro filme.

O diretor, Serafim Gonzalez – o dentista de “Convite ao prazer” --, em cena, o menino de colo (Marcelo) que vira a revolucionária de 1935 escondendo-se numa gruta e observava seus traços com prazer ainda incompreensível.

Temos aqui um primeiro filme (sobre o evento histórico de 1935), um segundo filme (“Eros, o deus do amor”, em que Marcelo está no set de filmagens do primeiro) e um terceiro filme (que começa ali, ao término de “Eros”, quando Marcelo, no meio das filmagens, volta em flashes sucessivos a todos os encontros amorosos, ao trono de pedra, à sensação de observar ao animal enclausurado, à paixão, abraçado à mãe). Este terceiro filme seria retomado em “Eu”, de 1986, em que o personagem aprofunda os laços com a filha e ainda aproveita da grande entourage feminina que permanece. Mas os filmes de Khouri são universos, muitas vezes, interligados. E serão analisados futuramente, leitores, com bastante calma.

quarta-feira, setembro 21, 2005

Muito Prazer


“Muito Prazer”, de 1979, é o melhor filme de um gênio chamado David Neves. Advogado que nunca exerceu a profissão, apaixonou-se pela arte cinematográfica e foi diretor, produtor, assistente e roteirista. O amor de David Neves pelo cinema era tão grande que, conta a lenda, mesmo depois de se tornar diretor consagrado, continuava a aceitar cargos de assistência em filmes de amigos e colaboradores, apenas para fazer aquilo que gostava.

Foi também o mais carioca dos diretores nacionais, dedicando a maior parte da sua filmografia a traçar um painel, rico e generoso, dos hábitos e da gente da Zona Sul da cidade.

“Muito Prazer”, primeira parte de uma trilogia de filmes que inclui ainda “Fulaninha” e “Jardim de Alah”, mostra ao mundo uma espécie de paraíso antes da chegada da serpente. A cidade cordial, relaxada, irreverente, abriga o escritório de arquitetura de três sócios.

Ivan (Otávio Augusto), Aquino (Cecil Thirré) e Chico (Antônio Pedro) são homens de temperamentos diferentes, constantemente observados e postos em cheque por um trio de pivetes de rua, vendedores de amendoim.

A relação destes extremos sociais em princípio não é tensa, não amedronta -- pelo contrário, é amistosa e calorosa. Os arquitetos protegem os meninos e perdoam sua existência errática no bairro de classe média alta. Os meninos, por sua vez, olham os arquitetos apenas como as crianças olham os adultos: num misto de curiosidade, deboche e admiração.

Em outro plano da história temos a relação dos arquitetos com suas respectivas esposas. Ivan (Otávio Augusto) é alcoólatra; Aquino (Thiré) reprimido e metódico; Chico escorregadio e solteirão, o que desperta suspeitas sobre sua sexualidade. As esposas de Ivan e Aquino literalmente vagam em torno do trio, até que Nádia (Ítala Nandi), esposa de Ivan, dá o bote em Aquino e passa a ter um caso com o sócio do marido.

Nenhum outro cineasta brasileiro parece captar melhor o espírito de um microcosmo social, com seus valores e coloquialismos. Estamos de fato no Rio no final da década de 70, do princípio ao fim da trama. Todas as gírias se fazem presentes; todos os hábitos, conversas e símbolos. Neves, um homem sedutor e cheio de amigos, nos faz cúmplices de sua aventura, qualquer que seja ela.

“Muito Prazer” rende cenas poéticas e hilárias: Ivan, bêbado, vaga pelos botequins e encontra Nelson Cavaquinho. O pivete tenta vender amendoins para um executivo de Mercedes (Carlos Kroeber) e o executivo, assim que o farol abre, rouba os amendoins do pivete.

A vida dos três sócios vai degradando à medida que o alcoolismo de Ivan se agrava e que a mulher o trai. Por outro lado, os pivetes abandonam sua postura pacífica, de vendedores ambulantes, e assaltam Nádia. A confiança da relação cordial é quebrada. Arquitetos, esposas e pivetes não se entendem mais e apesar da promessa de civilidade, está esgotada a capacidade de diálogo, em qualquer combinação.

“Muito Prazer” foi perfeito em metaforizar o ocaso do Rio e o término das convivências pacíficas no espaço urbano. Ivan sabe que sua mulher o trai com Aquino; a amizade e a sociedade nunca mais serão as mesmas. Os homens agora sabem que não podem confiar nos meninos; eles assaltam e trabalham para um bandido mais velho.

Está encerrada a era da inocência para todos. A cidade-paraíso onde harmonizavam, em pouco tempo virou um grande inferno paranóico. “Muito Prazer” não é só uma obra-prima, é também o documento final de um estilo de vida.

segunda-feira, setembro 19, 2005

Jogo Duro


Quando dirigiu “Jogo Duro”, seu primeiro longa-metragem de ficção, Ugo Giorgetti já estava com 41 anos de idade e guardava uma carreira bem-sucedida como diretor de filmes publicitários.

Giorgetti é um homem fascinado por seu meio (a cidade de São Paulo), seus personagens e sua vida cotidiana. Como todo bom paulistano, tem pela cidade uma relação de amor e ódio; crítica e ácida, mas também singelamente apaixonada.

Em “Jogo Duro”, de 1985, Giorgetti ilumina passagens da vida paulistana: a desigualdade social, o ridículo de uma cidade de terceiro mundo prometer mansões à inglesa, ruas nobres e exclusivas – e como esse mecanismo de glamour superficial acaba traído pelas circunstâncias da vida real.

Mas o certo é deixar o cenário acima apenas como pano de fundo. Na verdade, o ponto de partida em “Jogo Duro” é o “galã”, o tresloucado Jesse James Costa. Ex-cameraman da Tv Bandeirantes, protagonista de comerciais do relógio Technos e cria da Boca do Lixo – ponto de boemia e vagabundagem, que virou quase sinônimo de cinema paulista em meados dos anos 70, pois ali se encontravam atores, diretores e produtores.

Em “Jogo Duro” Jesse trabalha como vigia de um casarão de mais de 600 metros quadrados, no bairro do Pacaembu. É contratado pelo vendedor de imóveis (Antônio Fagundes), cuja caracterização, como de todo bom picareta, lembra o Amigo da Onça, personagem do cartunista Péricles.

O bairro do Pacaembu, por sua vez, foi escolhido propositadamente pelo diretor. Criado pela Cia. City na década de 20 do século passado, o Pacaembu era a epítome do bom gosto. O problema é que a mansão está encalhada, a violência nos arredores aumentou e – pra piorar – Jesse percebe que está dividindo o mesmo teto com uma mãe (Cininha de Paula) e filha, que invadiram a residência após o convite feito pelo vigia da rua (Cacá Carvalho), que trabalha postado na casa em frente.

Jesse dá em cima de Cininha, que tinha um caso com o vigia, e o triângulo amoroso se instala. É a observação do jogo entre pessoas desesperadas, semi-marginais, que dá razão ao filme. Cininha e a filha não tem para onde ir, Jesse está encostado ali na mesma situação e Cacá pode parecer “autoridade” na rua, mas também caminha na corda bamba.

Jesse é um ator sem qualquer vestígio de técnica, mas com desinibição absoluta, o que garante um show à parte. Sua performance como falso malandro, que vai se dar mal no fim das contas, parece uma paródia da vida real, já que de fato o ator era personalidade saída de um meio parecido. Cininha de Paula e Cacá de Carvalho, apesar de terem origem diferente (Cininha é médica), não destoam do realismo cru que Giorgetti buscava para sua história.

Como característica importante que se repete nos filmes posteriores do diretor (“Festa”, “Sábado”, “Boleiros”), a simplicidade do argumento é conjugada com uma simplicidade de recursos, dando a impressão de que a produção do filme foi baratíssima. Uma rua, uma casa, cinco atores e um punhado de figurantes. As idiossincrasias de uma cidade ao fundo. E o enorme talento de quem tem o que dizer.

sábado, setembro 17, 2005

Minha Namorada


A Mapa Filmes é um capítulo do cinema brasileiro ao qual terei que retornar futuramente, em razão de sua importância. Basta dizer, no momento, que dela faziam parte Glauber Rocha, Paulo César Saraceni, Walter Lima Jr. e Zelito Viana. Este último, que assinou a produção de muitos dos clássicos cinemanovistas, dá o ar da graça como co-diretor e co-produtor de “Minha namorada”, em 1970, dividindo os créditos com Armando Costa – falecido criador do Teatro Opinião, ao lado de Ferreira Gullar e Vianinha.

Chama atenção no filme a abordagem existencialista para o trio formado por Marcelo (ele mesmo, o cantor que fez sucesso nos anos 80 com “Abre Coração”), Pedrinho Aguinaga (o galã cafa, o “homem mais bonito do Brasil”, ex-marido de Monique Evans) e Laura Maria (que fim levou Laura Maria?).

Fernanda Montenegro e Jorge Dória são os pais da menina, que anda sempre com aquele sorriso largadão no rosto, atacada por sucessivas crises de larica após o consumo de baseados com os amigos.

Digo que a abordagem chama atenção porque a inclinação natural de um espectador de filmes sobre adolescentes é a de esperar um triângulo amoroso comum, cercado de dramas comuns, embalados ocasionalmente por um zoom na paisagem (então) paradisíaca e por músicas que acentuassem os conflitos familiares. O tema da generation gap sempre rendeu muito, “Minha namorada” poderia ser mais um exemplo.

Mas o que se ouve é Gato Barbieri, em recriação da “Minha namorada”, de Carlinhos Lyra e Vinícius; “Marinheiro Só” de Caetano, no violão de Marcelo; e os diálogos que aprofundam a interação dos garotos entre si – principalmente Marcelo (Pedro) e Laura (Maria).

O imigrante de Nazaré das Farinhas, interior da Bahia, se vê refletido na cocota, noiva de longa data de Fernando (Aguinaga). Daí para frente, começam a ter a compreensão de que o lance é esse, é não deixar cair. “Cuquinha saudável, hein?”, Pedro diz a Maria, depois de tomá-la das mãos do playboy.

Apaixonados, Pedro e Maria caminham, transam, a mãe descobre a cartela de anticoncepcionais guardada na escrivaninha, enquanto o ex-noivo desbunda com Jorge Dória (Aldo), os dois caidões no sofá, de tanto whisky e charuto. A impressão que me passa é a de que o roteiro criou em Montenegro (Carminha) e Dória, as figuras de pai e mãe atípicos, cabeças feitas, como pretendia-se da classe média consciente e elitizada do Rio daquele tempo. Tudo se resolve com papos solidários, regados a carinho e vontade de ouvir.

Neste aspecto, talvez o filme perca em credibilidade para o público mais ranzinza, pois em 1970 a vida e as relações familiares no país estavam muito longe deste cenário, que lembra bem mais os consultórios psicanalíticos de Nova Iorque do que os porões suados da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde torturavam-se os presos políticos. Se a lei do divórcio só foi aprovada em 1977, imaginem o quanto devia ser anti-católico para um pai ou mãe ver a filha desgraçar-se no mundo, perder a virgindade e utilizar métodos contraceptivos.

Mas apelar para a inventividade do roteiro, cobrando que fosse à moda dos neo-realistas, rodado nos escombros da sociedade subdesenvolvida e alienada pelo regime militar, seria de uma burrice inimaginável. Cinema pode ser revolução, mas também pode ser só diversão.

“Minha namorada” faz parte de uma vertente artística respeitável por si só. Observa delicadamente os jovens da classe média que iam às aulas de francês, voltavam pra casa a pé, tomavam sorvete e desbundavam entre um happening e outro. Quando os autores optam por tratar os meninos de igual para igual, sem debilizá-los, respeitando a densidade do que sentem, acertam em cheio. E o final feliz, como há, sugere a promessa de um encontro ideal, unindo o cabeludão migrante e a mocinha carioca, figuras atemporais de uma juventude eternizada.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Verdes Anos


Entre 1983 e 84, vinte e um anos atrás portanto, o cinema gaúcho produziu uma trilogia de filmes que se inscreve para sempre na memória da cinematografia brasileira: “Aqueles Dois”, “Me beija “ e “Verdes Anos”.

Estes filmes, crias da Z Produtora, não são apenas manifestações culturais de um estado que, distante dos grandes centros nacionais, possui uma sofisticada vida própria. Representam também o que de melhor se fez no cinema do país naqueles dois anos importantíssimos, em que a ditadura militar desmoronava e todos aguardavam ansiosos o que aconteceria depois do fim.

Como todos os brasileiros sabem, aconteceu muita coisa, inclusive o despertar do sonho para a geração daqueles meninos, hoje quarentões, que foram adolescentes nos anos de chumbo. Os diretores Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil tinham respectivamente 24 e 26 anos. Para a minha geração, que se acostuma a chegar aos quase trinta ainda engatinhando nos seus projetos de vida, garotos de vinte e poucos anos dirigindo e lançando no mercado longa-metragens parecem gente de outro planeta. E eram, de fato.

Em “Verdes Anos” algumas atuações são sofríveis, abaixo da crítica, os adultos da trama são extremamente superficiais e o olhar depressivo dos jovens diretores torna o filme aborrecido para quem busca entretenimento. Mas a originalidade, a honestidade e principalmente a força de vontade de fazer cinema superam qualquer dado adverso.

“Verdes anos” dizem, custou menos de 100 mil dólares para ser realizado. Quantos filmes brasileiros são infinitamente inferiores e custam vinte, trinta vezes mais? Antes de chegarem ao formato 35 mm, a maioria daqueles jovens gaúchos se escolou no Super 8, tendo como marco um longa neste formato, que tem um tema parecido ao de “Verdes Anos”, o hoje clássico “Deu pra ti, anos 70”.

“Verdes anos” se reporta a uma década antes de sua realização: uma cidade pequena, do interior do Rio Grande do Sul, no ano de 1972 (“sesquicentenário da Independência do Brasilll”, diz um locutor, ao longe; “foi lá por 72/ que eu descobri/ a lei dos corpos”, segundo a música na abertura dos créditos).

Neste mundo nostálgico, obscuro e melancólico, a realidade brasileira demora a chegar mas chega: em tempos de governo militar, há o choque entre libertários de um lado (o pai do personagem principal, de Werner Schünemann, ex-exilado no Uruguai; a professora com amigos “espalhados por aí”) e retrógrados de outro (gente comum no bar, bebendo cerveja; policiais truculentos, dando tapa na cara dos sem limites). Mas “Verdes anos” não se esgota na temática política. Não é esta, de forma alguma, a razão de ser do filme.

O roteiro de Alvaro Luiz Teixeira baseia-se no conto "Os Verdes Anos", de Luiz Fernando Emediato, e acompanha um grupo de adolescentes, para quem o provincianismo cruza-se com a joie de vivre, o marasmo com o sonho, a breguice com a vontade de ser cosmopolita. O garoto metido a poeta, apaixonado pela professora quarentona – que surpresa –, quer sair, respirar outro mundo, ir à Porto Alegre. A cidadezinha encheu, não suporta mais.

A ambientação na cidadezinha, porém, traz um referencial interessante. Porque não é a cidadezinha do interior mineiro, paulista ou nordestino – habitada por religiosos, Mazzaropis ou retirantes. É a cidadezinha do interior riograndense, sobre a qual o cinema brasileiro sabe muito pouco e ainda não se acostumou a olhar. Os dramas dos meninos e meninas ganham na curiosidade que desperta a observação de algo novo, difícil de ser visto.

Werner Schünemann, Marcos Breda (ainda creditado como “Marco Antonio Breda”) e Luciene Adami são rostos que no futuro viriam a se tornar famosos nacionalmente. Breda tem um quê de cult, ajudado em grande parte pela perfomance em filmes como “Feliz Ano Velho”. Schünemann, conhecido no Sul do país, surgiu para o Sudeste já quarentão, em papéis na tv, como “A casa das sete mulheres”. Luciene Adami, por sua vez, habitou os delírios de legiões masculinas na época de Pantanal, novela da falecida Rede Manchete.

Falar dos erros de uma obra executada por tanta gente iniciante é fácil. Melhor destacar a trilha sonora deliciosa, com músicas da época (sucessos internacionais que me fazem indagar se eles compraram os direitos autorais de tantas canções ou as usaram assim, por um descuido), e uma parte final, no idílio amoroso de Nando (Schünemann) com a linda e jovem Cândida (Márcia do Canto), que nos leva às lágrimas.

Outra coisa notável do filme é a citada atmosfera depressiva, tristonha, que se repete em outro filme da trilogia da Z Produtora, o intrigante “Me beija”. Com rara sensibilidade, os diretores não repetem o velho erro de outros filmes “de nostalgia” que parecem creditar ao passado tudo de bom, bonito e iluminado que houve no mundo.

Fica claro que a vida daqueles jovens é mesquinha, uma droga. Mas era a vida que eles tinham, a vida que no futuro já adultos, trabalhando e vivendo em Porto Alegre, Rio ou São Paulo, lembrariam e contariam para seus filhos, com um quê amargo e doce de saudade.

terça-feira, setembro 13, 2005

À Flor da Pele


Denise Bandeira é hoje mais conhecida como um apêndice de biografados famosos, especialmente Renato Russo, personagem para quem se transformou “em amiga e fiel conselheira”, segundo diversas reportagens e livros. A injustiça não poderia ser maior, pois na verdade Denise é um dos ícones da juventude brasileira dos anos 70 – protagonizou o histórico seriado “Ciranda, Cirandinha” na Tv Globo, em 1977 – e roteirizou inúmeras séries de tv e filmes – dentre estes “Bar Esperança”, em parceria com Hugo Carvana.

Em “À Flor da Pele” Denise interpreta Verônica Prado, universitária de vinte e pouquinhos anos, problemática, “intensa”, “em busca de si mesma” (leia-se “chave de cadeia”), apaixonada pelo professor de teatro, Marcelo Fonseca (Juca de Oliveira), o cinquentão ideal. Charmoso, culto, possuidor de toda a segurança emocional que ela gostaria de ter, mas – o que para ela não representa impedimento nenhum – casado.

O filme de 1976 é baseado numa peça de teatro escrita por Consuelo de Castro, e serve de veículo à atriz, que aparece em praticamente todas as cenas. Denise arrematou o Kikito de melhor atriz no ano seguinte, concorrendo com a futura bombshell Sonia Braga, do badalado “Dona Flor”. “À Flor da Pele” ainda levaria o o troféu de melhor filme, deixando para um quase imberbe Bruno Barreto o de melhor direção.

O que se deve ressaltar no trabalho do diretor, Francisco Ramalho Jr., é a aproximação da trama segundo o olhar de Verônica. Ramalho faria algo parecido cinco anos depois, em “Filhos e Amantes” no qual acompanha um grupo de jovens que se isolam na Serra de Itatiaia. Em “Á Flor...”, porém, o interesse principal é compreender Verônica.

De início me neguei a adotar a tese de que a menina buscava no professor maduro a representação do pai acolhedor, que substituísse o pai real, com quem briga, luta, cospe e xinga. Pensei que seguir este raciocínio seria de uma obviedade intolerável. Mas qual não foi a surpresa ao ver o drama às claras, falado com todas as letras? “Papai, você é um caretão!”, grita a Marcelo em uma das brigas em que se enrola com ele, depois de levar um sonoro tapa.

Verônica precisa, precisa, precisa. Quer apoio, apoio, apoio. Tanto faz se o mundo em volta cai, se induzir a esposa de Marcelo (Beatriz Segall) ao suicídio contando-lhe sobre o caso, se bater pézinho tirando o poster da filha do professor da parede do quarto. Eu sou eu, por que você não me aceita sem perguntas, parece dizer.

A teatralidade é traço marcante em pessoas de comportamento borderline (limítrofe), como Verônica. Uma hora, corta-se com um caco de vidro. Chora alto para atrair a atenção do pai, rejeita-o em seguida. Em outras, bate a porta com um estrondo, garantindo ser a última vez em que fala com o professor. O perdão vinha sempre e com ele agarrava as mãos do pai postiço, como se dali dependesse a própria vida.

Nelson Rodrigues diria que Verônica, “lésbica de si mesma”, tem aquele encantamento vertiginoso pelo sexo. Ewerton de Castro sofre, é o amiguinho bonzinho, que ela usa para enciumar o lobo cinqüentão; Jonas Bloch, em pequena ponta, assiste felizardo ao momento em que a parte de cima do biquini é tirada, talvez como manifesto contra a instituição sacal de ser apresentada pelo pai a um futuro bom marido.

Mas o que poderia ter sido o momento de guinada para Verônica é desperdiçado pela sucessão de equívocos que começaram de um equívoco mesmo. O velho truque de não tomar o anticoncepcional de propósito. Engravida, esconde de todos, em noite muito louca embebeda-se e na volta para casa apanha do pai, que – e esta é a sina dos acompanhantes de alguém parecido – surta junto e agride-a. Aborta em conseqüência, colocando fim ao projeto de ser mais uma das muitas mães fálicas, que usam o filho para auto-realização pessoal.

O roteiro, como vêem, é rico. A abordagem psicanalítica soberba, talvez seja mais fruto de intuição do que de estudo, pois a personalidade borderline de Verônica é tão bem desenhada que parece tirada de trabalhos sobre o assunto, principalmente os de Otto Kernberg, no final daquela década de 70. Sua dependência mórbida, sua obssessão por engravidar (borderlines adquirem esta monomania como forma de compensarem o vazio existencial que sentem), a tendência à idealização absoluta de Marcelo seguida de uma ridicularização vexatória; tudo é tão bem encaixado na composição da personagem que a torna um arquétipo do cinema, a ser rediscutido em outros filmes.

Muito se diz que o diretor, Francisco Ramalho, teria colocado na obra sua própria história de vida, através da composição de Marcelo (alguma aproximação com os Marcelos de Khouri?). Mesmo sendo um alter ego, seu Marcelo é um homem sem qualquer maniqueísmo, cruel e canalha às vezes e em outras ocasiões completamente vítima dos pitis de Verônica. Em suma, é um ser humano tentando sobreviver e ser feliz à sua maneira.

Denise Bandeira e Juca de Oliveira por outro lado, se apegam a essa riqueza de detalhes e possibilidades e dão um show à parte. Contando ainda com o pano de fundo charmoso de São Paulo nos anos 70 (a cidade mais injustiçada do cinema mundial, já que nunca é mostrada) e a bela plástica de Bandeira, Ramalho fez um dos melhores e mais adultos filmes da cinematografia brasileira. Merece com certeza relançamento em dvd duplo.

domingo, setembro 11, 2005

O Ébrio



Parodiando Drummond, Vicente Celestino é “uma fotografia na parede, mas como dói”. Sempre que penso nele me deprimo com a expectativa do que deveria ter sido sua rentrée triunfal no showbusiness dos anos 60. Velho e representante de um mundo que àquela altura cada vez mais desaparecia, Celestino foi convidado a participar de um programa de tv com Gilberto Gil e Caetano Veloso. Morreu horas antes.

Cantar “Coração Materno” com aquele bando de garotos aloprados. Será que ele compreenderia a cena? Imagino-o assustado, mas continuando desenvolto, com aqueles gestuais anacrônicos. Para mim, surtiria o mesmo efeito assistir a uma peça com Procópio Ferreira dirigido por Gerald Thomas.

No longíquo ano de 1946, Vicente Celestino era em “O Ébrio” o doutor bacana (Gilberto Silva), boa praça, que sobe aos píncaros da glória depois de perder tudo na cidade natal. É ajudado por um padre, e emocionado, escreve-lhe uma canção que vira sucesso na rádio. “Porta aberta” lembra o hinos evangélicos de hoje em dia, mas a abordagem é católica. “Porta aberta... Tendo o emblema de uma cruz... Essa porta não se fecha... Contra ela não há queixa... São os braços de Jesus”. Closes na imagem do Cristo crucificado e no olhar de agradecimento de Gilberto, porque a vida recomeçava.

Um dos elementos mais autênticos em filmes como “O Ébrio” é a ausência total de estabilidade na trama. O que parecia felicidade para Gilberto se consome com as novas marmotas que lhe pregam os parentes (dentre eles o humorista Walter D´Ávila, o Baltazar da Rocha da “Escolinha do Professor Raimundo”, caracterizado de idoso).

Perde a mulher, perde os amigos, assume a identidade e as roupas de um mendigo que acabara de ser atropelado. Como diz a canção título, “tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer... aquela ingrata que eu amava e que me abandonou... apedrejado pelas ruas vivo a sofrer... não tenho lar e nem parentes... tudo terminou...”.

Mas antes que vocês cortem os pulsos, horrorizados, é preciso que eu faça alguns comentários. Primeiro: não se assustem. A estrutura de “O Ébrio” é radiofônica, do tipo produzido pela Rádio Nacional, que levava milhões de ouvintes ao choro compulsivo pouco antes do jantar, entre um comercial de “Rhum Creosotado” e outro. Até curar criança paralítica o dr. Silva cura.

Segundo: dirigido pela esposa de Celestino, a também atriz Gilda Abreu (que estreava como diretora e aparece rapidamente em close nos créditos, em curioso momento meta-linguístico), “O Ébrio” é adaptação da peça homônima escrita pelo cantor. Peça, música e filme foram de imenso sucesso. E a película, com mais de 12 milhões de espectadores, deu cacife político e financeiro a Gilda, que pôde embarcar em novo projeto bancado pela Cinédia, o dramalhão “Pinguinho de Gente”, fracasso de público que levaria a produtora à falência.

Terceiro: João Carlos Rodrigues, em “O negro no cinema brasileiro” já lembrava da participação de parcos atores negros no filme. Todos evidentemente debilizados, à moda do patriarcalismo getulista da época. A cena que mais me chama atenção, provavelmente uma das mais brutais em todo cinema brasileiro, devido à simplicidade de suposto lirismo, ocorre com a empregada de Gilberto Silva, ajoelhada aos pés do patrão, que acabara de saber do abandono familiar: “Patrãozinho, eles são brancos... mas têm a alma da cor da minha pele.”

O filme, portanto, possui curiosidades a mil, basta ao espectador capturar as pepitas. De toda forma, o fascínio que sinto pelos astros da Rádio Nacional facilita este trabalho arqueológico. Lembro-me de, ainda pequena, passar pela rua Barata Ribeiro em Copacabana e a multidão, parada na rua, olhava pra cima. Os mais novos urravam “pula!, pula!”, os mais velhos cochichavam, no misto de pena e prazer sádico: “tadinhas, tão famosas. Ficaram malucas. Tanto ouro, tantas jóias, carros caríssimos.” Eram Dircinha e Lindinha Batista, irmãs, cantoras festejadas no Cassino da Urca e importantíssimas, hoje falecidas. Trancadas no apartamento, davam início a mais uma tentativa de suicídio.

Vicente Celestino foi-se embora, em 1968, emocionado com a homenagem dos meninos tropicalistas. Era o término do ostracismo total, que tudo deturpa e transforma o talento em fantasma pitoresco, que vaga pelas ruas, desprovido de sentido.

terça-feira, setembro 06, 2005

O Caso Cláudia


Cláudia Lessin Rodrigues foi morta em 24 de julho de 1977, aos 21 anos de idade. O corpo encontrado na Avenida Niemeyer, Rio de Janeiro, em uma das pedras que circundam a pista e dão para o mar. O objetivo era fazer com que o cadáver sumisse na água, junto com o saco repleto de pedras, amarrado ao corpo da vítima.

O caso ganhou dimensão nacional. Cartazes, outdoors e anúncios pagos em jornais e revistas pela família, com a inscrição que ficou famosa durante anos: “Cláudia Lessin Rodrigues – Que todos os pais desta cidade jamais se esqueçam deste nome”.

Isto porque Cláudia foi seviciada e estrangulada antes de morrer.

Na transposição para as telas, quem esperava um policial, na linha de “Eu matei Lúcio Flávio”, regado a muitos palavrões, corrupção e alta malandragem, se decepciona. O roteiro de José Louzeiro, Valério Meinel, Miguel H. Borges (este também diretor) e Álvaro Pacheco é um pouco excessivo, apontando muito mais a vontade de dar uma lição de moral, “abrir os olhos da sociedade”, do que contar a história verídica com princípio, meio, fim e muita brasilidade entre um ponto e outro.

Existem duas tramas paralelas. A segunda tem a pretensão de explicar a primeira. A primeira narra a apuração do caso pelo detetive (Roberto Bonfim) e pela imprensa, na figura do repórter (Carlos Eduardo Dolabella). O interessante é observar que o filme ganhou muito em veracidade com a consultoria do jornalista da Veja, Meinel, vencedor do Prêmio Esso de 1977, na cobertura do caso.

Jonas Bloch encarna Pierre Dorf (pseudônimo para Michel Albert Frank, acusado na vida real) demonstrando a repulsa que ele mesmo, Bloch, sentia pelo almofadinha milionário, cujo pai compra a polícia e consegue escondê-lo no exterior.

Em uma das cenas, Dorf e o outro acusado (o cabeleireiro interpretado por Luiz Armando Queiroz) vão ao que se chamaria na época de uma legítima “boate discothéque” e caçam duas meninas, que caem de olho no “brilho” que o playboy carrega no bolso. A cara de pau de Bloch e o olhar meio frágil – possivelmente uma ligação homossexual mal esclarecida entre os dois – de Queiroz, mostram o círculo vicioso que havia por ali e acabava, sempre, em orgia total.

Na segunda trama, que acontece simultaneamente, a presença de Nuno Leal Maia fazendo papel de Nuno Leal Maia, tenente do tráfico de drogas internacional, é necessária para justificar Kátia D´Angelo (Flávia). Mocinha transviada que conhece o consumo de cocaína através de Maia, se prostitui, foge de casa e é assassinada por ele. Flávia, na realidade, é um duplo ficcional de Cláudia. Moça de boa família com um destino trágico, envolvida no mundo das drogas.

Como ocorre em muitos dos filmes roteirizados por Louzeiro (“Os amores da pantera”, “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, “Amor bandido”), há diálogos que beiram, propositadamente, o pitoresco e o genial. Dolabella pergunta a Bonfim – a essa altura retirado da investigação por ordem do chefão corrupto – pouco antes de emboscarem o peão de obra, testemunha-chave do caso:

― Escuta, cara, se você não tem nada com isso, por que que você está se arriscando tanto?
― Não sei. Tem uma porra aqui dentro de mim que me empurra.

O momento incompreensível, porém, surge logo depois dos créditos finais: “os personagens deste filme são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, é mera concidência”.

Ora, se a consultoria de Meinel é colocada na própria abertura, se a semelhança entre os personagens é grande, se o título é sensacionalista, se os eventos simulam os reais, por que a piadinha? A intenção de os autores tentarem o disse-me-disse é desnecessária. Cláudia Lessin ainda não havia se transformado em lenda. Era aquela menina que escandalizara o país e que todos queriam reencontrar na tela.

Mas o que salva a projeção é tentarmos encarar os excessos do filme com o mesmo cinismo que ele quer retratar. “O caso Cláudia” é um filme que não se assume, que se perde, mas que segundo contam, fez a alegria do público na estréia, em 1979.

Levou multidões, no misto de politicamente correto (termo que não existia) e tiradas ao gosto de Pena Branca, repórter conhecido por atuar no mundo-cão da criminalidade carioca. “O Caso Cláudia” é um híbrido, portanto. Assista com moderação.

domingo, setembro 04, 2005

Um Homem Sem Importância


Quem estava disposto a se engajar na luta contra a ditadura e a favor da justiça social no Brasil? Nos anos 60 e 70, muita gente. O engajado poderia ser o poeta existencialista, com gola rolê preta e óculos de aro grosso, ou o intelectual na varanda do Antonio´s, ou o estudante, ou o operário, ou os artistas que abraçavam a contra-revolução naqueles anos de chumbo.

Quando em 1971 Alberto Salvá lança o autobiográfico “Um homem sem importância”, em preto-e-branco, as músicas de Denoy de Oliveira mostram a filiação à causa. “Minha história vai começar/ tão igual a tantas outras histórias/ das gentes que precisam trabalhar pra pagar o prato de ontem”. Não preciso dizer mais nada. A atmosfera é essa.

Encabeçando o elenco, Vianinha, Oduvaldo Vianna Filho, homem dos talentos mais diversos, desde os conhecidos literários (dramaturgo, ensaísta, roteirista de tv, escreveu o argumento de “A Grande Família” na versão original) aos mais instintivos. Reza a lenda que uma atriz, conhecida sua, berrou do alto do apartamento em Copacabana: “Vianinha!!! Leva a cama pra rua e ensina esse povo a transar!!!” Era prolífico.

Mas em “Um homem...” Vianinha não transa, procura emprego. Residente em Madureira, filho de pai pobretão, brutalizado, aos 30 anos anda pelo Rio à cata de alguma oportunidade. Como não sabe nada da rotina de um escritório, nem datilografar, nem possui instrução alguma, é sempre enxotado das salas de entrevista. Tem um certo brilhantismo no olhar e a vontade de progredir, mas a realidade – fonte do cinema que Salvá quer mostrar no filme – é mais injusta.

Glauce Rocha cruza sua vida como uma secretária desquitada que se interessa pelo rapaz, frustado na enésima tentativa de serviço. Levando-o para sua casa apresenta a ele o jantar da família: todos à mesa, filha, pai, mãe e neto, pratos arrumados e as tigelas grandes. Para ele aquilo é puro aconchego maternal. Ao lavarem os pratos, se beijam. Os dois estão perdidos, já que são párias sociais.

Ele ainda tem tempo (o filme se passa em 24 horas, da noite de um dia à noite de outro), para fumar maconha com o trio de jovens responsáveis pela demissão do emprego em que trabalhava. A câmera treme, pois logo na primeira viagem, nas primeiras tragadas, Flávio (Vianinha) entra em estado de alucinação. Ri, se contorce e, claro, já na fase do choro, diz um “eu não tive juventude” aos meninos da Zona Sul que compartilham o baseado com ele.

Olhando em volta, também não encontra o Rio da época de garoto, e o saudosismo se instala. É sentimento típico que invade qualquer ser humano que, após ter vivido um pouco, percebe que seu cotidiano antigo sumiu, que a segurança acabou-se e que andando pelo centro da cidade, a consulta aos cadernos de classificados se impõe, ainda que não dê em nada. “Engraçado que só tem bonde agora em Santa Teresa. Quando eu era criança eu pegava bode andando bem à beça. Quando o cobrador ia pra trás, a gente pulava e ia pra frente, quando ele ia pra frente a gente pulava e ia pra trás”, diz ao amigo igualmente desempregado, que encostou-se numa mulher com câncer terminal e espera que ela deixe algum tutu pra poder melhorar de vida.

“Um homem...” é o caso clássico de cinema para sala escura, bem escura. Assim como Flávio, a vontade da maioria que o assiste é a de se largar no chão, com um baseado, e esperar para ver se tudo se acalma. No caso do personagem, explode. Briga com o pai, aponta a faca, e numa série de gritos deixa claro que nunca foram pai e filho. O velho sempre sentiu o desejo absurdo de satanizar e depreciar os filhos. E a diferença entre eles é um mundo insuperável, pra que tentar?

Um dia vai se seguir a este que termina, e quem sabe, três anos depois Flávio já tivesse embarcado nas ondas do Milagre Econômico, com uma tv, mulher e maletinha sobre a mesa, enquanto esperavam o filho nascer. Esta é uma visão otimista, a ela damos o benefício da dúvida.

Se ficarmos apenas na realidade lembraremos que Vianinha faleceu em 1974, aos 38 anos de idade, de câncer, antes da reabertura política e com o amargor na boca de quem conclui no leito de morte uma última peça de teatro. Ao cinema legou principalmente sua interpretação neste filme, belo, triste e impressionante.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Essa Gostosa Brincadeira a Dois


O título é enganoso. Parece um exemplar da falecida “Sala Especial”, o Supercine do canal de televisão TVS, atual SBT, e alegria dos menininhos púberes que nos anos 80 ainda não podiam consumir pornografia explícita.

A verdade, entretanto, é que “Essa gostosa brincadeira a dois” é um filme romântico, comedioso e – o que é melhor – romântico, comedioso e bicho grilo, já que datado de 1974. Se produzido hoje em dia, teríamos Meg Ryan e George Clooney nos papéis principais, ou Adriana Esteves e Dan Stulbach, mas em 1974, e “parcialmente financiado pela Embrafilme”, temos Dilma Lóes e... Carlo Mossy!

Defensores de práticas mais ortodoxas de filmagem, intelectuais e fulanos despidos da curiosidade antropológica de se assistir a esses filmes populares de época, não vão certamente achar a menor graça na película. O restante pode assistí-la sem erro: é mais divertida que “Guerra dos Mundos”.

Notem que em 1972 Mossy já havia criado, junto com Victor Di Mello (diretor do “Essa gostosa brincadeira...”) a Vidya Produções Cinematográficas, que, não por acaso, é a responsável pelo projeto. “As atrizes usam perucas Fizpan” – acreditem, e muito – e o galã desfila pela orla da Zona Sul do Rio com a mocinha em uma moto, de chinfra. No caminho, passam por um grupo de jovens comendo os cachorros quentes da Geneal. Lembrei-me na mesma hora de Nelson Rodrigues e de suas indefectíveis citações às cuias de queijo Palmira. Tal como o gumex e a educação, preciosidades antigas que se perderam.

Carlos (Mossy) e Beth Bombardeio (Lóes) largam uma vida pregressa, burguesinha e claustrofóbica, para se tornarem adeptos da boa vida. Ao fundo, a música deixa tudo às claras: “você às vezes não se pergunta / por que querem que você percorra / velhos caminhos que não levam a nada.”

São namorados? Beth e Carlos dividem um apartamento – cujo quarto de Beth parece um similar de brechó – e conhecem-se desde crianças. Aprontam, entram de penetra em festa, mordem frutas na feira, se bronqueiam com as brigas entre mãe e filha. “É, tua mãe não tá com nada mesmo”. Decidem esquecer o bode indo para a Bahia, e nisto o filme ganha uma qualidade de road movie dos trópicos. Porque vão, claro, na moto.

Pernoitam em um motel, fingindo para o porteiro assustado, estarem mortos de tesão um pelo outro – estão? Beth surge com a pergunta: “Você não tem vergonha de não fazer nada, não?”, “Claro que não. (...) Quero me casar com uma dona milionária” que, não há duvidas, o sustente. Se entreolham e Beth responde com um sorriso amarelo.

Continuam caminho, até Salvador. Hospedam-se em um hotel, também de penetras, fingindo serem turistas estrangeiros em férias. Na piscina, a aparição: Vera Fischer. “Essa é a mulher que eu estava esperando há muito tempo: linda, boa e deve ser cheia de grana”. Beth e Carlos ainda ficam juntos por um tempo, mas quando o rapaz transa com uma hippie nua na praia (possivelmente Arembepe) é chegado o fim. Atenção para o diálogo, que merece um parágrafo:

— Somos dois palhaços de uma humanidade que está cada vez menos humana. Vou me mandar daqui. (...)
— Ir pra Europa eu compreendo, mas trabalhar? Você ficou louca?
— Eu não me sinto bem aqui, sem fazer nada – e eis que ela, feminíssimamente, admitamos, travestiu o ciúme explícito em preocupação social. Não há o que fazer Mossy, ela vai pegar o ônibus Viação Itapemirim e ir embora.

Depois desta inevitável separação Carlos ainda fica com Fischer e a hippie peladona por um tempo, mas quando descobre pela televisão que Beth Bombardeio estreou como chacrete na “Discoteca do Chacrinha” (!), fica desconcertado. Pior: Beth aparece falando com o próprio Abelardo Barbosa, agradecendo pelo tempo em que trabalharam juntos e anunciando que se casará no dia seguinte com um produtor, amigo de Carlos. O mesmo que conhecera na festa dos penetras e que havia lhe garantido o inacreditável emprego, quando da sua volta da Bahia.

O detalhe à la “Giselle” – outro filme clássico da Vidya Produções – é que esta cena ocorre enquanto Carlos está transando com Fischer, na enésima vez do dia. Sim, porque já haviam praticado o ato anteriormente, na praia, num navio e numa piscina. E, muito importante dizer, tudo começou quando Carlos conquistara Fischer em uma boate, com uma canalha piscadinha de olhos.

No dia seguinte, a hippie declara, vendo o amigo na maior fixação: “Pô, tem que agir, pensar não adianta.” Mossy começa a rir, dar pulos, fica feliz e vende a moto que fizera a alegria de suas viagens easy rider. Com o dinheiro compra uma passagem de avião de volta e, ao chegar à igreja descobre que a noiva sumiu, abandonou o produtor deixando uma carta. “Apesar das confusões com o Carlos, é dele que eu gosto. Não vou ficar com ele, nem com minha mãe, nem com você.”

Daí para frente, leitor, temos um Mossy perdido, sem saber o que fazer, mas com vários estalos certeiros, até descobrir aonde se encontra a amada. A bordo do Eugênio C., atracado no cais do porto, rumo à Europa.

Enquanto a música do início volta, subindo até o final da projeção, o espectador terá a oportunidade de ver um encontro dos dois, no gramado do Maracanã, em câmera lenta – tal qual cena clássica de “Carruagens de Fogo” –, vestidos de Romeu e Julieta e em dia de jogo do Flamengo – time de ambos.

Nós, deste lado da tela, como espectadores do século XXI e ares vagos de cronistas, só podemos ficar imaginando que no lendário Pier de Ipanema as cocotas da época tenham achado um ouriço o encontro, mas sabiam que era chegada, finalmente, a hora do evasé. Terminado o filme, desligado o vídeo (sim, provavelmente nunca vai sair em dvd) caminho pelas ruas de uma Ipanema decadente e me indago: afinal, por que Carlo Mossy não prosseguiu sua carreira? Um homem tão bonito e talentoso. O nosso John Cassavetes do bas-fond.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Noite Vazia


“Noite vazia”, uma das obras primas do cinema brasileiro, não é um filme acidental. Não se trata de dizermos aqui alguma coisa sobre a reunião de dois homens que levam prostitutas para uma garçonnière e, terminado o tempo protocolar, dirigem de volta para casa levando flores para as respeitosas esposas.

Não é bem assim. A princípio - em um dos flashes que espocam nos primeiros cinco minutos do filme - sabemos de relance que são 08:04 horas da noite. Gatos, evidentemente, já estão pardos, diria o boêmio Antônio Maria. Alguma coisa vai acontecer.

Mas para que acontecesse algo, já fôra necessário que o espectador se ambientasse no universo do diretor e roteirista, Walter Hugo Khouri. Em preto e branco, sob a música do maestro Rogério Duprat – sempre parceiro em projetos futuros – vemos rostos de bonecos de porcelana, quebrados, em série, enquanto a grafia sessentista enumera os créditos do filme. Dentre as curiosidades, registre-se que foi “realizado nos estúdios da Vera Cruz”, que Khouri arrendava, e conta com a participação incidental do bossanovista Zimbo Trio.

A seguir, mostra-se uma São Paulo que mais parece saída de antigos one-reel movies rodados na Times Square, NY. Letreiros luminosos, flashes, vida urbana. Neste instante surge o pai devotado, milionário (Luiz, interpretado por Mário Benvenuti), dando tapinhas nas costas do filhinho (Wilfred Khouri, filho do diretor) para que saia do carro e deixe-o dirigir.

Em alguma outra parte da cidade, um jovem depressivo (Nelson, interpretado pelo lindo Gabriele Tinti) deixa a namorada em meio a uma crise, no que parece ser a constante de uma doença que sempre lhe deixa assim, anestesiado diante do mundo. O amigo Luiz propõe-lhe o prazeroso esporte da caça noturna (“Você se esqueceu, rapaz? Não existe mulher séria neste mundo.”)

Passam por alguns lugares antes do encontro fatal. Quando este ocorre, surge o quadrilátero que eleva o filme e tira-o daquela banalidade de busca e sexo puro e simples, comuns aos filmes habitados em garçonnières: Os rapazes convidam as duas escortes (Odete Lara e Norma Bengell) de um senhor conhecido – idoso, impotente, ridicularizado – para o apartamento de Luiz.

Se a combustão entre as personalidades dos homens (o canalha assumido versus o deprimido encalacrado) era visível, o conflito aumenta na medida em que os caráteres opostos das duas (Odete, fria e assertiva; Bengell confusa e domesticada) interagem com os daqueles dois. Como num jogo matemático, cada qual relaciona-se com o que está ao lado e de cada combinação surgem resultados diferentes.

Luiz deseja o domínio sobre Odete, que humilha-o e pede por Nelson, que olhava para Bengell e esta para ele como se ambos se entendessem profundamente. Nelson contenta-se em ver Odete escolher o amigo bonitão para a primeira transa da noite, mas, terminada a rodada inicial de atividades com Bengell, pula da cama e comanda Nelson a ir ver a outra, deixando o caminho livre.

Em determinado momento, tem-se a impressão de que os quatro tornaram-se “amigos”? Algo próximo disso. Entendem-se e gostam – ainda que não verbalizem, no caso de Luiz e Odete – do fato de assistirem na sala de estar à projeção de Super-8 pornográficos.

É nesta hora que um certo “Darcy” Cardoso – creditado assim na abertura –, futuro David Cardoso, rei da pornochanchada dos anos 70, faz aos vinte e dois anos de idade uma pequena ponta, como o rapazinho que leva uma moça de família ao apartamento, supondo que estivesse vago.

Após a negativa da moça para que haja – nas palavras do personagem de Benvenuti – uma “união de esforços”, Luiz anuncia o pedido clássico, voyeurístico, do tête-à-tête lésbico. Odete, a dominante, apesar de refugar de início, devora sadisticamente a outra, que, fragilizada, chora. E muito.

Ora vejam, onde mais uma prostituta choraria, pelos motivos que chora, após um pedido desses, senão em um filme de Khouri? Porque a situação a faz lembrar, em flashback, não de uma infância agreste, flagelada – como típico nos filmes brasileiros rodados na época, 1964 – mas de um tempo difuso, não esclarecido. Quando percebe que fora do apartamento a chuva castiga a varanda, a menina encontra-se com a prostituta do tempo presente, vai até lá e estaca, deixando-se molhar. Os outros três acompanham.

Recompondo-se, a seguir, já na banheira, a instabilidade da personagem de Bengell é percebida por Tinti – “Você ficou feliz tão depressa” – pois, afinal, não sentem o mesmo desespero e se entendem profundamente? No outro cômodo a discussão permanece entre Luiz e Odete, que se trai afirmando “bom, ninguém está pedindo para ir embora”. Pois é, os quatro gostam de tudo o que está acontecendo.

O empecilho, porém, é que o final era conhecido. A noite não é única, é vazia. A ela seguirão outras. Transformados ou não, aturdidos ou fingindo desprezo pelo que aconteceu, tudo volta ao início.

Nelson afasta-se de Bengell, no dia seguinte, na cama em que dormiam abraçados após terem, visivelmente, feito amor. Luiz religa a chave do carro, deixando cada qual no local de origem e refazendo propostas de novas saídas ao outro, que sempre hesita mas sempre aceita. Odete olha, impassível, para Bengell, já no elevador do prédio em que moram juntas, subindo com os pacotes de compras para o café da manhã. Bengell sorri nostálgica e entorpecida, para o nada, mas quando se lembrar de que a rotina se impôs, contrairá o rosto, em um último close.